sexta-feira, 22 de março de 2013

revista n. 456 ihgb [2 Anexos]‏

revista n. 456 ihgb [2 Anexos]‏ Cotidiano indígena: resistências, negociações e apropriações dos índios no Ceará (1812 – 1820) João Paulo Peixoto Costa Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí Resumo O objetivo deste trabalho é analisar o cotidiano dos povos indígenas no Ceará do início do século XIX na condição de protagonistas de suas próprias histórias. Ao delimitar enquanto recorte temporal o governo de Manuel Ignácio de Sampaio, que perdurou entre os anos de 1812 e 1820, nos deparamos com um período marcado pelo reforço e aperfeiçoamento das investidas disciplinares sobre os nativos da Capitania. Todavia, as transformações sofridas por esta sociedade não eliminaram por completo a capacidade de ação dos índios sobre ele; ao contrário, nosso estudo procura caracterizar as diversas formas de ação – compostas de resistências, negociações e apropriações das mais variadas – dos indígenas que, mesmo submetidos, eram produtores e leitores atentos desse mundo. Palavras chave: Índios. Cotidiano. Ceará. Século XIX. Abstract The aim of this paper is to analyze the everyday life of indigenous peoples in Ceará in the early nineteenth century as protagonist in their own history. In define time frame while the government of Manuel Ignacio de Sampaio, which lasted between the years 1812 and 1820, we faced a period marked by the strengthening and improvement of disciplinary invested over the natives in the captaincy. However, the transformations undergone by this society not completely eliminated the capacity for action of the Indians about it; on the contrary, our study aims to characterize the various forms of action – consisting the most diverse resistances, negotiations and appropriations – of the indigenous people who, even submitted, were attentive producers and readers of this world. Key words: Indians. Everyday life. Ceará. Nineteenth century. Introdução [...] que os senhores brancos, e outras qualidade de pessoas que residem nas terras dos Indios cada hum procure as suas Patrias [...] os índios do Termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (Mestrado) ‒ Universidade Federal do Ceará, 2010. Índios da Vila Viçosa Real, 1814. A gente pensa que escolhe. Se a gente não sabe inventa. Nando Reis, A letra A, 2003. A chegada do europeu nas terras em que hoje se situa a América fez nascer um “novo mundo”, a partir de práticas, lugares sociais e sujeitos novos. A partir do contato, brancos, negros e índios reconfiguraram os significados daqueles espaços, assim como as posições que passariam a ocupar naquela sociedade nascente. Mas, diferente do que a historiografia tradicional enfaticamente afirmou, ao celebrar o protagonismo do homem ocidental, novas pesquisas mostraram a relevância da presença indígena na construção do Brasil e no funcionamento da colônia. Por meio da leitura das fontes, bem como a descoberta de novos acervos documentais, percebemos que a atuação dos índios no cotidiano colonial não se deu apenas de maneira figurativa ou coadjuvante. Por outro lado, observamos que nem só de massacre viveu a política indigenista de Portugal, e que a dominação dependia do índio muito mais do que se pensava. Se a Coroa necessitava de súditos, a Igreja de fiéis, e os colonos de mão de obra, é possível compreender que a presença e participação nativa naquele universo era, na verdade, fundamental. Os indígenas percebiam com acuidade tal dependência e, a partir dela, manipularam os elementos desse novo mundo e criaram para si espaços de sobrevivência. Contudo, não é possível, a partir do que foi exposto, imaginar que a relação entre brancos e índios se deu de forma igualitária, ou que a dominação não tenha sido tão devastadora para aquelas sociedades tradicionais. Muito pelo contrário, o massacre de fato aconteceu, não sendo intenção de essa nova historiografia esconder a destruição nem as mortes de uma infinidade de pessoas, grupos e culturas. Para Maria Regina de Almeida, não é possível “desconsiderar a violência e a opressão da conquista”, mesmo percebendo que “as atitudes dos índios em relação aos colonizadores não se reduziam, absolutamente, à resistência armada e à submissão passiva”. O que observamos foi que todas essas formas de relação – da total negação à inserção voluntária – mesmo sendo contraditórias, conviviam e formavam esse mundo em construção. Além disso, as “perdas culturais e étnicas”, mesmo sendo inevitáveis, não impediram que os índios aldeados – que nesse momento, não foram mais os mesmo grupos que viveram nestas terras antes da colonização – pudessem “aprender ali novas práticas culturais e políticas que lhe permitiam colaborar e negociar com a sociedade colonial”. Dessa forma, o cotidiano na Colônia, sobretudo até a primeira metade do século XVIII, foi composto e pertenceu também ao elemento nativo, apesar de os espaços e as identidades geridas nesse ambiente não serem mais os mesmos, anterior ao contato. No Ceará, colonizado apenas em meados dos setecentos, essa situação parecia ser ainda mais evidente. Além de ser uma capitania considerada, à época, um lugar “acolhedor e concentrador de povos aflitos e fugitivos, fustigados, expulsos de seus antigos territórios [como foi o caso de muitos grupos indígenas vindos das capitanias anexas a Pernambuco]”, era marcada pelo fraco alcance do poder administrativo e político da Coroa. Apesar de ser “domínio da majestade de Portugal [...] era também, e, sobretudo, um Seara Indígena”, como coloca Manuel Albuquerque: ou seja, o território cearense – até, pelo menos, a segunda metade dos setecentos – talvez fosse muito mais dos índios do que do rei português. Os próprios aldeamentos jesuíticos, ainda que tivessem um evidente caráter integracionista e controlador, e se configurassem “um espaço de dominação e exploração dos colonizadores”, eram muito mais “espaços de índios, pois assim foram por eles considerados, como sugerem as lutas que empreenderam por sua manutenção, até o final do século XVIII”. Com a instalação do Diretório dos Índios, acompanhado da execução de diversas práticas modernizadoras idealizadas pelo Marquês de Pombal, foi provocada uma mudança significativa nesse quadro social. Com a intenção explícita de inserir o elemento indígena no mundo civilizado, este conjunto de leis possibilitou o desenvolvimento de medidas que impulsionavam o controle sobre aquela população, bem como um maior usufruto de sua força de trabalho. Segundo Leite Neto, com a transformação das antigas aldeias jesuíticas em vilas, esses espaços passaram a “se constituir [...] num importante instrumento de formação da mão de obra indígena para o sistema mercantil”, além de agir de forma mais rigorosa na aglutinação desses povos espalhados pelo sertão. Desde o final do século XVIII, e também no início do XIX, diversas políticas normativas foram aplicadas com o objetivo de combater a dispersão populacional e promover a civilização entre os habitantes, por meio de um controle mais organizado e com maior aproveitamento de pessoas para o trabalho. Dessa maneira, de forma gradual, a Capitania do Ceará, antiga seara indígena, passava a ser cada vez menos dos índios que lá habitavam. Mas o enrijecimento dessas práticas normativas nos oitocentos não foram suficientes para retirar esta capitania do antigo estigma de ser um confim precário e atrasado. Deste modo, a chegada de Manuel Ignácio de Sampaio no Ceará, em 1812, pode ser interpretada como um marco em termos de aperfeiçoamento das políticas populacionais, que tiveram atuações significativas sobre os índios. Com a efetivação de práticas que agiram com a intenção de controlar, disciplinar e transformar aqueles homens “ainda bárbaros” em súditos civilizados, não somente os espaços da região, como também o cotidiano dos grupos nativos passaram a ser cada vez mais monitorados e geridos, no sentido de trazer a civilização para a população e desenvolver economicamente a capitania, num projeto em que estes dois planos de ação estariam juntos. Para os índios no Ceará, que viveram durante o período do governador Sampaio, parecia não haver escolha. Com a renovação da política de passaportes, o forte incentivo ao trabalho e o acelerado desenvolvimento do recrutamento indígena em companhias de ordenanças, os espaços dos nativos, para sobreviverem neste mundo encontravam-se ainda mais reduzidos. As vilas tiveram relativo crescimento, tornando-se verdadeiros celeiros de trabalhadores, e o controle sobre a vida dos indivíduos pretendia ser total, através da vigilância de seus passos e do serviço de sua força de trabalho. O Ceará, que, durante quase todo período colonial (inclusive após a instalação do Diretório), se configurou um lugar de índios – uma seara indígena – passaria a se constituir para eles como um não-lugar. Ao desenvolver os conceitos de estratégia e tática, Michel de Certeau buscava traçar uma diferença entre aqueles grupos ou indivíduos que, em uma determinada sociedade, são possuidores de um “lugar capaz de ser circunscrito como um próprio” e outros que só podem lançar mão de ações cujo cálculo “não pode contar com um próprio”. Enquanto quem domina lança mão de estratégias, postulando a “vitória do lugar sobre o tempo”, os dominados, por outro lado, têm para si apenas o “não-lugar”, ou seja, suas táticas “só tem por lugar o outro”, sendo justamente aí onde se insinua, jogando “com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’”, “tirando partido de forças que lhe são estranhas”. Pensar no conceito de não-lugar, com base em Certeau, para analisar a relação dos índios deste período com o Ceará em que viviam – mesmo admitindo a perda de certa “autonomia” que antigamente teriam – não anula a possibilidade de essas pessoas terem se posicionado nesse espaço de forma atuante e em busca de seus interesses. Entender o cotidiano desses homens a partir desse referencial é permitir visualizar uma multiplicidade de ações que, de maneira heterogênea, se realizaram com feições bem diferentes do que acontecia, por exemplo, no contexto das aldeias jesuíticas. A análise documental – que se debruçou no acervo do Arquivo Público do Estado do Ceará, fundo “Governo da Capitania” – mesmo de forma indireta, nos permitiu perceber as diversas possibilidades de ações perpetradas por índios que partiram de situações e condições bem diferentes, e buscaram sobreviver nesse mundo novo que se constituía no “novo mundo”. Da “aceitação” à fuga, todas essas ações registradas nos documentos oficiais mostraram a inventividade dos povos indígenas que, não sendo passivos a esta realidade, criaram uma grande multiplicidade de táticas para sobreviver neste universo. As fontes governamentais, nascidas nos planos normativos e designadas para agirem como tal, puderam ser lidas também como efeitos das reações dos índios diante destas políticas disciplinares. Foi nelas que percebemos, mesmo no ambiente mais próprio do mundo disciplinar, as diversas formas de invenção de cotidianos, ainda que vivendo em um não-lugar. Fugas do sistema O enrijecimento das políticas de controle e incentivo à produção é algo identificado pela leitura de registros escritos no Ceará, desde o final do século XVIII. É possível perceber que, progressivamente, instala-se nesta capitania uma sociedade pretensamente disciplinar, na qual as práticas normativas visavam o máximo controle dos corpos e, consequentemente, o seu maior usufruto. Porém, convivendo lado a lado com coerção, estava a invenção, revelando que tal realidade em estudo se tratava de uma sociedade disciplinar, e não disciplinada; ou seja, é preciso estar atento ao que Foucault chamou de “insucessos perpétuos” desses sistemas. Neles, inclusive no Ceará, diversas formas de movimentação, negação e sobrevivência são visíveis na documentação por nós analisada, sendo possível observar as diversas maneiras pelas quais os índios agiam frente aos mecanismos criados ou incentivados pela ação do Estado. Mesmo com toda a rigidez da hierarquia social deste período, que relegava aos índios posições inferiores – tanto política como juridicamente – em relação aos brancos e outros homens livres, esses povos não se posicionavam neste mundo de forma submissa. De acordo com o viajante Henry Koster, os indígenas seriam homens de espírito livre, que, mesmo tendo consciência de suas posições, agiam altivamente inclusive perante os proprietários que alugavam seus serviços. Um índio seria homem de [...] temperamento independente, detestando tudo o que possa deprimir e reter sua ação. Submete-se ao diretor por não ter elementos de resistir-lhe. Um indígena nunca está disposto a chamar o patrão, que o haja alugado, por senhor, embora de uso comum dos brancos entre si quando falam, e por todos os homens livres da região. O que os negros usam falando com seus senhores, os indígenas não o fazem. Dirigem-se ao seu senhor temporário pelos termos de amo ou patrão. A repugnância do uso do vocábulo senhor pode ter começado nos imediatos descendentes dos indígenas escravos e se haja perpetuado essa repulsa na tradição. Recusam dar por cortesia o que outrora lhe seria exigido pela lei. Sendo esta a origem do hábito, ele não continua pela mesma razão, porque os indígenas com quem tenho conversado, e tenho visto muitos, parecem saber que seus ancestrais trabalhavam como escravos. Por meio dos relatos de Koster, vemos que os índios acabaram desenvolvendo o costume de negarem abertamente o tratamento “senhor”, não sendo esta atitude apenas um detalhe. Como observamos nesta literatura, a submissão só existia porque não havia o que fazer para reverter completamente esta situação. Porém, talvez por conta deste “temperamento independente”, que detestava “tudo o que possa deprimir e reter sua ação”, os nativos souberam posicionar-se diante das autoridades e deste poder que cada vez mais limitava seu cotidiano. Sabendo da escravidão que muitos dos seus sofreram, estes homens tentavam negar em sua rotina diária, prática similar ao experimentado por seus antepassados. E já que, segundo Koster, os índios não teriam “fidelidade aos seus amos”, nos foi possível notar a recorrência de várias referências a fugas de indígenas nas fontes governamentais. Percebemos que esta tendência de evasão das vilas, ou de propriedades onde os nativos trabalhavam por aluguel atravessou a passagem dos setecentos para o século XIX, e continuou com o governo Sampaio. Mesmo com toda a insistência da política de passaportes – e da verdadeira “caça aos vadios” que se efetivou na capitania – trabalhada no capítulo anterior, estas ações não foram suficientes para extinguirem com a busca de muitas pessoas de sair da situação em que se encontravam e ir para outros lugares. De acordo com Almeida, já no período jesuítico, a “fuga e o abandono das aldeias foram sempre uma realidade” nesse contexto, e podiam ser notadas também nas vilas do período pombalino. Sem demandar maiores comentários, as atitudes desses índios fugitivos são uma das mais abertas manifestações de resistência às políticas disciplinares desse período. Logo no primeiro ano do governador no Ceará, apareceu o primeiro registro desse tipo de ação, presente em um ofício encaminhado ao comandante das ordenanças do Aquiraz, no mês de outubro. Nele, Sampaio ordenava que se fizesse a prisão de um índio que, “tendo sido alugado ao Boticario desta Villa Bernardo Joze Teixeira ausentou-se no fim de 25 dias, e consta agora que esta morando [...] juntamte com o Pai”. Em outro ofício do mesmo mês, enviado ao diretor de Arronches, o governador ordenava que se castigasse “como achar justo a India Joana de tal que fugio da Casa de Belchior da Silva Loureiro aonde se achava alugada”. Observamos que estas fugas ocorreram em contextos bem específicos: não eram somente de seus lugares de origem, mas de propriedades onde exerciam trabalhos compulsoriamente. Previstos já no Diretório, os serviços de aluguel tinham destaque no projeto indigenista por diversos fatores civilizatórios e econômicos, e seu crescimento foi detectado na documentação à época. Mas juntamente com essa situação, as tentativas de os índios escaparem dessas coerções apareciam, reinventavam-se e conviviam insistentemente com as tentativas de ordenar essa população nativa. Encontramos outros registros de problemas de índios com proprietários, para quem provavelmente trabalhavam de aluguel, no livro do secretário do governo. No mês de julho de 1816, alguns ofícios foram enviados a autoridades locais, com o intuito de organizar e recolher à sede da Secretaria os requerimentos a eles remetidos em anos anteriores, quando exerciam outros cargos em vilas diferentes. Entre a lista de requerimentos pertencentes ao então diretor de Mecejana, estava o de Luduvina Beserra, datado de janeiro de 1815, que tratava de um pedido de prisão do índio Felisardo das Neves. Apesar de não deixar claro o motivo, é possível imaginar que a razão dessa contenda esteja relacionada a algum tipo de insubordinação do indígena em seus serviços com a requerente. Já no ofício encaminhado ao sargento-mor José Agostinho Pinheiro nos deparamos com a petição de Maria Francisca da Conceição. Nesta solicitação, de março de 1814, quando Pinheiro “interinamte Servia de Diror de Mecejana”, era-lhe solicitado “pa fazer recrutar hum Indio que tinha fugido da Casa do Suppe [suplente]”. Observemos o grau de interesse que tinham as proprietárias em resolver estes problemas com seus empregados índios – mobilizando inclusive uma captura quando preciso – revelando o quão fundamental era esse tipo de mão de obra para tal sociedade. Para livrar-se dessa situação de coerção ao trabalho em propriedades particulares, muitos indígenas procuraram sair de forma legal de suas vilas, adquirindo terras para plantio em outros lugares e se alistando em companhias de ordenanças de brancos. Dessa maneira, muitos conseguiram não mais ser obrigados a prestar serviços aos moradores de suas regiões. Entretanto, temos registro de um caso incomum, ocorrido com o índio Gonsalo Ferreira Asevedo: se geralmente a fuga – ou mesmo a saída legalizada – se dava de dentro para fora das vilas de índio, com ele aconteceu o contrário. Em abril de 1813, Sampaio ordenou sua prisão na própria Vila de Arronches, “d’onde anda diserso á onze para doze annos”, já que ele mesmo se dizia “alistado na Companhia de Ordenansas de homens brancos” de Fortaleza. Ou seja, provavelmente, em algum momento, Gonsalo requereu sua saída de seu lugar de origem, e foi tentar uma vida melhor junto à companhia de brancos da capital. Porém, por algum motivo, mudou de ideia, e, de maneira insubordinada, resolveu fugir e voltar à sua terra natal junto com os seus. As fugas também aconteceram em conjunto, sendo praticadas por mais de um indígena. Por elas, podemos perceber que, em determinados momentos, o desejo de muitos nativos de se retirar daquele mundo – do qual era impossível negá-lo ou enfrentá-lo abertamente – permitia a possibilidade de colaboração entre essas pessoas, mesmo que fossem apenas duas. No início do governo de Sampaio, em fevereiro de 1813, uma índia ajudou na fuga do índio André Ferreira. Encontramos referência a esse caso em um ofício encaminhado ao comandante de Cascavel, de quem o governador reclama de ainda não ter remetido presa a dita criminosa à capital. No mesmo dia, outro ofício foi dirigido ao comandante de Cherabicu (que teria capturado a índia), dizendo-lhe que o dito André Ferreira já estaria “carregado de ferros na Cadeia”, juntamente com outros dois índios que também eram acusados de tentar fugir. Por fim, disse ainda que escreveu ao capitão-mor Anastácio Lopes Ferreira, “para que me dê a razão por que me não tem remettido presa a India que lhe cortou as Cordas e que vme lhe remetteo presa”. No mês seguinte, Sampaio tornou a escrever ao comandante de Cascavel, tratando de alguns índios dispersos que foram enviados desta vila à prisão da capital. Entre eles estava Francisca, que supostamente seria aquela que colaborou na soltura do índio fugitivo. Porém, de acordo com o governador, esta índia “era de menor idade e [...] por tanto não pode ser a que [...] soltou o preso André Ferreira. He pois necessario que vmce passe a saber com toda a Certeza quem cometteo este delito”. Dessa forma, o caso que parecia já estar resolvido encontrou-se sem solução, e a índia “criminosa”, que ajudou André a fugir, tinha ela própria sumido do monitoramento do governo. Não pudemos encontrar nos registros documentais o seu verdadeiro nome, mas justamente por isso, e por ter “desaparecido” das fontes, imaginamos que, pelo menos neste momento, uma burla ao sistema se deu de forma bem-sucedida. Outra fuga que parece não ter tido solução foi o caso do sumiço do índio João da Roxa, da Vila de Monte-Mor Velho, em novembro de 1815. De acordo com Sampaio, escrevendo ao diretor de Mecejana, o índio fora recrutado e alistado nas companhias de ordenanças pelo diretor daquela vila. Certa vez, tendo sido [...] mandado com certa quantia de dinheiro a entregar a Manoel Nunes Ferreira não só não deo conta do dinheiro mas d’ali desertara. He por tanto necessário que vme me diga o que Souber e tiver praticado a respeito do dito Indio João da Roxa. Assim como os casos de que tratamos anteriormente, João da Roxa tentou fugir do olhar disciplinar do comando militar de sua vila. Mesmo não sabendo o desfecho desta pequena história de indisciplina, foi possível compreender algo a mais em relação às outras fugas que apresentamos; ou seja, o indígena não só fugiu como também se apoderou do bem pelo qual ficou responsável. O exemplo de João nos ajuda a compreender que, ao contrário do que tradicionalmente se dizia, aquela população não foi passiva diante da política, da repressão e do controle. Além disso, ele não somente escapou, mas levou consigo algo que, pelo menos tradicionalmente, não fazia parte da cultura de seu povo: o dinheiro. Juntamente com a resistência, percebemos que a apropriação dos elementos do mundo “civilizado”, com fins bem diferentes daqueles pensados pelos brancos, era constante no cotidiano daqueles nativos inseridos no “novo mundo”. Fugindo e roubando dinheiro, observamos que João da Rocha usou algo próprio do sistema onde era obrigado a habitar para a ele resistir, e assim reinventar outra forma para viver. Inventando a vida num novo mundo Para além do enfrentamento aberto ao sistema, percebemos que a vivência cotidiana dos índios naqueles espaços projetados para discipliná-los era também composta de diversas maneiras de negociações, manipulações ou silenciamentos. Uma vez inseridos naquele mundo, que se tornava cada vez mais limitado, era preciso jogar com as regras do sistema, e por meio delas, conseguir melhores condições de vida. E se dentro das vilas a situação parecia insustentável – seja pela precariedade física, seja pela necessidade de exercer serviços a particulares – a solução muitas vezes era encontrar algum meio para ir embora. Além dos relatos já citados de Silva Paulet, pudemos concluir, pelas fontes estudadas, que os antigos lugares de índio adquiriram um formato cada vez mais semelhante a um misto de escola, fábrica, quartel e prisão. Como bem observou Koster, a “vida não é passada certamente de maneira agradável sob o olhar de um diretor e tratado imperiosamente”. Logo, segundo o autor, não seria “surpresa, logicamente, que esteja em sua vontade [do índio] abandonar as aldeias, tornar-se livre”. Por esse anseio de liberdade, muitos nativos optaram por se mudar para outros espaços e fazerem parte de companhias de ordenanças de brancos, deixando para trás seus lugares e povos ancestrais em busca de uma vida mais estável. Mas ao contrário do que disse o viajante, para quem os índios, uma vez fugindo do “férreo domínio do diretor, jamais se fixam num lugar”, muitos, a partir de um processo que teria se iniciado desde a criação do Diretório dos Índios, passaram a se estabelecer em terras próprias fora de suas vilas. Durante o governo Sampaio, devido o rigor de seus planos de controle populacional, muitos passaram a produzir requerimentos para conseguir passaportes. Com a doação dessa autorização por parte do governo, eles se integraram junto às ordenanças de homens brancos e, enfim, regularizaram a condição de ilícito. Para que a doação do passaporte fosse autorizada, era preciso que se constasse que o requerente era assíduo na agricultura e estivesse de acordo com a moral e os bons costumes da civilização. Um exemplo significativo deste tipo de ação, cuja trajetória conhecemos melhor, talvez seja o caso do índio Duarte Jose Gonçalves, pescador e morador da praia do Riacho, em Aquiraz. Foi preso em outubro de 1812, por suspeita de dispersão e vadiagem através de um mandado dirigido ao Diretor de Mecejana. A busca por índios que vivessem fora de sua vila de origem era intensa, para que se pudesse de maneira mais efetiva monitorar o cotidiano dessas pessoas e obrigá-las ao trabalho produtivo. Porém, já observamos também as exceções que poderiam acontecer, e vendo que o dito índio não era vadio e se ocupava de seu ofício, o governador autorizou sua soltura no dia 16 do mês seguinte, e expediu esta ordem no dia posterior: Tendo o Indio Duarte Jose Glz mostrado perante mim que não he vadio antes se ocupa inteiramente na cultura do seu rossado vivendo em boa Pás e armonia com os seus visinhos deve vmce passar-lhe Passaporte para poder continuar a empregar-se nos dos seus Rossados juntamente com a sua família por espaço de hum anno findo o qual deverá ir tirar outro simelhante Passaporte que vmce lhe continuará a passar todos os annos [...] Logo porem que elle esteja sem Passaporte isso deve vmce participar para eu o castigar. Vemos aqui novamente os principais objetivos do governo: desenvolver a agricultura e controlar a população. O índio, estando em dia com suas obrigações de trabalhador e em boa convivência com sua comunidade, recebe autorização de Sampaio para permanecer com seus serviços. Apesar disso, o governador exigiu que ele estivesse em dia com sua documentação, sob pena de ser castigado, mostrando que crescimento econômico e vigilância não podiam estar separados. Sabendo que esse era o caminho para uma vida mais estável, Duarte Gonçalves, assim como muitos outros, decidiu sucumbir dos hábitos da vida ocidental, tão caros para a cultura “civilizada” – como a assiduidade no trabalho – afastando-se de certa forma de seus costumes e ambiente tradicionais. Dois anos depois, em outubro de 1815, dois ofícios foram expedidos pelo Governador tratando do índio pescador. O primeiro, enviado ao capitão-mor do Aquiraz, comunica-o do alistamento na companhia de ordenanças da dita vila de Duarte Jose Gonçalves, e da concessão de baixa da companhia dos índios de Mecejana. Já o segundo ofício, dirigido ao diretor de Mecejana, informou o motivo de sua decisão e como deveria proceder: [...] Duarte Jose Glz se emprega assidua e constantemente na agricultura e na Pescaria na Praia do Riacho termo da Villa do Aquiraz. Ordeno a vme que de hoje em diante considere desmembrado da Corporação dos Indios dessa Villa o do Duarte Jose Glz e sua familia [...] para poderem livremente residirem no termo da Va do Aquiraz onde ficarão Sujeitos ao Serviço das Ordenanças dos homens brancos. E assim, o índio pescador legalizou o afastamento de seu lugar de origem, sendo assíduo em seu trabalho e, agora, fazendo parte de uma companhia militar de brancos. Ele, e muitos outros, escolheram se distanciar de suas comunidades, e tendo em vista que casos desse tipo não foram raros, percebemos que o catalisador para tais decisões era a procura de melhores condições de vida. Absorvendo com dificuldade as práticas da cultura ocidental – que era o caso de seu trabalho ordenado e produtivo, de pescador e agricultor, em uma propriedade própria – Duarte Gonçalves não só evitou sua permanência na prisão – onde passou cerca de um mês – mas também concluiu seu processo de mudança – de uma vila indígena para uma de brancos – que provavelmente já teria se principiado havia mais tempo. Por iniciativa própria, o índio foi em busca de outro lugar onde pudesse trabalhar, e, dessa forma, ficar longe daquele espaço que um dia pertenceu a seus antepassados, e que, neste momento, não mais era seu. Mas as formas que muitos índios aprenderam a lidar com o trabalho não funcionaram como estímulo para saírem de suas vilas. Mesmo quando isto acontecia, não era sinal de uma rendição “natural” a “superioridade” da dominação colonial, mas maneiras que os próprios índios encontravam para sobreviver de forma mais estável. Porém, outros exemplos revelam de forma mais clara que, muitas vezes, as relações que os nativos mantinham com o trabalho não ocorriam apenas pacificamente. Ao contrário, os serviços, as remunerações e a dependência que os proprietários tinham de sua mão de obra se constituíam como elementos a serem utilizados pelos índios em busca de seus interesses. Por mais que fizessem parte do mundo branco, constituíam o novo universo de onde os indígenas faziam parte, e, se não poderiam negá-los, era possível apropriá-los, e com eles reinventar seus cotidianos (como aconteceu com o dinheiro roubado pelo índio João da Rocha). Um interessante exemplo das formas pelas quais os índios manipulavam as condições que lhes eram impostas pode ser visto em um mandado de prisão expedido ao diretor de Arronches em setembro de 1812, por conta de um índio que se encontrava trabalhando de forma irregular para um proprietário: Vmce mandará prender á minha Ordem o Indio Felipe, filho de Felipe Nogueira que se acha no Socó em Caza de Jose Tavarez da Luz alugado por seu Pai sem Ordem ou Despacho deste Governo, e mesmo sem concenço de vme como seu diretor. Aqui percebemos que não há propriamente uma negação da cultura ocidental que era imposta aos povos indígenas. Muito pelo contrário, o índio Felipe e seu pai estavam envolvidos em uma forma de trabalho prevista nas leis e que era cada vez mais incentivada neste período. Porém, isso é feito sem o consentimento do governo, cuja preocupação em monitorar as ações da população era prioridade, ainda mais com a grande recorrência de formação de grupos armados que se formavam em propriedades particulares. Tentando alterar a própria lógica deste sistema, Felipe Nogueira não somente inseriu seu filho neste mundo do trabalho como também foi ele próprio o intermediário. Logo, criou para si o direito de empregar um parente e apropriar-se do lucro que isto gerava. Sem negar a condição de incentivo ao trabalho nem a obrigatoriedade dos índios de prestarem serviço por salário em propriedades particulares, o pai se aproveitou da situação, modificando o objetivo original dessas práticas e recebendo ele próprio o dinheiro por meio do filho. Aqui encontramos um exemplo de como estes povos, impossibilitados de resistir a este universo que se consolidava na colônia, inseriam-se ali de forma que pudessem tirar o máximo de proveito de seus elementos. Uma vez transformados, não sendo os nativos que residiam em períodos anteriores, reconfiguraram os sentidos, as práticas e os lugares sociais que passaram a ocupar. Apesar do acirramento das políticas de controle, os índios não agiram unilateralmente submissos. Mesmo em momentos nos quais pareciam render-se às práticas governamentais, estavam muitas vezes buscando espaços próprios para conseguirem alcançar seus interesses. Os indígenas adequavam ao seu modo a ordem dominante, mesmo sem sair dela. E assim como fez o índio Felipe Nogueira, faziam das “leis que lhes eram impostas outra coisa que não aquela que o conquistador julgava obter por elas”. Da fuga ao roubo, da saída da vila à apropriação ilegal do lucro do trabalho, da resistência à inserção no mundo colonial, percebemos que foram inúmeras as maneiras pelas quais os índios reinventaram seus cotidianos neste novo não-lugar que se formava no Ceará. Se esta seara já não mais era indígena, os povos nativos aprenderam a lidar com uma geografia que não mais lhes pertencia, criando de forma inventiva situações que fossem favoráveis. Requerimentos indígenas Era frequente na historiografia tradicional uma abordagem superficial acerca da participação indígena nos variados momentos da história do Ceará. Quando muito, os índios eram tratados como um dos setores mais atrasados da população, arrastados pelo processo civilizador e apenas relevantes enquanto partícipes dos eventos protagonizados essencialmente pelos brancos. Para Manuel Albuquerque, a população indígena era estudada “sempre na perspectiva de ser percebida como primitiva e inferior, quando comparada à sociedade europeia, avançada e civilizada”. Seriam fatalmente – como diriam os românticos – engolidos pela sociedade, e enfim, misturados à massa geral do povo (como ficou registrado no relatório do presidente daquela província, em 1863). Uma “orquestração de discursos dava ênfase à ideia da não mais existência de índios no Ceará”, onde o “romance literário, a produção historiográfica e os pronunciamentos de autoridades governamentais decretavam a morte” desses povos nativos. Porém, a recente historiografia vem combatendo este tipo de visão, impulsionados pelo contexto atual, em que diversas comunidades espalhadas pelo território cearense declaram suas identidades indígenas, negando a concepção de extinção dos índios no Ceará. Rechaçam também a tese que prega uma suposta inércia e passividade dos nativos diante dos variados momentos da história. De acordo com John Monteiro, é missão atual dos historiadores “recuperar o papel histórico dos atores nativos na formação das sociedades e culturas do continente” americano, revertendo uma bibliografia marcada, se não pela omissão, “por uma visão simpática aos índios, mas que os enquadra como vítimas de poderosos processos externos à sua realidade”. Inseridos nesta nova historiografia, tentaremos mostrar que os índios no Ceará colonial não foram simplesmente “arrastados pela história”, mas também tiveram e foram artífices de sua própria. Para Boccara, longe de serem meros espectadores da história, o dinamismo e a abertura cultural dos índios lhes permitiam tirar proveito do próprio sistema colonial, possibilitando manejar a seu favor os elementos do dominador. Acompanhando esse pensamento, nosso objetivo aqui é perceber, por meio de requerimentos registrados na documentação do governo de Manuel Ignácio de Sampaio, de que maneira os indígenas, conscientes de suas posições sociais, usavam, de maneiras diversas, “regras [...] do mundo branco para poder sobreviver e construir espaços de liberdade”. Outra corrente de pensamento, que também pretendemos ir de encontro, é aquela que imagina as atitudes dos nativos, frente à colonização, apenas no sentido de reações abertas, como deserção ou guerra. Para além deste simplismo, observamos que os índios, por questões de necessidade, aprenderam a inserir-se naquele universo que os dominou, e souberam ocupar determinados lugares, apropriaram-se de diversos elementos, caminhos e táticas para conseguirem alcançar seus interesses. Se alguns traçaram como caminho a resistência armada, outros fizeram nascer novas formações sociais, ou ainda passaram a ser intermediadores imprescindíveis ao sistema colonial, ou mesmo se valeram das vias legais em busca de seus direitos. Para além de identificar apenas registros de choques e negações indígenas diante da colonização, nossa análise se debruça em casos nos quais os índios se apropriaram, por meio das vias legais, desse mesmo sistema colonizador para realizarem seus objetivos. Os nativos não foram constantemente “obstinados e redutíveis opositores do projeto colonial”, já que “ao utilizarem mecanismos próprios da cultura” europeia estavam “defendendo perspectivas de ação e reação ou (re)criação de seu próprio mundo”. De pedidos individuais até requerimentos comunitários relativos a tributos e legislações, os indígenas não se encontravam alheios àquela realidade, mas antes conscientes do pouco espaço que dispunham, e da habilidade que precisavam ter para manipulá-los de acordo com seus objetivos. A produção de requerimentos A procura de pistas nos arquivos do governo Sampaio que nos remetessem a esse tipo de realidade foi farta, e nos fez perceber o quanto os índios não se colocaram apenas na condição de vítimas desafortunadas diante de uma política que, como nunca havia sido feita antes, buscava discipliná-los e impulsioná-los a uma vida produtiva e “civilizada”. Mesmo cercados em meio a essas práticas normativas, foi possível aos indígenas conseguirem encontrar meios em que pudessem construir espaços próprios, mesmo que para isso tivessem que partilhar, de certa forma, os planos do governo. Se já não mais era possível, desde a instituição do Diretório, levar uma vida mais autônoma e com menos rigor, muitas vezes o melhor caminho era inserir-se naquela sociedade, e, a partir daí, manipular quando necessário os benefícios que lhes eram oferecidos. Ao se tornarem súditos, além das obrigações, os nativos passavam a ter também uma série de direitos, “dentre os quais os de pedir e obter mercês e justiça do seu Rei”, ou mesmo o de produzir um simples requerimento acerca de uma necessidade cotidiana. É possível caracterizar melhor esta realidade quando analisamos as ações de índios que, diante do olhar do governo, mantinham um estilo de vida condizente com o que exigia a lei: trabalhando em sua terra de forma disciplinar e produtiva. Estes indígenas, aparentemente “afastados” de antigos costumes tradicionais e condenáveis pelos padrões de civilidade, apoiavam-se justamente nas intenções do poder real e, a partir delas, produziam requerimentos (como os que discutimos no item anterior), na maioria das vezes ao próprio governador Sampaio, com conteúdos diversos. Tampouco tinham a mesma origem, e dependendo da situação, ou do lugar social do(s) requerente(s), poderiam ser de cunho comunitário ou partir de um interesse individual. Logo no primeiro ano de Sampaio no Ceará, encontramos dois pedidos desse último tipo: o primeiro, de maio de 1812, está registrado em ofício do secretário do governo que, por ordem do governador, escreveu ao juiz ordinário da Vila de Mecejana, sobre o “Requerimto incluzo de João Correia Indio dos da direcção dessa Villa”. Manda-o ainda que compareça à sala do governo, “em execução do Despacho nelle proferido”, para que dê explicações pelo não cumprimento da “Carta precatoria do Dezembargador Juiz de Fora desta Villa da Fortaleza”, revelando o nível de envolvimento que poderia ter um índio em questões jurídicas ou de natureza semelhante. O segundo requerimento, expedido no mês seguinte, foi produzido pelo índio Egidio Dias de Moraes da vila de Arronches, e registrado em ofício do mesmo secretário dirigido à câmara desta vila, no qual reclama dos danos causados em sua propriedade: O Illmo Sr Govor manda remeter a esse Senado o Requerimto incluzo de Egidio Dias de Moraes Indio da Direcção dessa Villa [Arronches] que se queixa do dano que lhe Causão na sua lavoura os Bois de Mel [Manuel] Caetano de Azevedo e de outros cujo nome ignoro e he servido na Conformidade do seu Despacho de 27 de Maio proferido no mesmo Requerimento q’ esse Senado de as Providencias na forma da Ley. Notemos que aquilo que o índio requerente queria defender era algo vital para o governador: a sua lavoura, que não só era prova de seu trabalho como também algo de extremo valor aos planos do poder real de desenvolvimento econômico e civilização da população. A plantação de Egídio, provável fonte de seu sustento, passava a ser garantia de que fosse pelo menos despertado no governo algum interesse em atender seu pedido. Percebemos que ser um índio nessa sociedade não significava que ele estivesse fadado a ocupar um lugar completamente marginal, desprezível e sem representatividade. Por mais que pertencesse a uma “casta” que, em âmbitos sociais e políticos, era inferior aos brancos, a ponto de “demandar” cuidados especiais das autoridades, Egídio soube somar seus interesses com os do governo – que era o de manter-se em uma terra produtiva de forma adequada – e, assim, ocupar uma condição social que lhe possibilitava lutar por seus interesses. Mesmo em posições desfavoráveis, os índios souberam muitas vezes movimentar-se nessa sociedade de forma surpreendente, a ponto de terem conseguido realizar certas ações que desconcertariam os mais conservadores. Exemplo disso está em ofício do governador, encaminhado ao comandante das ordenanças de Aquiraz, de dezembro de 1812, acerca das reclamações do índio Vicente Ferreira Ramos sobre um gado do vizinho Jose Vitorino Dantas Correia, que estaria causando estragos nos “Rossados do do Indio e a outros moradores”. Em resposta, Sampaio ordenou que o proprietário do animal fosse intimado a “vender ou mattar a res damninha”. O que impressiona nesta atitude do governo foi o fato de ter se dado em uma região na qual a pecuária tinha enorme valor econômico e histórico, e a perda de um animal de criação era considerada um dano gravíssimo. Mesmo assim, o índio Vicente levou vantagem nesse evento por ter posto em questão o bom funcionamento de sua produção agrícola e dos demais moradores da região. Outro registro que comprova a força que poderiam ter as ações movidas por indígenas aconteceu em março de 1813, quando o governador ordenou ao sargento-mor de Vila Viçosa Real que prendesse Gregorio Ferreira de Castro, “contra quem em 28 de Janeiro deste anno me requereo o Indio Joze da Costa Passos”, e que fosse remetido à “Cadeia da Va do Sobral á minha Ordem”. Mesmo não revelando o motivo da prisão, o documento nos permite perceber, mais uma vez, que estes requerimentos não eram somente recursos alegóricos daquele aparelho jurídico do mundo colonial, mas possibilidades reais que os nativos tinham de realizar seus objetivos, como foi o caso da prisão do desafeto do índio Joze. Além desses pedidos que, como dissemos, eram originados de pessoas que aparentemente mantinham um estilo de vida similar ao que era desejado pelo governador, alguns requerimentos indígenas desagradavam os planos de Sampaio, tendo inclusive certo tom de “atrevimento”. No dia 8 de março de 1817, os índios Antônio da Costa e Antônio Francisco Ferreira, da Vila de Mecejana, mandaram um requerimento ao governador da capitania, que os respondeu negativamente no dia seguinte, “ficando os suplentes presos á Ordem do Juiz Ordo de Mecejana”. Apesar de o documento, que está registrado no livro de ofícios do secretário do governo, não deixar claro o conteúdo do requerimento nem o motivo da prisão, supomos que, pela resposta de Sampaio, os índios suplentes estariam reclamando sua liberdade. Em outra ocasião, no mês de outubro de 1814, o governador do Ceará também negou o pedido dos oficiais de Ordenanças índios de Arronches, que pretendiam ser “isentos de todo Serviço das suas Companhias em quanto occupão algum lugar na Camara dessa Villa”. Em resposta, Sampaio disse: [...] Semilhante pertenção não tem fundamento algum nem entre os Indios, nem mesmo entre os brancos, por quanto nenhum Capitão de Ordenanças branco deixa de Commandar a sua Companhia nem de executar todas as Ordens relativas ao Serviço das Ordenanças em Quanto Ocupa algum lugar de Vereador, O que VMce da minha parte lhes fará constar afim de que assim o fiquem entendendo [...]. Por esses dois exemplos, percebemos que os requerimentos dos índios iam muito além de uma busca para agradar ao governador ou uma tentativa de provar que estavam agindo da forma desejada pelo poder político, partindo inclusive de pessoas que estavam presas. E nesse caso de 1814, Sampaio registrou mais uma vez o que já dissemos anteriormente: os indígenas não estavam em pé de igualdade com os brancos, como é deixado bem claro no documento. Mesmo assim, essa situação não era inibidora da ação e articulação dos nativos em prol de seus objetivos, estando eles ou não de acordo com o governo. Observamos também a considerável variedade de intenções associadas a essas petições, sugerindo a múltipla situação social dos índios. Mais do que um grupo coeso e uniforme, a população indígena no Ceará era heterogênea, composta de individualidades e setores diferentes, com histórias, conjunturas e possibilidades particulares. A própria existência de requerimentos tão diversos – indo do pedido de soltura até a isenção de funções da elite indígena local – é uma prova nesse sentido. Porém, mesmo com toda essa diversidade, pudemos observar que essa condição não barrou a organização de certos grupos – como foi o caso dos oficiais índios de Arronches – que, a partir das demandas de determinados momentos, se uniram e agiram, de acordo com o que lhes era possível, para conseguir aquilo que queriam. Pedidos comunitários e o “prêmio da revolução de 17” Além dos requerimentos individuais, também nos deparamos na documentação com algumas representações de natureza comunitária, por parte dos indígenas, na qual agiam juntos pelo bem do interesse comum. Em abril de 1812, Sampaio expediu ofício ao diretor de Mecejana sobre uma solicitação feita pelos índios desta vila para que protegessem as suas lavouras contra o avanço de algumas rezes: Os Indios da sua Direcção me representarão que elles virão constantemente os seus roçados, e plantações destituídas pelos Gados de Alguns Vizinhos que abusando da licença que lhes Concedia para fazerem algumas plantações passarão a criar gado com manifesto prejuizo dos Indios dessa Direcção. Vmce me Informara sobre o contheudo nesta Representação. Assim como aconteceu com o índio Egídio, de quem falamos anteriormente, em Mecejana o problema apareceu de maneira semelhante: as lavouras dos indígenas foram danificadas pela negligência dos não índios. E como já dissemos antes, situações desse tipo não eram ignoradas pelo governador, por ser de extrema importância que todos os setores da população mantivessem suas próprias terras de forma ordenada e produtiva. Mas aqui há o diferencial de que, indo além de algum interesse particular, a comunidade desta vila se organizou para conseguir proteger os seus bens. Indo de encontro à ameaça externa, os índios de Mecejana se uniram e buscaram apoio na política e na legislação que lhes garantisse proteção, fortalecendo-se como um grupo que, por não estar em situação de igualdade com os demais, possuía direitos especiais e possibilidade de lutar por eles. Ou seja, mesmo sendo dominados pelo rei de Portugal, era justamente na inserção dessa sociedade e nos seus elementos jurídicos que conseguiram o apoio em suas ações contra aqueles que os agrediam. Como podemos perceber, os índios não estavam alheios a esta sociedade que os cercava, e nela conseguiram sobreviver pelo domínio em várias questões específicas que lhes atingiam diretamente, tanto em termos jurídicos quanto políticos. Conhecendo as leis a que estavam submetidos, era possível inclusive tentar alterá-la, com objetivos diversos e de acordo com a conveniência. No Ceará desse período não aconteceu diferente: já que aí ainda era aplicado o Diretório dos Índios (mesmo depois de sua extinção), pudemos coletar registros de tentativas por parte de lideranças indígenas que, agindo em grupo, buscaram anular este conjunto de leis. Durante o mandato de Sampaio, a questão legislativa sobre os índios esteve algumas vezes em evidência, por tentarem abolir, eles próprios, esta lei que, desde o século anterior, fazia diminuir sua representatividade e seu direito a terra. Aumentava o poder leigo sobre eles e, consequentemente, recrudescia a violência a que estavam submetidos. As ações dos índios neste governo tiveram início em 1814, quando os nativos de Vila Viçosa Real elaboraram um enorme requerimento dirigido à Dona Maria I, pedindo a abolição da legislação pombalina, “justamente para quem outrora havia declarado extinto o Diretório” em 1798. Trabalhado por Maico Xavier, o autor desenvolveu uma análise detalhada e profunda sobre este requerimento, reservando-o um capítulo inteiro de sua dissertação. Neste documento, os indígenas “narraram sobre a dinâmica entre eles e diretores evocando acontecimentos que se deram desde a elevação da Aldeia da Ibiapaba” à categoria de vila, “citando o nome de cada um e descrevendo, segundo eles, os males que aqueles haviam praticado”. Apresentando detalhes de seus cotidianos, bem como dos sofrimentos e injúrias que padeciam diante de cada diretor, os nativos se colocaram diante das autoridades na busca de alterar o plano legislativo sob o qual viviam. Pediam, ao final das trágicas descrições, que “Vossa Magestade Fidellicima mande recolher o Directorio por hum Decreto para que os senhores brancos, e outras qualidade de pessoas que residem nas terras dos Indios cada hum procure as suas Patrias”. Mais do que a extinção da lei, a vontade dos nativos foi além, propondo inclusive o fim do poder dos diretores, a saída dos “extra-naturais” e, enfim, o estabelecimento definitivo de sua própria autonomia em suas terras. Ao ratificar uma “ancestralidade, citando nomes de Principais e destacando a participação nas guerras e serviços dos brancos”, podemos ver, pela dimensão dessa ação, a enorme capacidade dos índios de transitar entre os elementos do Império, a quem estavam submetidos. Percebemos também que essa vontade de que os brancos saíssem da vila se assemelha ao que encontramos na maioria dos requerimentos aqui analisados, no sentido de que boa parte das reclamações dos nativos tinha como motivo os danos causados pelos vizinhos brancos que habitavam suas terras. Além disso, tal pedido se configurou como uma manifestação identitária dos indígenas, ao irem à contramão das diretrizes pombalinas de inserção dos índios na sociedade lusitana, por meio da busca de existirem socialmente e serem percebidos como distintos. Todavia, a resposta do governo imperial foi negativa. Em ofício de outubro deste ano, dirigido a Sampaio, o ministro do reino Marques de Aguiar colocou que o “Principe Regente Meu Senhor” mandou informar que “sobre as pertenções dos supplicantes [...] o Mesmo Senhor as não Resolve”. Mas mesmo expressando o “não comprometimento do Estado com os interesses indígenas naquele insejo”, tal tentativa dos índios de Viçosa Real mostrou que estes “não ficaram inertes ante a nova situação que se configurava”, sendo fruto da “compreensão indígena em relação às mudanças ocorridas ao longo dos anos e sobre a realidade na qual se inseriam naquele momento”. Não obstante o pedido dos índios de Viçosa não ter sido atendido por Dom João IV, as questões acerca das tentativas de mudanças na legislação continuaram a aparecer na documentação de datas posteriores. No mês de maio de 1815, Sampaio enviou ofício ao diretor e ao sargento-mor da Vila Viçosa Real, pedindo suas opiniões em relação ao pedido feito pelas autoridades índias da capitania. De acordo com o governador, um requerimento produzido pelos “principaes Indios das Villas de Arronches, Soure, Mecejana, e Villa Viçosa” foi levado por eles “no anno de 1790 aos pes do Throno dos nossos Augustos Soberanos pedindo que se alterem alguns dos artigos do Directorio por que se governão”. Apesar do pedido ter sido feito 25 anos antes deste ofício, o reaparecimento do assunto se somou a ação movida pelos nativos da Ibiapaba no ano anterior, sugerindo que ele não havia sido esquecido pelos indígenas requerentes, mesmo depois da negativa da corte. Tal situação levou inclusive o governador a consultar o pensamento dessas autoridades em Viçosa: justamente àqueles que faziam parte do grupo social denunciado pelos requerentes. Já em agosto de 1816, o tema voltou a aparecer na documentação, desta vez em um ofício dirigido ao governador do Maranhão, no qual foram tratados assuntos diversos. Em certa parte do documento, Sampaio pediu ao líder do governo maranhense uma cópia do Regimento das Missões contido no “Directorio dos Indios de 1757 de que prezentemente muito necessito” para que, com isso, pudesse dar seu parecer à Mesa de Desembargo do Paço “sobre hum requerimento dos Indios desta Capitania em que pedem que se revogue ou annulle o dito directorio”, em referência ao documento de 1814 por nós analisado anteriormente. Este trecho novamente nos sugere o que já dissemos: passados quase dois anos, esta polêmica questão continuou insolúvel, já que Sampaio ainda haveria de dar seu parecer sobre ela. Além disso, os índios não deixaram de lado o desejo de alterar as leis que os comandavam, mostrando que não eram passivos neste universo em que viviam. Mesmo inseridos em ambiente no qual não mais tinham nenhuma liberdade de manifestar seus costumes e cotidianos próprios, isso não os impediu de agir. Foi justamente neste “novo” mundo e com a apropriação de seus elementos – inclusive das leis e dos recursos jurídicos – que tentaram realizar os seus objetivos. Este não foi o único evento em que os nativos procuraram alterar a legislação que lhes regia na busca de concretizar seus interesses. Num momento de importante contribuição a serviço da Coroa, os índios foram premiados, em 1819, pelo rei Dom João VI, por conta de sua participação na Revolução Pernambucana de 1817. A inserção destes nativos na guerra, demonstrando lealdade ao monarca, possibilitou-lhes conseguir diversas vantagens individuais, além de melhorias para suas comunidades, como aconteceu no caso da isenção dos impostos. No mês de fevereiro de 1819, o soberano do Império português expediu um decreto “isentando os indios do Ceará, Pernambuco e Parahyba de pagarem o subsidio militar, e porcentagens aos Directores das aldeias”. De acordo com o texto do Instituto do Ceará sobre a administração de Manuel Ignácio de Sampaio, os nativos que lutaram nos conflitos foram premiados [...] por sua fidelidade á Coroa com isental-os do pagamento do Subsidio militar... O dito Dec. estatuiu mais que as patentes dos mesmos Indios sejam isentas do direito de sello [...] e que elles não sejam mais obrigados a pagar quotas partes aos ditos directores aos quaes dora em diante se estabelecerá o que for devido. Por obediência a essa ordem régia, Sampaio expediu em setembro deste ano uma circular a todos os diretores de vilas de índios no Ceará, onde os ordenou que [...] de ora em diante não deve Vmce mais receber dos Indios dessa Direcção os 6 por cento que ategora lhe tocavão do producto das culturas dos mesmo Indios mas tambem que no fim de cada quartel mandará receber na Thesouraria Geral do Real Erario desta Capitania o ordenado que a Junta da Real Fazenda lhe arbitrou na forma das Ordens de S. Magestade. Constatamos que a participação dos índios não se deu de maneira inocente. Além de terem sido obrigados a lutar nos conflitos, os nativos recrutados agiram também de forma pensada, e o seu suposto entusiasmo, registrado na documentação, pode ser interpretado como sinal de discernimento frente à situação que estavam envolvidos, bem como da busca intencional de benefícios. Dessa forma, todos esses “prêmios” ligados aos impostos que recebiam não significaram pura “bondade” dos governantes, mas principalmente de conquistas de indígenas que conheciam bem a realidade em que viviam. Porém, as ações dos índios em busca de mais vantagens para si e suas comunidades não pararam por aí. Agindo em conjunto, os nativos não só mostraram fidelidade ao rei, como também buscaram conseguir benefícios além daqueles já adquiridos. Pelo que observamos na documentação, os indígenas da Vila de Monte-Mor Novo tentaram, através de requerimento dirigido ao governador da Capitania do Ceará, em dezembro de 1819 – três meses depois da circular encaminhada aos diretores de índios – conseguir o abatimento de outro imposto, desta vez daquele relativo à manutenção dos prédios públicos. Por conta deste pedido, Sampaio enviou ofício ao capitão-mor desta vila tratando de diversos assuntos, e entre eles, disse-lhe que ficasse [...] na inteligencia de que os Indios por serem Indios não deixão de ser Vassallos de S. Magestade, e como taes sugeitos a todos os tributos da mesma forma que os outros Vassallos excepto áquelles tributos de q’ S. Magestade os tem expressamente aliviado, em cujo caso naõ está á Decima dos Predios Urbanos. Mas sobre tal objecto podem os mesmo Indios requer á Junta da Real Fazenda desta Capitania a quem exclusivamente toca a decisão de similhantes requerimentos. Ao negar o pedido dos nativos, Sampaio ordenou ao capitão-mor que fosse deixado bem claro aos índios que, apesar de terem uma condição social específica naquele universo, segundo vimos em outros momentos do texto, não seria por isso que deixariam de ter as mesmas obrigações dos outros súditos do Império português, inclusive tributárias. Na verdade, era justamente essa a intenção da política indigenista de Portugal em todo o Brasil: a transformação daqueles antigos “bárbaros” silvícolas em “vassalos” fiéis, cristãos e civilizados. A própria cobrança de impostos e o seu recrutamento em conflitos que ameaçavam a autoridade do poder real podem ser compreendidos como estratégias de controle, disciplinamento e inserção dos indígenas na sociedade colonial. Até a premiação dada a esses índios foi uma ação governamental que agiu com o objetivo de incentivar o amor desses povos à coroa lusitana. Mas como foi possível constatar, os nativos não se comportaram de maneira inerte frente às práticas governamentais, como se tais acontecimentos os arrastassem de forma irresistível e sem deixar-lhes espaços para movimentação, resistências ou negociações. Mesmo sem poder negar o recrutamento, o evento de 1817 serviu como oportunidade para que os indígenas obtivessem ganhos, dos quais possuíam suficiente conhecimento. Inclusive, a consciência que tinham da realidade em que viviam foi tal que lhes permitiu requerer o abatimento de mais impostos, contrariando por isso o governador da capitania e fazendo-os lembrar de suas condições, mas ainda, assim, não descartando a possibilidade que tinham de recorrer à Junta da Real Fazenda. Percebemos que não só os índios conheciam os aspectos legais e tributários daquele mundo – os tipos de impostos que lhes eram cobrados – como também as formas de agir para conseguirem isenções. A produção de um requerimento que pedia a ampliação dos benefícios adquiridos foi mais um exemplo das constantes táticas de índios que, ao contrário do que sugeriu o silêncio da historiografia tradicional, buscaram frequentemente manipular os elementos desse universo onde eram obrigados a viver. Nesses embates travados entre os grupos indígenas e governo, por meio dos requerimentos, se configurava uma disputa pelo “poder de reger as fronteiras” entre o que era ou não permitido a esses “vassalos de Sua Majestade”, ou mesmo o que os definia enquanto tais. Por meio dessas ações legais, os nativos travaram lutas pelo poder de nomear e definir sua própria “visão do mundo” e suas identidades, nascidas dos constantes conflitos simbólicos entre as imposições governamentais e as resistências das comunidades e indivíduos indígenas. A documentação colonial, referente a requerimentos de índios, nos possibilitou, através de uma análise acerca da realidade daquele período, rediscutir certas “verdades” construídas ao longo do tempo sobre essas populações. Ou seja, o silêncio que havia sobre o passado dessas pessoas não se explica a partir da carência de vestígios ou de uma suposta “inércia histórica” que os revestiria, mas sim de escolhas e interesses bem precisos. Se ainda hoje alguns setores da academia encaram os indígenas na condição de massa amorfa e inerte, acometida passivamente pela dominação colonial, trabalhos recentes trazem à tona as criativas e inovadores capacidades de resistência nativa ao longo da história. O que a historiografia atual revela é que o interesse faz parte da condição humana, e, como tal, ainda que os nativos não fossem reconhecidos dessa forma, eles possuíam desejos, que dialogaram, e muitas vezes digladiaram com os governantes para assim construírem a história do Ceará. Isso não quer dizer que as populações nativas dominavam a situação, ou que a colonização não teria sido tão agressiva para eles. Muito pelo contrário, percebemos que, com o passar do tempo, a vida desses povos tendia a ficar cada vez mais difícil, e sua liberdade ainda mais cerceada. Não é possível que haja dúvida: no mundo colonial, os índios eram os dominados, e todo o projeto colonizador dirigido para eles tinha como propósito a destruição de suas práticas culturais e sua consequente inserção no mundo civilizado. Nesse sistema, o fato de “ser um súdito cristão [como eram os índios das vilas pombalinas] não implicava absolutamente numa condição de igualdade”. Porém, uma vez dentro desse universo, as populações indígenas nunca se colocaram de forma passiva diante dos acontecimentos; ao contrário, lutaram com os recursos que lhes eram disponíveis em prol de seus objetivos. Até mesmo a “assimilação” do modo de vida ocidental, longe de ser resultado de uma suposta fraqueza diante de uma cultura mais forte, se configurava ação diante de uma conjuntura de onde não era possível fugir. A partir daí, percebemos que assimilar algo passa a significar apropriar-se de determinado elemento com um fim específico. As “políticas indigenistas desenvolvidas por membros do Império português”, seja em termos mais amplos, como foi o caso do Diretório, ou em âmbito mais local, como o que acontecia na capitania cearense, “adquiriram uma dimensão fundamental, pois era em relação às mesmas que os índios se autodefiniam, individual e coletivamente, e projetavam as suas ações”. Se os índios do Ceará colonial pediram, lutaram e agiram – nos campos políticos, jurídicos e legislativos – em prol de seus interesses, como os requerentes que apresentamos, isso significou que sua história, longe de materializar a lenda do “papel em branco”, foi feita também, e efetivamente, por eles. Fontes: Arquivo Público do Estado do Ceará Fundo “Governo da Capitania” Livros: 15, 16, 17, 19, 20, 22, 23, 93 e 95. Referências bibliográficas ADMINISTRAÇÃO Manuel Ignácio de Sampaio (1º visconde de Lançada), Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, ano 30, p. 240, 1916. ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena: deslocamentos e dimensões identitárias. Dissertação (Mestrado) ‒ Universidade Federal do Ceará, 2002. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios aldeados no Rio de Janeiro colonial: novos súditos cristãos do império português. Tese (Doutorado) ‒ UNICAMP, 2003. BOCCARA, Guillaume. Antropologia diacrónica. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2005. Disponível em: . BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia portuguesa (1653 – 1769). Tese (Doutorado), UNICAMP, 2005. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano - I: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008. 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Cabôcullos são os brancos: dinâmicas das relações socioculturais d Grupos | 21/03/2013 Responder ▼ Joao Paulo Peixoto Costa Agendar limpeza Para temince@yahoogrupos.com.br [Anexos de Joao Paulo Peixoto Costa incluídos abaixo] Olá Maria, coisa boa receber notícias suas! Estou em Campinas, me "astrevendo" (como diz o caboco) no doutorado! Por aí só vou em julho quando tiver férias. Quando coloco o texto no corpo da mensagem fica muito ruim. Vou fazer o seguinte: vou mandar de novo em pdf, mas também no word, talvez seja mais fácil de baixar. E envio também o link do site do IHGB onde é possível baixar o arquivo, lembrando que o meu texto está no volume de número 456. http://www.ihgb.org.br/rihgb.php?s=p E por aí, como vão as coisas? Grande abraço!! JP De: Maria Amelia Leite Para: temince@yahoogrupos.com.br Enviadas: Domingo, 3 de Março de 2013 16:41 Assunto: Re: [temince] revista n. 456 ihgb João Paulo Peixoto Costa Como vai Você ? Quando vai aparecer por aqui ? Vi a sua noticia sobre o artigo sobre o cotidiano indígena no Ceará oitocentista mas não consegui abrir. Tenho empre esta dificuldade. Não sei porque. Ser´que Você poderia me enviar no corpo da mensagem? Tenho uma grande pena de não consegui-lo por aqui. Um abraço grande e muita força na luta, Maria __._,_.___ Anexo(s) de Joao Paulo Peixoto Costa 2 de 2 arquivo(s) rihgb2012numero0456.pdf Cotidiano indígena.doc

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