quarta-feira, 7 de abril de 2010

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, REQUER ZELO, AMOR E COMPROMISO.


Ao abordarmos determinadas questões ligadas ao espaço político do debate entre professores e lideranças indígenas acerca dos seus projetos de formação docente, buscamos apreender os diversos sentidos atribuídos ao projeto das escolas diferenciadas e ao ser professor indígena. Na consideração de tais aspectos, vimos como a escola e o professor são descritos sob muitas imagens, olhares e lugares, descortinando os consensos e os dissensos que caracterizam o projeto de formação docente dos Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé. Desse modo, procuramos indicar, em diversos momentos do texto, que os discursos tendem a situar a escola diferenciada numa posição estratégica dentro de um projeto de educação escolar que visa assegurar, material e simbolicamente, um modo de ser particular. Nesse contexto, como vimos, o professor ocupa um papel de destaque, sendo descrito como o seu principal agente.

Buscaremos tecer, doravante, nossas considerações finais tendo em mente os sentidos das imagens da escola e do professor indígena, lembrando que, nas trajetórias recentes de construção identitária destes sujeitos, as lutas em torno de seus projetos educativos têm desempenhado um importante papel. Assim, reivindicando o direito à diferença e fazendo surgir na arena política novos sujeitos coletivos, com a maior mobilização dos grupos étnicos organizados, os índios exercitam a construção e defesa de uma unidade de interesses nas interações estabelecidas com o outro (e também entre si) no âmbito de suas experiências formativas.

Como vimos no primeiro momento do texto, as identidades (sobretudo as identidades étnicas) podem ser percebidas, principalmente, como trajetórias em curso, apreendendo-as fora dos quadros conceituais que pregam a sua fixação, invariabilidade ou determinação. Definida, sob a influência do pensamento de Barth (1998) como um “tipo organizacional” com vistas à conquista política de espaços de participação e afirmação de grupos, as identidades étnicas possuem um caráter situacional e contrastivo, presentes nos contextos de interações interétnicas. Assim, longe de se constituírem como categorias naturais ou inatas ao indivíduo, segundo uma visão essencialista, as identidades étnicas são percebidas neste texto, primordialmente, como formas de organização social, delimitadas pelos critérios de auto-atribuição e atribuição pelos outros do seu caráter distintivo. Foi nesse sentido que nos propusemos abordar os processos identitários dos índios, acreditando que tais considerações possam ser extensivas, pelo menos em suas linhas gerais, aos grupos que vivem em contextos de etnogênese.

Nas trajetórias indicadas, as dimensões do medo e do preconceito foram apresentadas como marcas historicamente traduzidas na estigmatização destes grupos, mostrando como as idéias de assimilação, integração ou aculturação estavam presentes, até recentemente, nas experiências educativas dos índios. Assim, a perspectiva denominada de educação escolar para índios apresentava o objetivo precípuo de preparar mão-de-obra para servir aos interesses econômicos do Estado ou dos grupos missionários que, desde os primórdios da colonização, têm atuado junto a essas comunidades. Emerge, nesse contexto adverso às construções identitárias diferentes, a figura misturada do caboclo, identidade genérica que visava designar os grupos indígenas que, na visão do outro, foram assimilados ou aculturados.

Assim, a estigmatização que esses indígenas vêm sofrendo desde o século XVIII com as políticas de aldeamento e miscigenação, exerceu notada influência em suas práticas sociais identitárias, cujos resquícios ainda se fazem presentes quando eles buscam passar de caboclos a índios, tentando afirmar suas diferenças étnico-culturais em meio ao difuso ou genérico. As disputas de interesses que surgem no confronto entre as políticas de negação das identidades diferenciadas dos grupos étnicos, levadas a cabo pelas elites dominantes, e a crescente busca de afirmação identitária dos índios, esclarece a condição, já apontada por Cunha (1995), de que só há direitos indígenas se houver índios.

No entanto, como vimos, principalmente a partir da década de 1980, a diferença, a partir de uma maior mobilização do movimento indígena e organização política dos grupos, passa de estigma a elemento privilegiado da afirmação étnica. Neste contexto de mudanças semântico-políticas, tomando o curso de formação como locus de nossa observação, buscamos apontar para determinados traços da história de tais grupos. Observamos, então, que as questões da diferença e da diversidade cultural assumem uma nova importância na elaboração de propostas das escolas indígenas ou dos cursos de formação desses docentes, caracterizando o que chamamos de educação escolar dos índios.

Assim, na descrição do quadro político que se anuncia a partir de uma maior inscrição do movimento indígena no cenário público com o processo de reemergência étnica e afirmação identitária dos índios no Nordeste, vemos a emergência de novos sujeitos políticos. Estes lutam coletivamente pela conquista dos direitos sócio-históricos particulares dos índios, por meio de espaços como os debates em torno dos projetos de uma educação diferenciada, apresentando, na arena política, os interesses e intenções de seus grupos étnicos. Através de táticas e estratégias que visam a sua reprodução enquanto grupo, eles buscam, com efeito, tomar parte em diversos campos de poder e decisão que lhes dizem respeito.

A figura desse novo sujeito coletivo e suas ações políticas, sugeridas no debate entre os formadores indígenas, está ligada às questões apontadas no texto que tomam os índios como sujeitos/atores/autores de seus processos educativos. A educação escolar diferenciada, dessa forma, aparece como uma expressão desta condição de autoria almejada pelo movimento social indígena. Assim, o termo diferenciado, inicialmente apropriado pelos índios na demarcação das fronteiras entre a escola nacional e a escola indígena, tem sido usado com o fito de assegurar, entre outras coisas, a afirmação de suas identidades étnicas e outros direitos sociais. Com efeito, essa prática de ensino vem se constituindo nas ações particulares de cada professor, aluno, liderança e comunidade no diálogo com o outro (agentes, discursos e práticas da educação nacional).

Além disso, a luta pela constituição das escolas diferenciadas também tem influenciado na elaboração das leis que regulamentam a educação escolar dos índios, no âmbito nacional, estadual e municipal. Assim, tanto no cotidiano da sala de aula das escolas diferenciadas quanto nos cursos de formação dos docentes indígenas, se fazem presentes as discussões que repercutem na proposição de normas e resoluções orientando a prática escolar destes povos. No Ceará, por exemplo, parte desses debates resultaram nas diretrizes básicas da Resolução nº 382, editada pelo CEC, que dispõe sobre a criação das escolas indígenas no sistema estadual de ensino. Como observamos, tanto nos cursos de formação docente, quanto no cotidiano das salas de aula das escolas diferenciadas existentes no Ceará, há uma notada ênfase no ensino da legislação indigenista, mostrando que a escola é um espaço privilegiado para a realização desses debates e que o professor é um dos seus principais articuladores.

Como vimos, são construídos nesses debates os contornos das fronteiras, estabelecidas pelos índios, entre um nós (dividido em nós-nós e nós-outros) e o outro, mostrando que as diferentes táticas e estratégias de afirmação identitária dos índios estão ligadas a posturas diversas a respeito de suas interações interétnicas. É dessa forma que o movimento pelas escolas diferenciadas não tem o mesmo significado para todos os grupos indígenas. Como vimos, os índios partidários da perspectiva do nós-nós, comungando de uma idéia essencialista de identidade e cultura, defendem a organização de suas escolas a partir do emprego dos sinais diacríticos tradicionalmente atribuídos aos indígenas. Assim, devem resgatar suas tradições culturais em práticas educativas, como o ensino da língua Tupi, ameaçadas pela presença impositiva dos valores e símbolos da educação nacional.

Noutro sentido, os índios que adotam uma visão mais relacional de suas tradições culturais e símbolos identitários, caracterizando a atitude denominada de nós-outros, acreditam que a sua organização escolar deve estar orientada para a mediação com os saberes da sociedade envolvente. Dessa forma, as transformações que decorreriam do contato com o outro não ameaçariam suas identidades, tendo em vista que, segundo uma lógica de troca, seria dessa forma que seriam construídas e percebidas as suas próprias especificidades étnico-culturais.

Seguindo essas sugestões e sabendo que a escola indígena está inserida no contexto da educação nacional, não devemos, sob o risco de lançarmos um olhar ingênuo sobre essa realidade educacional, esquecer o seu papel de mediadora entre dois mundos. Assim, de acordo com o exposto, na escola diferenciada é proposta uma pedagogia que se constrói na fronteira entre os modelos de transmissão da educação nacional e os considerados específicos de cada grupo étnico. Embora esses modelos, de forma tradicional, sejam considerados teoricamente como antagônicos (MELIÁ, 1979), os discursos analisados evocam o desejo de encontrar uma conexão entre eles. É dessa forma que se explica os conflitos, tensões e contradições, presentes na proposta educacional das escolas diferenciadas, matizadas pela postura do nós-nós e do nós-outros. Compreendemos as escolas indígenas, nesse sentido, como regiões fronteiriças, no sentido de espaços de trânsito (TASSINARI, 2001) entre os conhecimentos, traduzidos em crenças, práticas e discursos, dos índios e dos não-índios.

Desse modo, uma de nossas preocupações principais foi apontar para o lugar que as escolas diferenciadas ocupam na vida desses grupos étnicos. Buscamos mostrar, nesse sentido, que as práticas escolares também são uma forma de estratégia política inserida no conjunto de reivindicações do movimento indígena. A escola diferenciada e o curso de formação, por conseguinte, foram apresentados, em diversas passagens do texto, como espaços de circulação e revitalização das tradições culturais, descritos como os fatores principais no fortalecimento da luta, conscientização, a identificação mais forte, manter a tradição e luta da comunidade, de acordo com a figura abaixo, construída segundo o desenho final traçado nos Planos Evolutivos.

Percebemos, então, que o modelo da escola diferenciada, pautado na idéia da mediação sócio-cultural dos grupos étnicos com a sociedade envolvente, constituiu-se em fator determinante para a proposta de formação dos docentes indígenas. Vimos ainda que tal proposta esteve sujeita a influências de várias instâncias oficiais e não-oficiais. Observamos, portanto, que as inter-influências exercidas pelas diferentes forças sociais em curso (comunidade e governo) e dos próprios professores como indivíduos, caracterizaria, de um modo geral, esse processo de formação.

Considerando a atividade docente como sendo constituída pelo exercício de saberes particulares, vimos que, entre os indígenas, ela se apresenta como um complexo mosaico de imagens que projetam o ser e o vir a ser professor, configurando, de modo específico, seus papéis sociais. Sendo assim, observamos que é reclamado um comprometimento político-cultural do professor indígena com sua comunidade étnica. O alcance de sua ação, portanto, transcende as questões mais pontuais do cotidiano da sala de aula. Evocando um forte sentimento de implicação do professor nas questões do movimento indígena de modo geral, e da sua comunidade em particular, procuramos indicar, em linhas gerais, os consensos e dissensos nos discursos de professores e lideranças indígenas. Vimos, portanto, as continuidades entre as diversas imagens do professor índio, transitando entre a docência, a militância, a condição de aprendiz e a de agente cultural.

Estas imagens do professor, em certa medida, estão ligadas às funções sócio-culturais da escola, como, por exemplo, a imagem do professor como intelectual ou agente cultural, associada à visão da escola como o local das culturas, lugar para ser índio ou de manter a tradição; o professor como militante, ligado à imagem da escola como o lugar dos direitos, do trabalho coletivo e mecanismo de equalização social; o professor como liderança, vinculado à imagem da escola como o lugar de luta pela comunidade e de preparação para o mundo lá fora.

Como apresentado, é dentro desses contextos que os professores indígenas seguem suas trajetórias, delineando suas identidades docentes em contextos sociais constituidores da educação escolar diferenciada. Compreendemos que é imprescindível considerar a educação escolar como uma instituição pertencente ao patrimônio cultural de toda a comunidade e não apenas exclusivamente dos docentes, possibilitando, dessa forma, o estabelecimento de novos modelos relacionais e participativos nessas práticas escolares. Pois a docência comporta um conhecimento pedagógico específico, um comprometimento ético e a necessidade de dividir responsabilidades com outros agentes sociais. Assim, os docentes se movem em um delicado equilíbrio entre suas tarefas profissionais e a estrutura de participação social na qual se inserem (IMBERNON, 2004).

Na caracterização do curso de magistério indígena, vimos que este é descrito como um palco privilegiado para índios e não-índios vivenciarem, numa prática educativa específica, a diversidade e interculturalidade tão presentes nos seus discursos. Na descrição, foram desvelados os conflitos latentes, tanto entre os índios – os nós-nós e os nós-outros –, quanto entre estes e as instituições presentes na execução do curso de formação – os outros. Os consensos e os dissensos dessas relações mostram que as disputas políticas no campo da educação indigenista, definindo quais os interesses de grupo que se fazem valer na regulamentação e proposição das escolas diferenciadas, assim como quais são os seus protagonistas, explicam os principais motivos destes conflitos. Assim, por exemplo, em meio a parcerias e cooptações, são construídas as relações e conflitos que instituíram o curso de formação dos Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé. De modo geral, a expressão desses conflitos nos leva a compreender a formação dos professores indígenas como “uma actividade relacional e de intercâmbio, com uma dimensão evolutiva e destinada a atingir metas conhecidas” (GARCIA, 1999, p.22).

Segundo o olhar dos de dentro, os próprios professores indígenas definem seus papéis para além das tarefas de, essencialmente, ensinar a ler e a escrever, quando afirmam, por exemplo, que por ser um educador não pode ficar preso só à área da educação, como nos ensina o professor Jurandir. De forma semelhante, sublinha Gimeno (1999, p.91) que “A prática educativa é algo mais do que a expressão do ofício dos professores é algo que não lhes pertence por inteiro, mas um traço cultural compartilhado”.

Percebemos, no âmbito da educação escolarizada dos índios, não existir um discurso genuinamente indígena. Eles são polifônicos, produtos das interações sociais estabelecidas no diálogo entre diferentes atores. Assim, por exemplo, as idéias de escolas diferenciadas, de professores indígenas e, por extensão, dos cursos de formação desses docentes, não são elaborações primordial e unicamente apresentadas pelos índios. Nesse sentido, nossa condição enquanto pesquisadora implicada no campo da educação indígena, pelo nosso pertencimento étnico e como técnica do governo atuante nessa área, nos levou a refletir sobre estas questões problematizadoras. Percebemos ainda, nas sutilezas dos discursos, entre seus claros e escuros, a possibilidade de nos aproximarmos de uma interpretação da realidade social construída a partir de discursos localizados, tendo-se em mente que tais discursos são sempre parciais e provisórios.

Os discursos analisados apresentaram temas que suscitam outras abordagens e reflexões, despertando-nos a curiosidade para futuras pesquisas. Com efeito, é nosso desejo que essa curiosidade se estenda a outros pesquisadores, mormente da educação. Assim, na investigação das questões que dizem respeito à educação diferenciada e ao ser professor indígena, como as práticas educativas interculturais, a idéia de espaço de fronteiras e os sentidos políticos dos debates entre os formadores indígenas no processo formativo de seus docentes, nos levou a pensar no papel desempenhado pelos diferentes projetos de uma educação escolar diferenciada nos trajetos histórico-formativos dos índios. Nesse aspecto, emergem diversos questionamentos relacionados, sobretudo, aos processos de constituição da identidade profissional do professor indígena. Assim, começamos a nos perguntar sobre quais as perspectivas histórico-culturais individuais que estão presentes nos discursos de professores e lideranças a respeito da identidade profissional dos docentes indígenas.

O tema da docência na educação escolar indígena, pouco investigado na atualidade, portanto, nos conduz a uma série de questionamentos a respeito do papel desempenhado por este novo sujeito político nas áreas indígenas. O processo de desenvolvimento formativo dos professores índios, então, pode nos conduzir a diferentes histórias e experiências de vida, tendo em vista que esse processo não se limita à escolarização, ocorrendo nos diversos momentos vividos pelos indivíduos em seus contextos sociais. Buscamos, desse modo, pesquisar no campo da formação de professores indígenas, alguns dos fenômenos que envolvem a educação escolar indígena, inscritos no percurso de vida de determinados sujeitos. Tais preocupações assumem um sentido particular quando investigadas por uma pesquisadora duplamente implicada nestas questões, enquanto pertencente a um grupo étnico e técnica da educação escolar indígena.

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