segunda-feira, 17 de maio de 2010

Augusto Laranjeiras Sampaio Antorpologo e Kelly Jornalista

Como antropóloga e jornalista percebo, como muitos de vocês, o caráter declaradamente parcial da linha editorial da revista, que de fato não pretende se
apresentar
como um meio de comunicação que ponha em discussão os dois ou mais lados de uma questão. Sua pretensão é a da formação de opinião a partir de um
posicionamento parcial,
enfático e carregado de uma expressividade de "dona da verdade", baseada na longa data de existência e, para grande parte do público que a lê, na suposta
seriedade
de seus artigos – já que não podemos chamar de matéria jornalística escritos tão escancaradamente opinativos como os deste periódico.

Até aí nada de errado, já que a revista se declara abertamente opinativa, não escondendo portanto sua parcialidade. Escrevo, no entanto, a fim de percebermos
a forma
como a revista pega cada uma das informações e cuidadosamente as seleciona para ir além da opinião e distorcer, omitir e comprometer o posicionamento ético
que supostamente
acalenta. Começando com as autoridades discursivas citadas – Mércio Pereira Gomes e Eduardo Viveiros de Castro – que demonstram um olhar não só reconhecidamente
parcial com relação ao processo de fortalecimento de identidades étnicas no país, como tiveram suas frases escolhidas a dedo para corroborar com uma perspectiva
de "originalidade cultural" e de deslegitimação do processo de regularização de territórios indígenas – se é que foram mesmo frases deles, pois o
Viveiros de Castro
já desmentiu a presença de qualquer fala sua no artigo.

Por outro lado, o artigo explicita meias verdades, ao citar no box "índio bom é índio pobre", o caso de um grupo que, por "culpa" da Funai, teria perdido a
oportunidade
de vender seu território, em troca de 1 milhão de reais para cada família. Ora, sabemos que, por lei as terras indígenas são propriedade da União e de
posse coletiva
dos Guarani, sendo inalienáveis, o que evidentemente – mas não tão evidentemente no artigo – impossibilita qualquer tipo de negociação. Por outro lado,
ficou explícita
a perspectiva preconceituosa como foi caracterizada a liderança do grupo, que segundo a revista é "casada com um caminhoneiro (branco), tem carro, tv, computador,
faz compras no supermercado" – fiquei pensando se ela seria mais poupada se fizesse compras em alguma vendinha local.

São tantas as meias verdades, que parece difícil numerar todas. Temos, por exemplo, o momento em que são citados os Anacé (CE), como grupo que faz macumba
por achar
que seria indígena, o que o artigo trata de declarar como um erro, já que se trataria de um "culto africano". Omitindo, de forma perspicaz, o fato de que os
grupos
indígenas ao longo dos anos não viveram envoltos em uma bolha cultural, mas estabeleceram relações – de forma enfática naquela região – com populações
de origem
africana, do que derivaram formas culturais ampliadas, englobando a realidade religiosa dessas pessoas.

Curiosamente, ao citar os laudos antropológicos, segundo a Veja elaborados "sem nenhum rigor científico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda
insiste
em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para a produção", se depõe de forma criminosa – que seria melhor ressaltada através de um processo movido
pela ABA
– contra o trabalho de profissionais que têm no rigor científico sua base de ação, desmerecendo processos reflexivos multidisciplinares, que vão além
da antropologia,
englobando saberes não só das ciências sociais, como também históricos, geográficos, ambientais e jurídicos, para citar apenas algumas das disciplinas
envolvidas
na feição do documento.

Os ataques foram bem alimentados com informações cuidadosamente embaralhadas – como a de englobar em um mesmo percentual (77,6%) as terras indígenas, quilombolas,
assentamentos e reservas florestais, como de áreas improdutivas (e o montante sobe para 90,6% quando incluem cidades e infraestrutura). Fiquei me perguntando o
que,
afinal, seria o que o artigo chama de "território para produção e desenvolvimento". Porque produtivas as terras indígenas, quilombolas e os assentamentos
também
são, como temos centenas de exemplos. E até mesmo em áreas de preservação, onde está crescendo a consciência de um manejo sustentável para as famílias
que tiram
seu sustento das florestas. Afinal, para quem se geraria renda com o que foi definido como "agronegócio" pela veja? A grandes conglomerados empresariais? A mega
empresários que pouco ou nada trazem em troca para o país, além de seus nomes divulgados na lista dos mais ricos do mundo (e o que afinal isso contribui para
a vida
dos brasileiros???)

A Veja parte de uma imoralidade ética e ofensiva não só às comunidades tradicionais, antropólogos e indigenistas como também ao próprio jornalismo.
Um olhar preconceituoso,
tanto do que seria as comunidades tradicionais e assentados rurais quanto da perspectiva de desenvolvimento, que pelo que pude ver se refere a uma visão elitista
e antiquada, destinada a negócios que gerem renda para a pequena parcela de privilegiados economicamente. Desmerecendo inclusive a crescente onda de valorização
pela comunidade internacional do trabalho familiar e do comércio responsável, que incentiva a produção local e o manejo tradicional de recursos naturais.

Beira a vergonha a forma escancarada como se ataca os personagens apresentados na matéria, e como se transforma uma reivindicação que, evidentemente, tem também
seu caráter político, em uma estratégia de "espertalhões", para se apossarem de terras que poderiam estar nas mãos produtivas do "agronegócio". Uma jogada
de mestre
desta revista, que transforma a reivindicação de grupos tradicionais em um simples jogo por dinheiro, e que coloca os "cidadãos brasileiros" como vítimas
de índios,
quilombolas e assentados – que, pelo visto, não são brasileiros, e muito menos cidadãos.

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