segunda-feira, 25 de março de 2013

artigo sobre os Tremembé que vivem em Fortaleza disponível no site Programa Bolsa Ford‏




A MULHER SUNAMITA - PIEDOSA, BONDOSA E... HOSPITALEIRA


A MULHER SUNAMITA - PIEDOSA, BONDOSA E... HOSPITALEIRA

"Retenhamos firmes a confissão da nossa esperança; porque fiel é o que prometeu" (Heb 10:23).
"Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação: Que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus" (2Co 1:3-4).Vamos, hoje, conhecer uma mulher cujo nome não sabemos. A Bíblia nos diz que ela morava em Suném e era uma mulher importante.
Para Deus, ela não só era importante mas era uma mulher de coração dócil e sensível. Ao ver que Eliseu, o profeta de Deus, passava sempre por sua cidade, ela abriu as portas de sua casa e seu coração para acolhê-lo. Esta sua atitude mostrou o quanto ela amava e era sensível aos que estavam precisando dela, o quanto ela era hospitaleira, qualidade difícil de se encontrar, hoje em dia.
Esta mulher, conhecida como Sunamita, tem, com certeza, o seu nome na lista de mulheres hospitaleiras. E você, irmã, quer ter este mesmo espírito hospitaleiro da Sunamita? O mesmo espírito hospitaleiro de Marta e Maria, que hospedaram Jesus e os apóstolos? O mesmo espírito hospitaleiro da viúva de Sarepta que ofereceu a última porção de comida que tinha ao profeta Elias? Então, peça ao Senhor para transformá-la numa mulher cujo espírito seja sensível às necessidades do próximo.
Eu e você temos que querer esta transformação, temos que querer ter o coração aberto, que goste de ajudar aqueles que estão precisando de nós, temos que querer ser aquela mulher que percebe e é sensível às necessidades das pessoas.
 Devemos querer ser uma mulher segundo o coração de Deus...

1- que tem a alma aberta às necessidades daqueles que o Senhor coloca diante dela;
2- que enxerga, de longe, os que estão precisando dela;
3- que ajuda com docilidade, amabilidade aqueles que estão necessitando dela;
4- que mesmo tendo pouco, não mede esforços em dividir o que tem com aqueles que estão precisando dela;
5- que está sempre pronta para ajudar o seu próximo;
6- que sempre tem força e coragem para ajudar os necessitados.
Estes e tantos outros atributos faziam parte da vida desta mulher Sunamita, que era um exemplo de hospitalidade, de bondade, de coração piedoso e contente.
Irmã, se Jesus deixou a Sua glória para se tornar homem e servir, lavando os pés daqueles que Ele mesmo criou, os apóstolos, por que eu não posso deixar o meu conforto e me dispor a ajudar as pessoas que estão precisando de mim?
Se a viúva de Sarepta deixou de lado o seu egoísmo e dividiu com o Elias, o profeta do Senhor, o pouco que tinha de farinha e de azeite, por que eu não posso também dividir com quem está precisando a porção que o Senhor me dá, a cada dia?
Se Abraão preparou uma refeição tão suntuosa e ofereceu a três estranhos (Gên 18) que foram até a sua casa, por que eu não posso oferecer um almoço a um pastor ou missionário que está visitando a minha igreja?
Amada irmã, ao lermos a Palavra de Deus, podemos encontrar dezenas de mulheres e homens de Deus que são exemplos de hospitalidade para nós que queremos seguir os seus passos e queremos principalmente agradar ao Senhor sendo mulheres dóceis e hospitaleiras.
Agradar ao Senhor é o que mais desejo em minha vida. No entanto, muitas vezes, não consigo atingir o meu objetivo porque dou lugar à natureza velha que ainda habita em mim. É quando, então, percebo que devo orar mais, ler mais a Palavra de Deus e procurar seguir o que Ele me ensina. A Bíblia me diz que devo orar não só por mim mas também  por você a fim de que "... possais andar dignamente diante do Senhor, agradando-Lhe em tudo, frutificando em toda a boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus" (Col 1:10).

Eliseu se sentia confortável ao se hospedar no quarto que a Sunamita havia pedido ao marido para construir especialmente para ele.
Por causa da generosidade e da hospitalidade desta mulher de Deus é que tornou-se um hábito para Eliseu parar na casa dela.
Iirmã, gostaria de fazer-lhe duas perguntas que poderão medir o seu grau de mulher hospitaleira:
1- "Você já foi hospitaleira numa ocasião difícil ou inconvenientemente?
2- Ou só quando isso se ajustava a seu programa?" ('Elas' de Ann Spangler e Jean Syswerda)
Hebreus 13:2 nos exorta a sermos hospitaleiras. Veja o que esta carta nos diz: "Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos."
Quando estamos no centro da vontade de Deus, obedecendo à Sua voz, certamente, bênçãos virão sobre a nossa vida. Isto foi o que aconteceu com a mulher Sunamita. A Bíblia nos diz que o profeta Eliseu recolheu-se ao seu quarto e se deitou. Conversando com o seu servo Geazi, ele pediu que chamasse a mulher Sunamita. Ela veio e, ao chegar junto ao profeta, ela ouviu dele o seguinte: "... A este tempo determinado, segundo o tempo da vida, abraçarás um filho" (2Re 4:16a).
A mulher Sunamita, com certeza, gostaria de ter um filho mas ela estava com medo de que toda aquela promessa fosse apenas um sonho e não uma realidade. Mas a concretização da promessa aconteceu exatamente no tempo determinado, como disse a Palavra de Deus em 2Re 4:17.
Vejam que presente maravilhoso - um filho! Somente nós que já somos mães sabemos que um filho é a maior dádiva que recebemos do Senhor, depois da salvação. É um presente que teremos conosco até o momento que bem aprouver ao Senhor, pois um filho, na verdade, não é propriedade nossa mas um ser que Deus colocou em nossas mãos para educá-lo, para falar das maravilhas do Senhor, do Seu plano de salvação e para amá-lo, amá-lo e amá-lo.
Às vezes, Deus decide levar nosso filho para junto dEle e nós ficamos tristes, chorosas e com muita saudade. Isto aconteceu comigo - o Senhor decidiu levar o meu filho Mauro - 27 anos, filho amado e mui querido - para junto dEle. Isto também aconteceu com a mulher Sunamita - o Senhor decidiu levar o filhinho dela. Posso imaginar o seu desespero e a sua decisão de ir até Eliseu contar o ocorrido. Em 2Re 4:28-36, podemos ver tudo o que aconteceu:
"E disse ela: Pedi eu a meu senhor algum filho? Não disse eu: Não me enganes?
 E ele disse a Geazi: Cinge os teus lombos, toma o meu bordão na tua mão, e vai; se encontrares alguém não o saúdes, e se alguém te saudar, não lhe respondas;  e põe o meu bordão sobre o rosto do menino.
Porém disse a mãe do menino: Vive o Senhor, e vive a tua alma, que não te hei de deixar. Então ele se levantou, e a seguiu.
E Geazi passou adiante deles, e pôs o bordão sobre o rosto do menino; porém não havia nele voz nem sentido; e voltou a encontrar-se com ele, e lhe trouxe aviso, dizendo: O menino não despertou.
E, chegando Eliseu àquela casa, eis que o menino jazia morto sobre a sua cama.
Então entrou ele, e fechou a porta sobre eles ambos, e orou ao Senhor.
E subiu à cama e deitou-se sobre o menino, e, pondo a sua boca sobre a boca dele, e os seus olhos sobre os olhos dele, e as suas mãos sobre as mãos dele, se estendeu sobre ele; e a carne do menino aqueceu.
Depois desceu, e andou naquela casa de uma parte para a outra, e tornou a subir, e se estendeu sobre ele, então o menino espirrou sete vezes, e abriu os olhos.
Então chamou a Geazi, e disse: Chama esta sunamita. E chamou-a, e veio a ele. E disse ele: Toma o teu filho."
Comigo não aconteceu o mesmo. Não tive o privilégio de ter o profeta de Deus, Eliseu, em minha casa, nem tive o privilégio de ter o meu filho de volta mas de uma coisa tenho certeza: O Senhor não erra! Ele nunca falha! E, apesar da saudade que tenho dele, sei que não existe maior privilégio do que o privilégio de estar vendo sempre o Senhor Jesus todos os dias por toda a eternidade.
"Obrigada, Senhor, pelo presente maravilhoso que Tu nos deste, enviando o Teu Filho unigênito, para morrer em nosso lugar e nos dar a vida eterna.
Obrigada porque sei que meu filho, que eu tanto amo, está ao Teu lado para todo o sempre. Em breve, estarei junto a Ti e junto a ele. As lágrimas não mais existirão, pois Tu mesmo as enxugarás para sempre.
Amém!
Baseado em Números 23:19 que diz que "Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura diria ele, e não faria? Ou falaria, e não o confirmaria?", e conhecendo os tanto atributos de Deus, vemos que se Ele disse que ela teria um filho, com certeza, este filho viveria.
Amada irmã, eleve o seu coração ao Senhor e peça que Ele a transforme numa mulher hospitaleira. Que Ele mude o seu coração e a transforme numa mulher sensível às necessidades dos outros e - este é o passo mais difícil - que Ele coloque diante de você oportunidades que a possibilitem de cuidar de pessoas que estão precisando de seus cuidados. Ore mais ou menos assim:
"Pai, muda o meu coração! Transforma-me numa mulher segundo o Teu coração. Coloca diante de mim alguém necessitado para que eu possa demonstrar o amor que tenho recebido e aprendido de Ti. Que eu seja uma mulher sensível ao Teu chamado e que me transforme numa mulher piedosa, bondosa e...hospitaleira, pois Tu me ensinaste na Tua Palavra que eu não deveria me esquecer da hospitalidade "porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos".
Amém!

domingo, 24 de março de 2013

TERRA TERRITORIALIDADE E SUSTENTABILIDADES




E S T U D O S I N D Í G E N A S: COMPARAÇÕES, INTERPRETAÇÕES E POLÍTICAS


E S T U D O S I N D Í G E N A S: 

E S T U D O S I N D Í G E N A S: 
COMPARAÇÕES, INTERPRETAÇÕES E POLÍTICASSérie Justiça e Desenvolvimento
Estudos indígenas: comparações, interpretações e políticas
Organizadores
Renato Athias
Regina Pahim Pinto
Fundação Carlos Chagas
Diretor Presidente: Rubens Murillo Marques
Av. Professor Francisco Morato, 1565
CEP 05513-900
São Paulo – SP
Brasil
www.fcc.org.br
The Ford Foundation – Escritório Brasil
Representante: Ana Toni
Praia do Flamengo, 154, 8. andar
CEP 22210-030
Rio de Janeiro – RJ
Brasil
www.fordfound.org/riodejaneiro
The Ford Foundation International Fellowships Program (IFP)
Executive Director: Joan Dassin
809 United Nations Plaza, 9th Floor
New York, NY 10017
USA
www.fordifp.net
Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford – Seção Brasil
Coordenadora: Fúlvia Rosemberg
Av. Professor Francisco Morato, 1565
CEP 05513-900
São Paulo – SP
Brasil
www.programabolsa.org.brE S T U D O S I N D Í G E N A S:
COMPARAÇÕES, INTERPRETAÇÕES E POLÍTICAS
SÉRIE JUSTIÇA E DESENVOLVIMENTO / IFP-FCC
REALIZAÇÃO
APOIO
ORGANIZADORES
RENATO ATHIAS (UFPE)
REGINA PAHIM PINTO (FCC)Copyright 2008 Fundação Carlos Chagas
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)
Montagem de capa
Gustavo S. Vilas Boas
Projeto gráfi co e diagramação
Gapp Design
Revisão
Ruth Kluska
Lilian Aquino
EDITORA CONTEXTO
Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa
05083-030 – São Paulo – SP
PABX: (11) 3832 5838
contexto@editoracontexto.com.br
www.editoracontexto.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
 Estudos indígenas : comparações, interpretações e políticas /
Renato Athias, Regina Pahim Pinto (organizadores) . — São Paulo :
Contexto, 2008. — (Série justiça e desenvolvimento) Vários autores.
Realização: Fundação Carlos Chargas
Apoio: Programa Internacional de bolsas de Pós-Graduação da
Fundação Ford, Escritório do Brasil da Fundação Ford.
ISBN 978-85-7244-387-6
 1. Ïndios - América do Sul - Brasil 2. Povos indígenas I. Athias,
Renato. II. Pinto, Regina Pahim. III. Série.
08-00528 CDD-980.41
Índices para catálogo sistemático:
1. Estudos indígenas : Brasil 980.41Sumário
Apresentação .............................................................................................7
Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford ..............................................................9
A implementação do Programa IFP no Brasil
pela Fundação Carlos Chagas ..................................................................13
Prefácio ....................................................................................................21
Povos indígenas e etnodesenvolvimento
no Alto rio Negro .....................................................................................27
Gersem José dos Santos Luciano
Protagonismo indígena no processo
de inclusão das escolas no sistema ofi cial
de ensino de Mato Grosso .......................................................................45
Francisca Navantino Pinto de Ângelo
Interpretando mundos: contatos entre os
Akwen e os conquistadores luso-brasileiros
em Goiás (1749-1811) .............................................................................61
Cleube Alves da SilvaRegimes comunitários rurais e uso da terra
no Acre: uma comparação econômica ......................................................83
Francisco Kennedy Araújo de Souza
Unidades da paisagem: um estudo
etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro ............................................101
Julio Cezar Inácio
Ofayé, a língua do povo do mel .............................................................121
Maria das Dores de Oliveira
Orações intransitivas independentes e
marcas de aspecto em laklãnõ ...............................................................139
Nanblá Gakran
Medidas de tempo e sistema numérico
entre os Taliáseri do rio Negro ...............................................................151
Adão Oliveira
Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances ..............................175
Paulo Celso de OliveiraApresentação
É com imensa satisfação que o Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford, o Escritório do Brasil da Fundação
Ford e a Fundação Carlos Chagas trazem a público a coletânea Estudos
indígenas: comparações, interpretações e políticas, terceiro volume da
Série Justiça e Desenvolvimento / IFP-FCC, cujo objetivo é divulgar as
pesquisas desenvolvidas por bolsistas egressos/as do Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford (International
Fellowships Program IFP), no decorrer dos seus cursos de mestrado
ou doutorado.
A Fundação Carlos Chagas, responsável pela realização da Série Justiça
e Desenvolvimento / IFP-FCC, é a instituição parceira do Ford Foundation
International Fellowships Program na implementação, no Brasil, dessa
experiência pioneira de ação afirmativa na pós-graduação.
Já foram publicadas na Série Justiça e Desenvolvimento / IFP-FCC as
coletâneas: Educação, organizada por Luiz Alberto Oliveira Gonçalves
e Regina Pahim Pinto e Mobilização, participação e direitos, organizada
por Evelina Dagnino e Regina Pahim Pinto. Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford
Em 2001, teve início o Programa Internacional de Bolsas de Pós-
Graduação da Fundação Ford (IFP) com o objetivo de ampliar o acesso
à educação superior e apoiar a formação de uma nova geração de líderes
da justiça social. Financiado com a maior concessão individual de verbas
já feita pela Fundação Ford a um único programa, o IFP oferece bolsas
de pós-graduação de até três anos para obtenção de títulos de mestre,
doutor ou profissional especializado em uma ampla gama de disciplinas
acadêmicas e campos interdisciplinares em qualquer país do mundo. O
Programa trabalha em parceria com organizações locais em 22 países da
Ásia, África, América Latina e Rússia para identificar os fatores – entre
os quais situação socioeconômica, gênero, etnia, raça, casta, religião,
idioma, isolamento geográfico, instabilidade política ou deficiência
física – que constituem as maiores barreiras à educação superior em
determinados países.
Em sete anos de funcionamento, o IFP comprovou definitivamente
que talento intelectual e compromisso social abundam nas comunidades marginalizadas de todo o mundo em desenvolvimento, e que o
acesso à educação superior pode ser ampliado sem prejuízo dos padrões
acadêmicos. Ao contrário, os/as Bolsistas IFP têm obtido bons resultados em muitos dos programas de pós-graduação mais competitivos 10 Estudos indígenas
do mundo. O IFP selecionou quase 3 mil bolsistas – cerca da metade
são mulheres – entre mais de 120 mil candidatos/as no mundo inteiro,
indicando que há uma imensa demanda não atendida por educação
superior avançada entre os/as candidatos/as com o perfil “IFP”. Na
América Latina, quase 660 bolsistas foram selecionados/as, incluindo
brasileiros/as de descendência africana e indígena, bem como membros de grupos indígenas e de outras comunidades marginalizadas do
México, da Guatemala, do Peru e do Chile. No mundo todo, mais de
dois terços dos/as bolsistas IFP nasceram na zona rural ou em cidades
pequenas; mais de 80% são os/as primeiros/as na família a obter grau
universitário. Mais da metade dos/as bolsistas IFP têm mães que não
freqüentaram a escola ou apenas completaram o ensino fundamental;
quase todos/as os/as bolsistas revelam que dificuldades financeiras e
discriminação baseada em gênero, etnia ou outros fatores semelhantes
foram os principais obstáculos enfrentados na busca de realizar seu
sonho de educação superior.
Apesar dessas desvantagens, os/as bolsistas IFP se sobressaem nas
atividades acadêmicas e também demonstram grande potencial de
liderança na defesa da justiça social. No aspecto acadêmico, quase
2.500 mil bolsistas foram aceitos/as em cerca de 500 universidades de
praticamente 50 países, incluindo instituições de alta qualidade na região de origem do/a bolsista, bem como nas principais universidades da
América do Norte, da Europa e da Austrália. No final de 2007, entre os/
as 1.350 ex-bolsistas, considerando todos/as os/as bolsistas IFP, menos
de 2% não havia conseguido terminar a bolsa, ao passo que 85% dos/
as ex-bolsistas que obtiveram a bolsa já haviam obtido com sucesso seu
título acadêmico. Uma porcentagem alta dos/as bolsistas que concluiu
o programa de mestrado com patrocínio do IFP prossegue seus estudos
de doutorado apoiada por outras fontes.
Os/as bolsistas IFP não se tornam parte das estatísticas de “evasão
de cérebros”. Dos/as ex-bolsistas, mais de 80% moram atualmente em
seu país de origem, ao passo que a quase totalidade dos/as demais continuam no exterior em busca de títulos acadêmicos mais avançados ou
complementam seu treinamento profissional. E praticamente todos/as
os/as ex-bolsistas – estejam eles/elas no país de origem ou no exterior
dando continuidade aos estudos ou fazendo treinamento profissional –
participam de atividades de justiça social. Já há exemplos remarcáveis Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford 11
de ex-bolsistas fundando ONGs e criando projetos de geração de renda
para melhorar o padrão de vida em bairros pobres, estabelecendo e
dirigindo clínicas de saúde em áreas carentes, defendendo os direitos
humanos entre populações vulneráveis e, em muitas instâncias por
todo o mundo, combinando pesquisa acadêmica rigorosa com análise
de políticas e ação social.
O IFP-Brasil, com cerca de 250 bolsistas selecionados/as desde 2002,
tem papel de destaque nesse Programa mundial. O IFP-Brasil atuou
com êxito no contexto dos debates nacionais sobre ação afirmativa que
levantaram questões profundas sobre a discriminação endêmica no ensino superior brasileiro. O Programa IFP no Brasil vem recebendo apoio
inestimável da Fundação Carlos Chagas, sendo administrado com competência e dedicação por uma equipe de seus pesquisadores. Conta, ainda,
com assessoria de alguns/algumas dos/das principais pesquisadores/as
acadêmicos/as e ativistas sociais brasileiros/as. O IFP-Brasil vem desenvolvendo um processo de seleção transparente que atende aos membros
das comunidades carentes, mas sem jamais sacrificar o rigor intelectual
ou os padrões acadêmicos. Ao longo dos anos, o IFP-Brasil, com sua metodologia reconhecida pelo seu rigor sociológico e ético, vem criando uma
merecida reputação como um programa pioneiro e inovador, o primeiro
de ação afirmativa na pós-graduação brasileira.
Os/as autores/as dos trabalhos publicados neste volume – o terceiro
de uma importante Série que reúne e apresenta os trabalhos dos/as ex-
bolsistas no Brasil1
 – responderam com êxito às exigências de programas
de pós-graduação altamente competitivos. Eles/elas obtiveram seu
título acadêmico e também o direito de serem ouvidos/as como vozes
autorizadas sobre temas da maior importância como desenvolvimento
econômico, terra, cultura e língua entre os povos indígenas brasileiros.
O fato de essas vozes representarem setores da sociedade brasileira –
quase todos os autores deste volume são membros de grupos indígenas e estão profundamente engajados com o movimento indígena no
país – que geralmente não são ouvidos pelos círculos acadêmicos é um
testemunho da tenacidade desses/as estudantes como pesquisadores/as
1
 O primeiro volume da Série Justiça e Desenvolvimento / IFP-FCC, Educação, foi organizado por Luiz
Alberto Oliveira Gonçalves e Regina Pahim Pinto (2007) e o segundo, Mobilização, participação
e direitos, por Evelina Dagnino e Regina Pahim Pinto (2007).12 Estudos indígenas
emergentes. É também uma forma de lembrar que as questões sociais
complexas da sociedade brasileira são tratadas com mais empenho por
quem tem profundo conhecimento pessoal das questões pesquisadas e
dos problemas que pretende resolver
O IFP tem orgulho de apresentar este terceiro volume da Série
Justiça e Desenvolvimento / IFP-FCC, e aproveitamos para expressar
nosso reconhecimento pelas importantes contribuições dos/as autores/
as. Esperamos que esta publicação ajude a divulgar esses/as ex-bolsistas
IFP a todas as pessoas interessadas nos importantes temas que aborda.
A publicação permite, também, ressaltar o fato de que pesquisadores/
as de grupos sociais marginalizados – neste caso, os grupos indígenas –
podem contribuir de forma substancial para a discussão abalizada sobre
a realidade social brasileira, acrescentando informações valiosas ao
corpo disponível de conhecimento e trazendo novas perspectivas para
o tratamento de questões fundamentais de grande importância para a
sociedade como um todo.
 Joan Dassin
Diretora Executiva
Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford
Nova YorkA implementação do Programa IFP no Brasil
pela Fundação Carlos Chagas
O Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação
Ford foi introduzido no Brasil em 2001, após estudo preliminar encomendado pelo Escritório do Brasil da Fundação Ford aos professores
Luiz Alberto Oliveira Gonçalves (Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG) e Marco Antonio Rocha (Fulbright do Brasil), que
indicaram a Fundação Carlos Chagas como instituição brasileira a ser
parceira do International Fellowships Program.
A indicação e o aceite da Fundação Carlos Chagas para ser parceira
na implantação de experiência educacional inovadora e desafiante – o
primeiro programa de ação afirmativa na pós-graduação brasileira –
respaldam-se nas reconhecidas respeitabilidade e competência de nossa
instituição no campo de seleção e formação de recursos humanos, bem
como na produção e divulgação de conhecimentos em prol do desenvolvimento humano-social.
Assim, o trio de pesquisadoras do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas responsável pela coordenação
do Programa IFP no Brasil (Fúlvia Rosemberg, Maria Malta Campos e
Regina Pahim Pinto) vem contando, nesta lida, com o acervo de experiências e competências institucionais acumulado nos diversos setores e 14 Estudos indígenas
campos de atuação da Fundação Carlos Chagas, bem como com a profícua história de parceria com o Escritório do Brasil da Fundação Ford.
Desse modo, procedimentos técnicos e princípios éticos para que
concursos públicos sejam transparentes, mapeamento do impacto e de
processos intervenientes na fabricação das desigualdades educacionais
brasileiras, estratégias pedagógicas para o aprimoramento de pesquisadores emergentes e ativistas, produção, sistematização e divulgação do
conhecimento constituem parte do acervo institucional da Fundação
Carlos Chagas partilhado na implementação do Programa IFP no Brasil.
Trata-se de acervo institucional construído nesses 43 anos de existência
da Fundação Carlos Chagas, do qual destacamos, a título de exemplo: os
mais de 2.725 concursos públicos realizados, os 372 projetos de pesquisas,
assessoria e formação realizados pelo Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, os 132 números publicados da revista
Cadernos de Pesquisa e os 38 de Estudos em Avaliação Educacional.
Por seu lado, o International Fellowships Program partilhou sua proposta inovadora, recursos financeiros, seu apoio generoso e reflexivo e
a participação em uma rede internacional de instituições parceiras, o
que, também, nos tem respaldado no enfrentamento deste desafio que
tem sido delinear e implementar um programa de ação afirmativa na
pós-graduação brasileira.
O Programa IFP foi lançado, no Brasil, em contexto bastante peculiar
quando comparado ao cenário dos parceiros internacionais: intenso debate
sobre ação afirmativa no ensino superior (graduação); pós-graduação brasileira institucionalizada, em expansão e adotando procedimentos de seleção
e avaliação formalizados. Porém, enfrentamos, como os demais parceiros
internacionais, os desafios de um sistema de pós-graduação que também
privilegia segmentos sociais identificados com as elites nacionais, sejam elas
econômicas, regionais ou étnico-raciais. Essas características contextuais
orientaram a adequação do design e dos recursos na implementação do
Programa no Brasil, inclusive a publicação desta Série de coletâneas de
autoria de bolsistas brasileiros/as egressos/as do IFP.
Uma primeira particularidade na implementação do Programa IFP no
Brasil foi a de se identificar, desde seu lançamento, como um programa
de ação afirmativa, na medida em que seu público-alvo são pessoas
“excluídas” ou sub-representadas na pós-graduação. Ou seja, seu objetivo é oferecer um tratamento preferencial a certos segmentos sociais A implementação do Programa IFP no Brasil pela Fundação Carlos Chagas 15
que, devido à estrutura social do país, teriam menores possibilidades
de acesso, permanência e sucesso na pós-graduação em decorrência de
atributos adscritos.
Uma segunda particularidade da implementação do Programa IFP
no Brasil foi a de respeitar a cultura que orienta as práticas locais de
fomento à pesquisa e à pós-graduação, adequando-a às regras internacionais que regem o Programa e às estratégias pertinentes a programas de
ação afirmativa.
Para que o/a leitor/a situe esta Série no conjunto de práticas do IFP
no Brasil, apresentamos, resumidamente, as diversas dimensões desse
programa de ação afirmativa na pós-graduação.
Grupos-alvo. O Programa IFP, no Brasil, oferece a cada ano, aproximadamente, 40 bolsas de mestrado (até 24 meses) e doutorado (até
36 meses), preferencialmente para negros/as e indígenas, nascidos/as
nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e que provêm de famílias
que tiveram poucas oportunidades econômicas e educacionais. Tais segmentos sociais são os que apresentam os piores indicadores de acesso
à pós-graduação (fonte: PNAD 2003).
Difusão. Como todo programa de ação afirmativa, a difusão do Programa IFP no Brasil é pró-ativa, visando atingir os grupos-alvo por diferentes
estratégias: recursos visuais, lançamentos descentralizados, divulgação em
mídia especializada, parcerias com instituições sociais e acadêmicas.
Inscrição na seleção. No início do segundo trimestre civil de cada
ano, são abertas, durante um período de três meses, inscrições para a
seleção anual. Os documentos solicitados para postular uma candidatura ao Programa, e que incluem, entre outros, um Formulário para
Candidatura e a apresentação de um pré-projeto de pesquisa, procuram coletar informações sobre: atributos adscritos visando caracterizar
o pertencimento do/a candidato/a aos grupos-alvo; potencial/mérito
acadêmico, de liderança e de compromisso social.
Seleção. A seleção ocorre em duas fases: na primeira selecionam-se os/
as 200 candidatos/as que, em decorrência dos atributos adscritos, teriam
a menor probabilidade de terminar o ensino superior. Selecionam-se, a
seguir, os/as candidatos/as com melhor potencial/desempenho acadê-
mico, de liderança e de compromisso social com o apoio de assessores
ad hoc (que avaliam o pré-projeto) e de uma comissão de seleção brasileira, renovada periodicamente.16 Estudos indígenas
A pertinência das práticas delineadas e adotadas para divulgação e
seleção pode ser comprovada na configuração do perfil de candidatos/
as e bolsistas brasileiros/as ao longo dessas seleções em consonância
estrita com os grupos-alvo (tabela 1).
Perfi l de candidatos/as e bolsistas por seleção.
Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford – Brasil.
Seleção 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Atributos Candidatos Bolsistas Candidatos Bolsistas Candidatos Bolsistas Candidatos Bolsistas Candidatos Bolsistas Candidatos Bolsistas
Total 1506% 42% 931% 42% 1212% 46% 1219% 40% 955% 40% 949% 40%
SEXO
feminino 67 55 68 52 67 50 68 47 72 53 69 48
masculino 33 45 32 48 33 50 32 53 28 47 31 52
NÍVEL
doutorado 24 26 26 24 22 26 18 25 23 25 22 25
mestrado 76 74 74 76 78 74 82 75 77 75 78 75
RAÇA
branca 38 9 34 7 26 0 24 0 20 0 18 8
negra/indígena 62 91 65 93 73 100 75 100 79 100 82 92
REGIÃO DE
RESIDÊNCIA
N / NE / CO 51 57 52 62 52 69 57 60 56 55 59 60
S / SE 49 43 47 38 46 30 43 40 43 45 40 40
Fonte: FCC – Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford. Arquivos (2007).
Porém, um programa de ação afirmativa não se resume à adoção de
procedimentos específicos de divulgação e seleção. O acompanhamento
de bolsistas e ex-bolsistas constitui pedra de toque de sua implementação.
Acompanhamento. O acompanhamento é adequado às três etapas da
trajetória do/a bolsista no Programa: pré-acadêmica, acadêmica e pós-
bolsa. A etapa pré-acadêmica (duração máxima de um ano) destina-se
à preparação do/a bolsista para o processo de seleção em programas
de pós-graduação, no Brasil ou no exterior. Apesar de não oferecer
verba para manutenção individual, o acompanhamento pré-acadêmico
disponibiliza recursos financeiros, apoio logístico e de orientação para
que o/a bolsista participe, com sucesso, de até quatro processos de
seleção na pós-graduação: viagens, estada, inscrição, cursos de línguas
e informática, orientação pré-acadêmica, entre outros.A implementação do Programa IFP no Brasil pela Fundação Carlos Chagas 17
Na etapa acadêmica, o/a bolsista recebe apoio financeiro, logístico
e retaguarda de orientação para que prossiga com dedicação exclusiva
e sucesso, no tempo requerido, sua formação pós-graduada: manuten-
ção, custeio acadêmico, recursos para livros, computador e formação
complementar ao cursus acadêmico.
Os recursos alocados pela Fundação Ford, a disponibilidade atenciosa
e reflexiva das equipes centrais responsáveis pelo Programa IFP, o acompanhamento atento da Equipe da Fundação Carlos Chagas, a colaboração
competente dos programas e orientadores de pós-graduação e, certamente, o potencial e empenho dos/as bolsistas têm amparado os excelentes
resultados obtidos nestas duas etapas do Programa IFP no Brasil: até a
presente data, todos/as os/as bolsistas selecionados/as ingressaram em
programas de pós-graduação brasileiros credenciados pela CAPES ou
estrangeiros de escol; registramos poucas perdas por desistência, reprovação acadêmica ou descumprimento de regras contratuais. Além disso,
o tempo médio para titulação no mestrado de bolsistas IFP tem sido
excepcional: média 24,4 meses e mediana 24 meses.
A notar, ainda, uma particularidade do Programa IFP no Brasil: a
grande maioria de nossos/as bolsistas permanece no país e, dentre esses,
poucos solicitaram bolsas “sanduíche” para complementar sua formação
no exterior. Dentre os/as bolsistas brasileiros/as que optam por curso no
exterior, a maioria se dirige a universidades portuguesas, especialmente
a Universidade de Coimbra. O desconhecimento de idioma estrangeiro
parece, pois, constituir o maior empecilho para a saída do Brasil, além
das boas oportunidades oferecidas pela pós-graduação brasileira. Possivelmente, carência equivalente pode explicar, em parte, o fato de que
o Brasil vem sendo escolhido por bolsistas IFP moçambicanos/as para
realizarem seus estudos de mestrado e doutorado.1
O pós-bolsa foi a última etapa na trajetória de bolsista IFP a ser
implantada. De fato, no Brasil, a sua implantação está em processo e
a publicação desta Série é, para nós, motivo de muita satisfação, pois
consolida a etapa do pós-bolsa.
Na medida em que o Programa IFP objetiva, em última instância, a
formação de líderes comprometidos com a constituição de um mundo
1
 Os/as bolsistas IFP que vêm estudar no Brasil, da Guatemala, de Moçambique e do Peru, são
acompanhados/as pelas instituições parceiras daqueles países.18 Estudos indígenas
mais justo, igualitário e solidário, a formação pós-graduada é entendida
como uma das ferramentas para o empoderamento dessas novas lideranças. Outra ferramenta é a constituição e o fortalecimento de redes
sociais que oferecem apoio coletivo e ampliam a visibilidade do grupo.
Daí a importância da etapa pós-bolsa. As estratégias para a constitui-
ção, o fortalecimento e a visibilidade de redes sociais são múltiplas.
Em diversos países em que o IFP foi implantado, estão se constituindo
organizações nacionais de ex-bolsistas IFP, com perspectivas de articulação internacional. No Brasil, está em processo a constituição de uma
associação de bolsistas egressos/as do IFP.
A Equipe da Fundação Carlos Chagas tem estado, também, atenta à
consolidação de redes sociais entre bolsistas e egressos/as do IFP, bem
como sua articulação com outras redes e a sociedade mais abrangente,
na formulação e implementação desse Programa no Brasil. Assim, temos planejado e executado atividades que fortalecem as relações entre
bolsistas e ex-bolsistas, pois, como a duração da bolsa é de no máximo
três anos e os/as bolsistas estão dispersos geograficamente, a criação e
o fortalecimento de vínculos inter e intrageracionais devem ser incentivados. Nesse intuito, realizamos um encontro anual entre bolsistas e
ex-bolsistas para a apresentação de trabalhos, publicamos um boletim
semestral e esta Série de coletâneas, a qual conta com o apoio do Escritório do Brasil da Fundação Ford. O destaque a este apoio é oportuno,
pois, no contexto internacional do Programa IFP, trata-se de experiência
inovadora. Oxalá estimule novas parcerias.
As coletâneas. A organização e a publicação de coletâneas de
textos de bolsistas egressos/as do IFP constituem, para a equipe
da Fundação Carlos Chagas, uma atividade essencial, e não um
apêndice, na formatação de um programa de ação afirmativa na pós -
graduação. Em primeiro lugar, porque a preparação dos originais –
isto é, a elaboração dos artigos – significa uma complementação na
formação dos/as bolsistas, nem sempre assumida pelos programas
de pós-graduação. Preparar artigos, submetê-los ao crivo dos pares,
acatar críticas pertinentes, aprimo rar os originais são competências
indispensáveis não apenas a acadêmicos, mas também a ativistas.
Assim, bolsistas egressos/as do IFP e os organizadores desta coletâ-
nea – Renato Athias e Regina Pahim Pinto –, ao encetarem um diálogo
intenso para a formatação dos artigos conforme padrões acadêmicos, A implementação do Programa IFP no Brasil pela Fundação Carlos Chagas 19
participaram da complementação da formação intelectual de pesquisadores/as emergentes.
Em segundo lugar, porque uma Série de coletâneas publicada, neste
momento da trajetória do Programa IFP no Brasil, tem o potencial de
reforçar vínculos entre bolsistas e ex-bolsistas, ao oferecer insumos
bibliográficos para pesquisadores/as e ativistas em formação e ação.
Em terceiro lugar, porque coletâneas temáticas, e não publicações
dispersas, podem fortalecer o impacto da inovação. Isso já havíamos
aprendido em outras momentos da história do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, quando, por exemplo,
os programas de Dotações para Pesquisa sobre Mulheres e Relações de
Gênero contribuíram, nos anos 1980 e 1990, para a introdução e consolidação de novo tema de pesquisa no Brasil: estudos sobre a condição
feminina e de gênero.2
No caso desta Série, as inovações são múltiplas: conjunto de textos
produzidos por mestres e doutores que participaram de um programa
de ação afirmativa na pós-graduação; textos produzidos por mestres e
doutores originários de diferentes regiões do país e que freqüentaram,
entre 2003 e 2006, cursos de pós-graduação de diferentes universidades brasileiras e estrangeiras; textos produzidos por mestres e doutores
que afinaram seu olhar sobre as relações sociais a partir de uma dura
experiência de exclusão; textos produzidos por mestres e doutores
que compartilham do projeto de construção de um Brasil mais justo,
igualitário e solidário. Finalmente, Estudos indígenas: comparações,
interpretações e políticas merece, ainda, destaque pelo fato de que a
quase totalidade dos artigos é de autoria de pesquisadores/as indígenas.
Fúlvia Rosemberg
Pesquisadora da Fundação Carlos Chagas
Coordenadora, no Brasil, do Programa IFP
2
 Projeto coordenado por Maria Cristina Bruschini, que contou com o apoio do Escritório do Brasil da
Fundação Ford. Cf. Maria Cristina Bruschini e Sandra G. Umbehaum (orgs. ). Gênero, democracia
e sociedade. São Paulo: FCC/ Editora 34, 2002.Prefácio
Esta coletânea, intitulada Estudos indígenas: comparações, interpreta-
ções e políticas, reúne nove ensaios realizados por profissionais de várias
regiões do país que defenderam suas dissertações e teses sobre populações tradicionais. O que existe ainda em comum entre eles é que as
suas pesquisas foram apoiadas pelo Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford, e que quase todos/as os/as autores/as
fazem parte de um povo indígena – Baniwa, Pareci, Apurinã, Kaingang,
Pankararu, Laklãnõ, Taliáseri –, como pode ser evidenciado nas respectivas
biografias. Os estudos aqui apresentados representam não só o interesse,
mas também o engajamento dos/as autores/as com as temáticas tratadas.
Ou seja, os estudos refletem, de um lado, o interesse pessoal de cada
autor/a por um campo disciplinar específico e, por outro lado, o interesse
do movimento indígena na produção e divulgação de conhecimentos sobre
a situação dos povos indígenas do Brasil.
Gersem José dos Santos Luciano, Baniwa do Alto rio Negro, no
Amazonas, questiona a participação indígena em projetos de desenvolvimento e a sua implementação . Como profundo conhecedor de
sua região e dos projetos desenvolvidos nas comunidades do rio Negro,
discute o sucesso desses projetos, o sentido de participação dos índios
nessas experiências e, sobretudo, o conhecimento das comunidades 22 Estudos indígenas
indígenas das negociações e discussões sobre as possibilidades de desenvolvimento local. Nesse sentido, os campos e os atores políticos
estão bem delimitados. O estudo antropológico faz uma caracterização
dos “agentes de desenvolvimento”, representantes do Estado e/ou
organizações não governamentais, bem como apresenta os requisitos
que os beneficiários, os índios, devem preencher para sentar à mesa
de negociações. Um desses requisitos é a participação. Esse envolvimento está medido, evidentemente, por parâmetros elaborados pelos
agentes do desenvolvimento, o que influi nas condições de financiamento. Por fim, o autor afirma nas conclusões “que, mesmo os projetos
considerados inovadores pelos índios e seus parceiros, pautados pelas
noções reformistas de desenvolvimento alternativo, desenvolvimento
sustentável e etnodesenvolvimento, estão longe de romper a histórica
perspectiva integracionista e civilizatória do rio Negro imposta pelos
agentes colonizadores. Proponho que, na análise, o primeiro passo seja
reconhecer essa realidade, para desconstruir discursos que, de forma
sutil e muitas vezes inconsciente, escondem as muitas faces dessa realidade, reduzindo as possibilidades de os povos indígenas buscarem
estratégias mais adequadas e eficientes para garantir maior equilíbrio
na correlação de forças”. O autor chega a afirmar que a participação
indígena “tem sido mero detalhe formal” para legitimar os processos de
negocia ção. A contribuição de Gersem está justamente no desvendamento dos aspectos políticos que os povos indígenas têm necessidade
de conhecer e dominar nesses processos de negociação.
O trabalho de Francisca Navantino Pinto de Ângelo, do povo Pareci
do Mato Grosso, sobre as escolas indígenas no Mato Grosso, busca
documentar a sua situação durante o período de 1996 a 2002. Esse
tempo foi marcado pela implementação das políticas públicas voltadas
para a educação escolar indígena, dentro de uma perspectiva de escolas
específicas, diferenciadas e interculturais. Esse estudo é pioneiro por
sistematizar esses acontecimentos, na medida em que faz uma retrospectiva analítica das diversas etapas de aquisição de uma prática de gestão
de uma rede de educação escolar indígena por parte do Estado e que
discute a implementação de uma política pública com características
especiais relacionada aos povos indígenas.
Mostra como o diálogo com o Estado não foi um processo simples,
pela necessidade de um entendimento e de uma compreensão de as-Prefácio 23
pectos culturais por parte deste e pelo fato de o procedimento ser pioneiro nas políticas públicas. Nesse sentido, o texto aponta os principais
eventos desse processo e dos mecanismos que mediaram essas relações.
Ainda, no artigo, a autora retoma as principais discussões ocorridas na
implementação do Projeto Tucum de formação de professores indígenas,
em que o estado do Mato Grosso foi pioneiro, ao imprimir um caráter
inovador e possibilitar um debate importante sobre a gestão escolar no
âmbito da educação indígena.
Cleube Alves da Silva, do Tocantins, único autor não indígena, assina o terceiro texto, desenvolvendo um trabalho sobre a história dos
Akwen no Brasil central. Com esse estudo, relança uma discussão sobre
como repensar a história dos índios e sobre o debate em torno de uma
etnoistória. Estabelece também uma interface dos processos históricos
e da organização cultural dos índios, valorizando as evidências empí-
ricas e tratando-as numa perspectiva interdisciplinar. Ao fazê-lo, cria
outras possibilidades de análise sobre o contato interétnico e sobre as
transformações ocorridas entre os povos indígenas durante o Período
Colonial. Ou seja, procura eliminar na narrativa histórica aquela imagem
dos índios como passivos e impotentes. Uma visão que impõe apenas
a dominação dos portugueses sobre os povos indígenas. Na sua análise,
Cleube mostra os índios como sujeitos nas diversas realidades e contextos,
além de mostrar de que forma, no processo de contato com os brancos – portanto, em um processo dinâmico de relações interétnicas –, eles souberam
reelaborar valores, culturas, interesses, objetivos e até identidades, o que
possibilitou a sua sobrevivência física e cultural. “Muitos trabalhos”, diz
Cleube, “já debateram os contatos entre os Akwen e os luso-brasileiros
sob a perspectiva da resistência, uma abordagem insuficien te para dar
conta da complexidade que envolvia os embates e, sobretudo, inadequada para perceber a criatividade dos povos indígenas no diálogo com
os conquistadores”.
 Conservação ambiental, renda familiar, usos comunitários e as questões da sustentabilidade na produção agrícola de populações tradicionais
da Amazônia são os temas centrais do trabalho de Francisco Kennedy
Araú jo de Souza, Apurinã. Duas questões foram fundamentais para o
desenvolvimento desse estudo, realizado de forma comparativa, em três
áreas distintas, com características semelhantes: a primeira está relacionada aos modelos comunitários rurais (extrativistas, agro-extrativistas 24 Estudos indígenas
e colonos), a segunda diz respeito à eficiência desses modelos para
balancear objetivos econômicos e de conservação florestal O estudo foi
realizado no Acre, onde, desde 1999, uma proposta de política pública
denominada “governo da floresta” tem buscado consolidar um modelo
de desenvolvimento baseado no uso sustentável dos recursos naturais.
Essa pesquisa representou uma rara oportunidade para avaliar se áreas
manejadas por comunidades extrativistas, agro-extrativistas, e colonos
podem efetivamente contribuir para a redução da desigualdade econô-
mica e a manutenção dos ecossistemas florestais. As perguntas com as
quais o autor trabalha são as seguintes: (1) Qual a efetividade econômica
e ambiental (medidas respectivamente por viabilidade econômica e
percentual de desmatamento) dos três modelos comunitários analisados? (2) Qual é a estratégia florestal mais eficiente economicamente:
manejo madeireiro ou não madeireiro? (3) A eficiência econômica das
comunidades tem contribuído para aumentar o desmatamento? Os resultados certamente contribuirão para mostrar o potencial econômico e
ambiental desses modelos comunitários existentes na Amazônia e para
o planejamento culturalmente adequado para atividades econômicas
nas áreas do estado.
Julio Cezar Inácio, Kaingang do Rio Grande do Sul, apresenta um
estudo sobre a Terra Indígena de Ligeiro, utilizando a metodologia produzida pelos estudos de ecologia de paisagem, que tem sido aplicada
em diversas áreas no Brasil, para realizar diagnósticos ambientais e dar
apoio à gestão de grandes extensões de terras. A Terra Indígena de Ligeiro situa-se nos terrenos dissecados do vale do rio Uruguai, na região
de interface do Planalto das Araucárias e o das Missões, os quais fazem
parte do Planalto Meridional no Rio Grande do Sul. Essa metodologia
está associada à utilização de sistemas de geoprocessamento, permitindo
uma reciprocidade entre conceito e objeto pertinentes a cada escala de
análise, associados ao uso de sistemas de geoinformações. Isso possibilita
que a investigação não só produza dados conceitualmente coerentes com
modelos que se explicam em escalas locais, como também um maior
conhecimento sobre o potencial dos solos de uma área específica. O
estudo de Julio Cezar amplia os conhecimentos específicos sobre o solo
e as possibilidades de desenvolvimento aliadas a uma prática sustentável
de manejo na Terra Indígena de Ligeiro.
Maria das Dores de Oliveira, Pankararu de Pernambuco, apresenta
um estudo lingüístico de extrema importância e mereceria até um prê-Prefácio 25
mio, pois recupera uma língua em vias de desaparecimento, tal como
preconizado no programa da UNESCO. Maria das Dores, juntamente
com a comunidade Ofayé, e principalmente a professora indígena Marilda, desenvolve a descrição fonética e fonológica da língua, propondo
uma grafia para a língua ofayé. É um trabalho de fôlego entre os estudos
lingüísticos das línguas macro-jê.
O estudo lingüístico apresentado por Nanblá Gakran, sobre a língua
laklãnõ, é o segundo texto sobre uma língua indígena nesse volume
que, como a língua ofayé, também se encontra ameaçada de extinção.
Nesse sentido, os dois estudos vêm contribuir para a revitalização dessas
línguas. Nanblá apresenta resultados de um estudo morfossintático da
língua laklãnõ, especificamente sobre a “marca de aspecto” e a “oração
intransitiva”. Em laklãnõ, de acordo com o autor, há um conjunto de
marcas de aspecto, algumas delas derivadas de verbos, que são presença
obrigatória na oração independente, aparecendo sempre no final da frase,
e que devem revelar aspectos relacionados à posição física do sujeito ou
objeto em relação à ação expressa pelo verbo. Essa característica da língua
laklãnõ foi aprofundada nesse estudo, possibilitando um entedimento
maior sobre as relações sociais do povo Laklãnõ, conhecido também
como Xokleng de Santa Catarina.
As medidas de tempo e o sistema númérico são abordados na pesquisa
de Adão Oliveira, Taliáseri do rio Negro, realizada entre os membros do
clã Mali Makaliapi, da etnia Taliáseri (povo conhecido como Tariano, na
literatura antropológica), na comunidade de Ditalipukipe, Aracapá, no
Baixo rio Papuri, afluente do rio Uaupés, na região do Alto rio Negro.
Esse estudo situa-se dentro do campo disciplinar da Etnomatemática. O
trabalho de Adão, professor indígena de Matemática na Escola São Miguel
de Iauaretê, dará um novo rumo aos estudos na região, ampliando assim
o conhecimento e oferecendo pistas para outros professores indígenas
trabalharem nas suas escolas. O foco é a mensuração do tempo e o sistema numérico, que servem para organizar as atividades econômicas como
agricultura e pesca e as atividades de subsistência.
O último artigo dessa coletânea versa sobre gestão territorial e organização política, de autoria de Paulo Celso de Oliveira, Pankararu. O seu
trabalho apresenta as concepções dos indígenas sobre os territórios, evidenciando a sua natureza diferenciada e coletiva, além de abordar o conflito de
jurisdição entre o Estado e os povos indígenas. Procura também demonstrar 26 Estudos indígenas
que o Estado nacional criou um modelo jurídico para proteger os interesses
voltados apenas para a exploração econômica das terras indígenas. Entender a organização social indígena e os modelos próprios de gerenciar esses
espaços faz parte das reflexões desenvolvidas no artigo.
Certamente, os estudos apresentados neste livro são de grande interesse do movimento indígena e dos professores que atuam nas escolas
indígenas, na medida em que a sua publicação permite que sejam socializados. Sem dúvida, divulgar esses trabalhos nos mais diversos setores
de produção de conhecimento, os estudos lingüísticos, sobre manejo e
adequação de solos de terras indígenas, de história e etnoistória, matemática indígena, gestão de territórios por organizações indígenas e o
apoio jurídico para a adequação da gestão nessas áreas mediante modelos
próprios de governos indígenas são de grande interesse não só para o
movimento indígena, mas também integram as principais discussões
sobre o tema no país.
Nesse sentido, o Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação
da Fundação Ford, ao ter selecionado esses autores para uma bolsa de
mestrado e doutorado, levou em consideração esses interesses específicos, para estabelecer um programa de ação afirmativa que pudesse mudar
o perfil da pós-graduação no Brasil. Os programas de pós-gradua ção que
receberam esses pesquisadores ampliaram, sem qualquer dúvida, as suas
linhas de pesquisa, tendo em vista a qualidade e o interesse acadêmico
dos trabalhos.
Renato Athias
Antropólogo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade Federal de PernambucoPovos indígenas e etnodesenvolvimento
no Alto rio Negro
Gersem José dos Santos Luciano
RESUMO
Neste trabalho, analiso as experiências das lideranças indígenas do Alto
rio Negro em projetos de etnodesenvolvimento denominados por eles de
“projetos de alternativas econômicas”, que articulam diferentes campos
de forças institucionais e atores sociais. Constato que os projetos, malgrado estarem orientados pelas noções reformistas de desenvolvimento,
desenvolvimento sustentável e etnodesenvolvimento, estão longe de ser,
aos olhos dos povos indígenas, o tipo desejado de intervenção, do ponto de
vista conceitual e metodológico. Não obstante, eles representam possibilidades e oportunidades reais de recuperação de auto-estima e visibilidade
étnica diante do mundo globalizado. Concluo que os projetos são uma
das estratégias para sair do confinamento cultural, econômico e político
a que foram submetidos por séculos de devastadora dominação colonial,
ao mesmo tempo em que representam um processo de apropriação ativa
e reativa dos instrumentos de poder do mundo globalizado em favor de
seus direitos, desejos e projetos étnicos.
PALAVRAS-CHAVE
ÍNDIOS – ALTO RIO NEGRO – ETNOLOGIA – DESENVOLVIMENTO28 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
O ingresso na pós-graduação, possibilitado pelo Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford – IFP –, foi motivado
pelo interesse em compreender melhor o cenário interétnico (Oliveira,
1981) em que vivo. Tendo acompanhado as grandes transformações socioculturais, políticas e econômicas que ocorreram nas últimas décadas
na vida dos povos indígenas do Alto rio Negro, meu propósito foi buscar
as razões que fundamentam toda a mobilização do Estado brasileiro
com vistas à ocupação territorial e ao desenvolvimento socioe co nômico
daquela região, considerada um espaço vazio em termos demográficos e
econômicos. Em contraposição a essa perspectiva desenvolvimentista,
o movimento etnopolítico, surgido no final da década de 1980, propôs
e implantou os chamados projetos de “alternativas econômicas”, etnodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável.
Com o avanço significativo dos processos de regularização de terras
indígenas, os povos indígenas do Alto rio Negro nos último dez anos elegeram como prioridade de suas lutas e ações a questão da sustentabilidade
econômica de seus territórios e comunidades. A noção de sustentabilidade econômica preconizada pelas lideranças indígenas é abrangente
e complexa, uma vez que envolve desde as economias indígenas até o
desenvolvimento econômico sustentável de escala. O aspecto econômico é priorizado num programa mais ambicioso, em vias de formulação
pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN –,
o Programa Regional de Desenvolvimento Indígena Sustentável do Rio
Negro – PRDIS-RN –, cujo objetivo é articular, coordenar, qualificar,
diversificar e ampliar escalas de atuação e de resultados das inúmeras
iniciativas econômicas que, desde o final da década passada, estão em
curso. As economias indígenas a que me refiro são as práticas produtivas
tradicionais e de consumo baseadas na concepção cosmológica, integrada
e política dos povos indígenas. As alternativas econômicas são, portanto,
entendidas como complemento à capacidade das economias indígenas
tradicionais para responder às demandas atuais dos povos indígenas.
Nesse sentido, as alternativas econômicas não são concebidas como
alternativas ao desenvolvimento econômico clássico.
Essas iniciativas têm sido geridas pelas próprias comunidades, com
apoio técnico de assessorias externas, predominantemente de organi-Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 29
zações não governamentais, como o Instituto Socioambiental – ISA –,
e com apoio financeiro de diversas agências de desenvolvimento, como
o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas – PDPI –, no âmbito do
Ministério do Meio Ambiente e da União Européia.
A idéia de desenvolvimento ganhou extraordinária importância no
repertório discursivo dos 23 povos indígenas do Alto rio Negro, atualmente organizados em torno de 68 associações formais articuladas
pela FOIRN. A noção de desenvolvimento, que se configura como
uma etapa superior da civilização, tem sido valorizada o suficiente para
se tornar uma nova promessa de ideal de vida, em vias de substituir a
velha promessa civilizatória dos missionários. O processo civilizatório e
desenvolvimentista foi ganhando novas conformações orientadas pelos
diversos predicados (Barreto Filho, 1996) da teoria do desenvolvimento,
como os de desenvolvimento sustentável e etnodesenvolvimento ou, nas
palavras dos índios, de “alternativas econômicas”. Devo salientar que na
compreensão dos índios do rio Negro, de um modo geral, prevalece a
noção de “alternativa” econômica não como alternativa à noção de desenvolvimento clássica, mas à economia indígena, entendida aqui como
as diversas formas vigentes de organização da produção, do consumo
e da distribuição de bens praticadas pelos povos indígenas. Ou seja,
as alternativas econômicas se referem às modalidades de intervenção
necessárias para cobrir campos e escalas que as economias indígenas
atuais não alcançam.
Uma dessas preocupações diz respeito ao fato de que há uma ressonância dos princípios de sustentabilidade cultural e ambiental nos discursos
inovadores dos indígenas. Por outro lado, há também um descompasso
conceitual e operativo nos processos de implementação das iniciativas,
o que impõe limites aos propósitos e estratégias definidos – como os
propósitos de autonomia, autogestão e de participação indígena.
Ao final dessa investigação e reflexão sobre as experiências dos povos
indígenas do Alto rio Negro com projetos, chego à conclusão de que,
mesmo os projetos considerados inovadores pelos índios e seus parceiros, pautados pelas noções reformistas de desenvolvimento alternativo,
desenvolvimento sustentável e etnodesenvolvimento, estão longe de
romper a histórica perspectiva integracionista e civilizatória imposta pelos
agentes colonizadores. Proponho que, na análise, o primeiro passo seja
reconhecer essa realidade, para desconstruir discursos que, de forma sutil 30 Estudos indígenas
e muitas vezes inconsciente, escondem as muitas faces dessa realidade,
reduzindo as possibilidades de os povos indígenas buscarem estratégias
mais adequadas e eficientes para garantir maior equilíbrio na correlação
de forças. Tento demonstrar como os projetos de desenvolvimento
sustentável em implementação no Alto rio Negro sofrem flagrantes limitações conceituais e metodológicas. Tais limitações estão presentes já
na sua concepção, ou seja, nos princípios básicos que os orientam, como
nos procedimentos burocráticos e técnicos preestabelecidos, segundo os
quais a gestão dos projetos deverá ser exercida por organizações formais.
Estas, na verdade, enfrentam enormes dificuldades para gerir os projetos,
por serem fortemente artificiais diante de outras modalidades de relações
sociais historicamente consolidadas. Essas limitações tanto podem impor
limites ao avanço de propósitos bem intencionados, como podem estimular outras perspectivas subjacentes, como a aceleração do processo
de integração total dos índios.
Essa encruzilhada, a meu ver, é uma oportunidade para colocar a
Antropologia e seus instrumentos analíticos, políticos e ideológicos para
além de seus espaços acadêmicos. Uma oportunidade para encarar o
que parece indesejável e ingrato, ou seja, o questionamento das sociedades dominantes e dos onipotentes Estados nacionais, que continuam
sufocando povos inteiros ainda não totalmente enquadrados nos seus
sistemas de poder e de controle econômico, político e cultural. Não me
refiro a uma negação do Estado como espaço territorial ou insti tu cional,
mas à necessidade de uma visão plural efetiva que permita a coexistência
de outras racionalidades e de outros modos de viver.
A pesquisa realizada focalizou lideranças indígenas denominadas
“novas lideranças políticas”. Esse termo é utilizado para designar as
lideranças que recebem tarefas específicas para atuar nas relações
com a sociedade não indígena, ou seja, lideranças que não seguiram
os processos socioculturais próprios para chegarem ao posto. São os
dirigentes de associações e de comunidades, os dirigentes políticos e
técnicos indígenas. Embora complementares, são diferentes das “lideranças tradicionais”1
, como os caciques ou chefes de povos, clãs ou
1
 Os atuais dirigentes formais das comunidades indígenas do Alto rio Negro são denominados “capitães”, termo imposto pelos colonizadores a partir do século XIX. Essas lideranças são também
consideradas tradicionais ou velhas lideranças, seja pela denominação, seja porque seguem os mesmos
ritos de eleições e critérios utilizados na escolha de dirigentes de associações.Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 31
fratrias, tanto no processo de escolha ou de legitimação, quanto nas
funções que exercem. No campo concreto, as lideranças tradicionais
e as lideranças políticas coexistem e tentam coordenar suas ações e
representações de forma conjunta, tarefa nem sempre fácil. As novas
lideranças políticas geralmente são conside radas como brokers2
 entre
as lideranças tradicionais e a socie dade regional ou nacional. Entendo
que, mais do que intermediários, são indutores das idéias de desenvolvimento como resposta aos novos e velhos problemas enfrentados
pelas comunidades indígenas.
A região investigada é a que mais conheço e que apresenta uma
enorme riqueza, em termos de sociodiversidade étnica e biodiversidade,
bem como em históricas experiências no campo de projetos de desenvolvimento: a “microrregião do Alto rio Negro”, ou, como denomina
Melatti (1998), “área etnográfica do noroeste amazônico”. Nessa região
vive cerca de 10% da população indígena brasileira (35 mil índios), distribuída em 23 etnias, articuladas em torno de uma federação indígena, a
FOIRN, onde há importantes projetos estratégicos do governo brasileiro,
como o Calha Norte, o Sistema de Vigilância da Amazônia – SIVAM – e
outros projetos pontuais e locais geridos pelos próprios índios.
Para fins didáticos, utilizei um recorte temporal, tomando como
referência os dois últimos momentos significativos da história recente
dos povos indígenas do Alto rio Negro: a) o período final das grandes
tradições culturais indígenas do rio Negro, reprimidas pelas frentes
colonizadoras, principalmente pelos missionários; e b) o período atual
de revalorização das tradições culturais, de reafirmação das identidades
étnicas e, também, momento em que se iniciaram os chamados projetos
de etnodesenvolvimento, com a emergência do movimento indígena de
caráter etnopolítico. Essas duas fases correspondem aos últimos oitenta
anos, portanto, ainda presentes, marcantes na vida e na memória dos
indivíduos e dos grupos sociais atuais. Trata-se de um período de grandes
transformações socioculturais que resultaram em profundas contradições
vividas por esses povos nos dias de hoje.
2
 O termo brokers é aqui utilizado, segundo a literatura antropológica, para designar as novas lideranças
indígenas que exercem a função de intermediários entre o mundo dos brancos e a aldeia.32 Estudos indígenas
A pesquisa de campo foi realizada junto às lideranças indígenas
dirigentes da FOIRN e representantes do PDPI e do ISA, em São Paulo, Manaus, São Gabriel da Cachoeira, Comunidade de Carará-Poço
(Assunção do Içana) e Comunidades Cabeçudo (rio Içana) e Taracuá,
(rio Uaupés). Além de entrevistas dirigidas, tive oportunidades de
acompanhar e de participar de discussões importantes promovidas pelas
lideranças locais, bem como de eventos locais, regionais, nacionais e
internacionais relativos ao tema.
ANTROPOLOGIA E DESENVOLVIMENTO
Os povos indígenas do Alto rio Negro têm passado por uma história
relativamente longa de contato com a sociedade não indígena desde
a primeira metade do século XVIII (Wright, 2005). Desde então, o
comércio português e espanhol de escravos atingiu profundamente o
Alto rio Negro, resultando em grandes perdas demográficas para todos os povos da região. Na década de 1870, o boom da borracha havia
atingido o Alto rio Negro, introduzindo o sistema de exploração de
mão-de-obra mais intenso que os indígenas já haviam experimentado
(Galvão, 1979). Como não poderia deixar de ser, os povos indígenas
foram muito perseguidos durante esse longo processo de dominação,
embora, sempre que possível, se mantivessem longe dos brancos. A
crescente resistência à dominação branca por parte dos índios culminou com uma série de movimentos, denominado por Wright (2005)
de movimentos milenaristas, desencadeados a partir de 1857. Alguns
líderes sociorreligiosos profetizaram a destruição do mundo por um
grande incêndio; outros, a inversão da ordem socioeconômica existente,
após a qual os brancos serviriam aos índios. As narrativas orais relativas
a esse tempo, fundamentadas em uma reinterpretação dos saberes mitológicos, deixam claro que os profetas indígenas colocavam seu poder
contra a opressão econômica e política dos brancos e que a chave para a
sobrevivência indígena estaria na sua autonomia em relação à influência
devastadora do contato. Trata-se de uma nova interpretação da visão
cosmológica ancestral.
A partir de 1914, quando começou a instalação definitiva das missões
salesianas, e em 1919, com a implantação dos postos do Serviço de
Proteção ao Índio – SPI – por toda região, inicia-se também uma nova Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 33
fase dessa longa luta de resistência étnica. Embora as missões salesianas
e os postos do SPI tenham ajudado a amenizar a situação de exploração
a que os índios estavam submetidos, os efeitos foram mínimos, de vez
que o processo de exploração de mão-de-obra continuou se intensificando durante a Segunda Guerra Mundial.
A política indigenista oficial de assimilação, apoiada, ao menos no
início, pelos salesianos e, até hoje, pelos militares, dificultou ainda mais
para os índios a defesa de seu território e de sua cultura. Diante dessas
invasões, os índios reafirmaram sua postura histórica de autonomia com
relação aos brancos, resistindo a todas as formas de imposição de projetos,
inicialmente. É nessas circunstâncias que as lideranças políticas surgiram
para organizar a luta sob novas formas e níveis. A participação ativa dessas lideranças na criação da FOIRN em 1987, na política partidária e na
criação de diversas associações de comunidades indígenas, representa uma
nova configuração de articulações políticas pan-étnicas.
Segundo Ribeiro (2000), o conceito de desenvolvimento tem sido
utilizado como um dos mais inclusivos até hoje nos sistemas interétnicos,
principalmente do ponto de vista político e econômico, em grande medida
pela sua capacidade de sedução discursiva entre todas as camadas sociais
da sociedade moderna. O discurso desenvolvimentista dos agentes de
contato foi um poderoso instrumento utilizado para convencer os índios
da necessidade de aceitarem o processo aculturativo e a integração acelerada à “comunhão nacional” (Ribeiro, 1979), ou à “sociedade nacio nal”
(Oliveira, 1981). É evidente que os povos indígenas do Alto rio Negro
foram envolvidos pelas idéias de civilização e progresso desde os primeiros contatos ainda no século XVIII (Galvão, 1979; Wright, 2005),
principalmente por parte dos agentes econômicos do extrativismo
(seringalistas). Mas foi a partir da fixação dos missionários na região,
em 1914, e da implantação dos postos indígenas do SPI, em 1919, que
esses conceitos adquiriram relevância social nas vidas desses povos, uma
vez que, além da dimensão econômica, foram valorizadas as dimensões
so ciais e política, ao mesmo tempo em que tais conceitos passaram a
ganhar um substantivo sociológico importante como projeto.
Esses projetos se constituíram em instrumentos sutis de dominação
cultural, política e econômica. Nesse sentido, podemos supor que, no
caso do Alto rio Negro, o conceito de desenvolvimento foi herdeiro dos
conceitos de civilização, progresso e integração. Os missionários sempre 34 Estudos indígenas
pautaram suas ações sociais e religiosas em razão da necessidade de
mudança cultural, econômica e política. O SPI e a Fundação Nacional
do Índio – FUNAI – também basearam suas estratégias de proteção e
defesa dos povos indígenas na idéia de integração, de comunhão nacional, uma vez que o índio era considerado uma categoria transitória. A
possibilidade de continuidade étnica estava associada a essa integração
e progresso, entendida como evolução cultural, econômica e política.
Nesse sentido, o diálogo com o trabalho clássico O processo civilizador, de Norbert Elias (1994), sobre o desenvolvimento dos modos
de comportamento dos indivíduos e das sociedades em diferentes
épocas no Ocidente, principalmente na Alemanha, França e Inglaterra,
contribuiu para a compreensão dos conceitos de civilização, progresso
e desenvolvimento, enquanto conceitos fundamentais da sociedade
moderna e contemporânea. O processo de constituição dos hábitos e
comportamentos humanos, conforme foi tratado pelo autor, possibilitou
a compreensão do processo civilizatório imposto aos povos indígenas no
Brasil, duplamente colonizados e dominados econômica e culturalmente,
de início pelas potências ocidentais e, em seguida, por setores sociais
internos, fenômeno que ficou conhecido como “colonialismo interno”
(Bartolomé, 1998; Oliveira, 1978), em nome dos bons costumes e
da moral das socie dades européias. No que diz respeito a essa última
questão, levei em conta a definição, mais ampla de Elias (1994), que,
além de referir-se à civilização como uma grande variedade de fatos,
comportamentos, conhecimentos, a define também como “a consciência
que o Ocidente tem de si mesmo”, ou a própria “consciência nacional”,
com base na qual projetam e articulam o domínio do mundo.
Foi em meio a essa turbulência sócio-histórica, experimentada pelos
povos indígenas do Alto rio Negro, que em 1987 as lideranças indígenas
da região, aproveitando-se da realização da grande assembléia, criaram a
FOIRN, como resposta e “resistência” às tentativas de imposição de modelos de desenvolvimento verticalizado por parte do Estado. A FOIRN
tem como principal tarefa a defesa dos direitos e dos interesses dos povos
indígenas da região e a busca de modelos alternativos de desenvolvimento
que levassem em conta suas culturas, seus valores, seus conhecimentos
e suas formas de organização social, política, econômica e religiosa. A
proposta amplia a noção de desenvolvimento, até então aplicada em
um contexto específico, na medida em que incorpora novas dimensões Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 35
como a questão da territorialidade, da etnicidade e de um novo sujeito coletivo – os povos indígenas. Em grande medida, a ampliação da
dimensão conceitual de desenvolvimento no âmbito acadêmico parece
ter contribuído para a dinâmica interpretativa e operativa que orientou
os projetos sociopolíticos incorporados pelo movimento indígena local,
como as dimensões trabalhadas por Rodolfo Stavenhagen (1985) e por
Bonfil Batalha (1982) e analisadas principalmente por Gustavo Ribeiro (2000) e Arturo Escobar (1998) – ou seja, etnodesen volvimento,
desenvolvimento alternativo, ou desenvolvimento sustentável –, ou,
como denominam os índios, “desenvolvimento autônomo”.3
 O diálogo
com esses autores permitiu compreender os limites de novos modelos
“alternativos” de desenvolvimento, uma vez que não conseguem articular e integrar todas as dimensões que compõem de forma holística
a vida dos povos indígenas. O desenvolvimento sustentável privilegia a
dimensão ambiental, mas não a dimensão social e cultural. O etnodesenvolvimento privilegia as necessidades básicas e recursos locais dos
grupos étnicos, mas não privilegia a dimensão política e cultural que
possibilitaria o questionamento da onipotência dos Estados nacionais.
O limite comum, portanto, presente nos modelos de desenvolvimento
refere-se ao fato de proporem reformas conceituais e metodológicas
nos marcos dos Estados nacionais. Isto é, propõem reforma do Estado
para atender às culturas consideradas marginais, mas sem questionar o
próprio Estado ou aquilo que de fato inviabiliza os processos autônomos
de desenvolvimento auto-sustentável dos povos indígenas, que são os
instrumentos de controle e dominação.
Mesmo projetos mais atuais propostos pela FOIRN, com fortes discursos inovadores, que têm buscado superar o espectro assistencialista/
paternalista, ainda evidenciam fortes desencontros com as aspirações,
anseios e demandas indígenas. As principais dificuldades estão intimamente ligadas à questão da externalidade dos objetivos do projeto, isto
é, estão voltados muito mais para atender a uma perspectiva projetada
pelos formuladores de políticas para os índios do que para atender às
demandas e realidades indígenas.
3
 O termo é muito usado nos discursos correntes das lideranças indígenas e tomo como hipótese
que sua utilização tem relação com o conceito de etnodesenvolvimento, isto é, desenvolvimento
planejado e gerido pelos índios.36 Estudos indígenas
A existência atual de 68 organizações indígenas no Alto rio Negro
filiadas à FOIRN engendrou na vida das comunidades indígenas da região
uma nova dinâmica na relação com a sociedade nacional e internacional, a partir dos denominados projetos alternativos a elas destinados. A
dúvida mais comum entre os técnicos externos aos projetos, inclusive
antropólogos e lideranças indígenas que atuam nessa área, é se os índios são capazes de entender e dar conta dos procedimentos e critérios
adotados pelos programas e projetos que orientam a escolha das iniciativas indígenas passíveis de obter financiamento. Esses projetos exigem
procedimentos que conduzem a uma avaliação final, como exitosas ou
fracassadas. Esse caráter é uma demonstração inconteste de que tais
projetos são estranhos às culturas dos índios, que podem vir a se tornar
reféns ou vítimas desse processo.
A questão colocada foi: por que é tão difícil para os povos indígenas
aceitarem as condições e as orientações apresentadas pelos projetos,
mesmo quando são definidos com a sua participação? Uma questão a
ser considerada é a necessidade de analisar as noções de projeto exitoso ou projeto fracassado que os programas atuais de desenvolvimento
sustentável utilizam como critérios de avaliação. A definição de fracasso
ou do êxito de determinada ação e de seu resultado diz respeito a um
juízo de valor que é socialmente construído.
OS PROJETOS EM ÁREAS INDÍGENAS
As pesquisas, os estudos e as reflexões realizadas ao longo de dois anos
de mestrado indicam que as dificuldades supra-enumeradas são o resultado da inadequação de propostas e programas, enfim, de desencontros
entre realidades e racionalidades distintas: o entendimento que se tem de
políticas de desenvolvimento por parte dos planejadores não indígenas e as
diferentes matrizes socioculturais dos povos indígenas. O primeiro desafio,
portanto, é de ordem cultural e política. Cultural porque sempre se ignoram os conhecimentos, os valores e as tradições locais indígenas; política,
porque as políticas públicas ainda revelam uma acentuada concepção dos
índios como seres primitivos, ainda em evolução, relativamente incapazes,
que precisam ser enquadrados e integrados à civilização branca.
Na metodologia atual dos projetos formulados pelos agentes de desenvolvimento mesmo com a anuência dos povos indígenas, consideram-se Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 37
critérios como a participação indígena e a sustentabilidade ecológica e
cultural, mas como objeto e condições de financiamento e não como
processo ético-moral e metodológico que deveriam ser considerados na
própria forma de gestão. Na maioria dos casos, a participação indígena
tem sido mero detalhe formal, via de legitimação das iniciativas por
parte de algumas lideranças indígenas, mas com muito pouco poder
de decisão e de intervenção das comunidades indígenas propriamente
na construção de novos modelos de projetos. Levar em consideração a
dimensão cultural implicaria levar em conta na concepção e na gestão
dos programas e projetos as diferentes formas de organização social,
cultural e econômica dos povos indígenas. Na prática, isso implica
necessariamente considerar, para fins de planejamento e gestão, as
diferentes racionalidades produtivas e de consumo, o que, por sua vez,
se reflete diretamente em distintas racionalidades de tempo, espaço,
consumo, tradições e, sobretudo, formas de tomadas de decisões e de
relações sociais subjacentes.
As formas de financiamento dos projetos segundo um padrão técnico-
burocrático do Estado é um exemplo clássico dessa intolerância cultural.
Os projetos de desenvolvimento, mesmo quando concebidos, elaborados e geridos pelos próprios índios segundo os princípios da burocracia
estatal, na maioria dos casos analisados, têm gerado fortes conflitos e
tensões intra-aldeias sem precedentes. Estes, entretanto, não constam
dos relatórios técnicos produzidos e também não são suficientemente
explicitados para a sociedade local. A omissão das tensões obedece a
uma lógica subjacente às próprias culturas, uma vez que elas mexem
com conflitos culturais, internos e históricos, e a sua explicitação poderia pôr em risco a continuidade de um financiamento. Existe também
sempre a esperança de que um dia as comunidades conseguirão “entender e aceitar” as coisas como são. Quando levamos até o fim essa
análise, concluímos que as organizações indígenas, por exemplo, como
proponentes e executoras de tais projetos, são, em si mesmas, o início
dos conflitos, uma vez que é por meio delas que o mundo dos brancos
começa a violar as formas de organizar os trabalhos e as tomadas de
decisões dentro das aldeias ou entre as aldeias. As organizações impõem
novos campos de poder gerando conflitos internos, e novas formas de
relações sociais violando os princípios tradicionais, como os de lealdade
e reciprocidade de grupos corporativos. 38 Estudos indígenas
Os projetos são orientados por princípios que dizem respeito aos
ideais brancos e que começam por impor estruturas de poder, como as
associações formais puramente artificiais, as lideranças artificiais que,
embora com certo domínio de conhecimentos e habilidades técnicas,
não conseguem articular os espaços internos de poder tradicional. Além
disso, utilizam conceitos que não encontram eco nas dinâmicas sociais
tradicionais, lógicas administrativas, burocráticas e técnicas que quebram
ou concorrem com a autonomia e autoridade tradicional.
Entre os Baniwa, por exemplo, é crime não respeitar as decisões coletivas sob o comando dos chefes de fratrias, clã e sibs. Por isso, qualquer
distribuição de bens e serviços teria que necessariamente obedecer a essa
rede de relações sociais e políticas, que os procedimentos burocráticos
dos projetos ignoram e negam, resultando em sérios conflitos sociais,
com ameaças ou mortes de lideranças jovens que não gozam de poder
efetivo como as autoridades tradicionais. Nesse sentido, ao mesmo
tempo em que os projetos são considerados a tábua de salvação política
das novas lideranças indígenas políticas, são também seus algozes, contradizendo, em parte, a idéia do “projetismo” ou “mercado de projetos”
que considera os projetos a alavanca das lideranças políticas e razão de
ser das organizações indígenas e organizações não-governamentais –
ONGs – de um modo geral.
A outra questão relevante observada é que as propostas conceituais
alternativas, como as de etnodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável, embora sejam tratadas de forma considerável pela literatura
acadêmica, são limitadas e não dão conta das realidades particulares e
gerais vivenciadas empiricamente pelos povos indígenas. Isso porque dão
pouca ou nenhuma atenção aos seus legítimos projetos coletivos sociais,
e não rompem com o paradigma etnocêntrico e centralista dos Estados
nacionais, que continuam sufocando povos inteiros que ainda não se enquadraram nos seus sistemas políticos, culturais, econômicos monolíticos.
Essa rápida inserção no mundo dos desafios que envolvem as experi-
ências indígenas com o campo dos projetos de desenvolvimento permitiu
analisar algumas formulações teóricas importantes desenvolvidas por autores atuais que tratam da questão do etnodesenvolvimento. Nestas, são
flagrantes a predominância da idéia de que o que falta é uma adaptação
simétrica entre os planejadores e destinatários de etnodesen volvimento,
no sentido de que os tais planejamentos precisam incorporar algumas Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 39
metodologias particulares dos povos indígenas para que alcancem seus
objetivos esperados. Não há dúvida de que se trata de um avanço, uma
vez que supera a noção mais comum de que são os índios que precisam
se adaptar e se habilitar à lógica dos ideais de desenvolvimento. No
entanto, entendo que isso não seja suficiente para a compreensão do
desencontro de linguagens, de racionalidades, de temporalidades, de
padrões ético-morais que entram em jogo nessa relação. É mais do que
desenvolver planejamentos diferenciados, voltados a necessidades básicas
do grupo; é admitir que se trata de mundos regidos por racionalidades
heterogêneas, que precisam de mecanismos políticos, jurídicos e administrativos para que sejam efetivamente considerados instrumentos de
construção de cidadania específica (cidadania plural). Reconhecer isso
é relativizar todo o aparato jurídico-administrativo que orienta os atuais
projetos. Caso contrário, é inovar para não mudar.
O que se pode delinear com base nos eventos e processos que seguiram os ditames da teoria do desenvolvimento – o modelo de civilização
que domina o mundo ocidental – é que este está em exame, isto é,
clamam os imperativos filosóficos e epistemológicos da própria humanidade, questionando se deve o desenvolvimento permanecer como o
grande paradigma ocidental (respaldado pelo avanço científico-técnico
que garante, em tese, a realização e o progresso das virtualidades humanas, das liberdades e poderes dos homens civilizados), ao qual todos
os povos precisam se incorporar. De forma mais concreta e geral, há
duas saídas possíveis: a primeira, a necessidade de um novo modelo de
Estado, o que implica uma nova sociedade, calcada em novos valores
da vida, da humanidade e do mundo, que as atuais teorias do desenvolvimento, desenvolvimento sustentável, etnodesenvolvimento e outras
não dão conta. A segunda é avançar em concessões dadas pelo atual
Estado e pela sociedade, o que implica a necessidade de sua profunda
reformulação para abrir espaços de poder, formando Estados verdadeiramente pluriétnicos e pluriculturais, em que haja espaço efetivo para
todas as culturas que constituem o país. Ainda assim é necessário que os
instrumentos analíticos superem seus próprios limites e redomas, para
permitir que outros sistemas cognitivos também contribuam na busca
de soluções para os graves problemas contemporâneos. Nesse caso, não
resta dúvida de que o melhor a fazer é buscar o domínio e a apropriação
dos instrumentos técnico-científicos que os projetos podem oferecer 40 Estudos indígenas
para disponibilizá-los aos povos indígenas e que as formas dessas apropriações sejam resultantes de suas decisões qualificadas, processos para
o qual a Antropologia pode contribuir.
Ao que tudo indica, os povos indígenas do rio Negro têm consciência
dessas possibilidades e oportunidades e estão apropriando-se da melhor maneira possível, ainda que com todas as contradições e conflitos
inerentes ao processo, dos potenciais benefícios oferecidos a eles. As
trajetórias dos dirigentes das organizações indígenas locais evidenciam
um ativo aprendizado da linguagem e das estratégias da tecnoburocracia,
do manejo de instrumentos administrativos e das técnicas de gestão,
como via de apropriação da lógica institucional de entidades públicas e
de cooperação internacional, visando ao aprimoramento da eficiência e
eficácia de suas entidades e lutas.
Os projetos de desenvolvimento são necessidades atuais e desejos das
comunidades indígenas, como um meio de buscar o novo ideal de vida,
espelhado no que eles acham ser o ideal de vida dos brancos. Quando
os Baniwa reivindicam e lutam por melhoria de vida, o que eles estão
querendo é o acesso aos bens utilitários e serviços públicos básicos que
facilitem a sua vida concreta no dia-a-dia. Ou seja, ferramentas de trabalho que facilitem o manejo das roças e o trabalho da pesca e da caça.
Essa concepção de vida é muito diferente do ideal de desenvolvimento
humano das sociedades brancas, no que diz respeito à capacidade de
acesso a tecnologias, a bens e serviços, à renda per capita, a recursos
materiais e intelectuais, numa perspectiva de acumulação infinita de
riquezas. Ocorre que aos Baniwa o valor operativo do futuro tem pouca
ou nenhuma importância, uma vez que não concebem como condição
de vida o acúmulo de riquezas, e para o qual é necessária uma complexa operação de planejamento, estratégias, avaliações e indicadores
de resultados.
Os Baniwa operam muito mais com o passado e o presente. O passado
é a valorização da experiência vivida que os habilita a enfrentar com maior
segurança o presente e é também a garantia natural do futuro. Essa concepção e forma de viver assustaram os brancos, quando perceberam que
os índios trabalhavam algumas poucas horas por dia, razão pela qual foram
denominados preguiçosos e inúteis à produção econômica da colônia, o
que os levou a buscar mão-de-obra africana. Ora, se aquelas poucas horas
de trabalho sempre foram suficientes para garantir o necessário para a
“sobrevivência” diária da família, por que deveria se fazer diferente? A Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 41
idéia de que é melhor mais trabalho e produtividade só tem valor em
uma lógica cumulativa de riqueza como condição para a vida. Embora não
seja essa a lógica dos projetos de etnodesen volvimento e desenvolvimento
sustentável, as experiências desenvolvidas pelos Baniwa e orientadas por
eles até hoje não conseguiram romper com essa perspectiva econômica
capitalista, em grande medida porque não romperam com os paradigmas
da perspectiva desenvolvimentista clássica. Para os Baniwa, não é o tempo
dedicado ao trabalho nem a quantidade da produção que importa, mas
o que se faz do tempo e da produção, fundamentalmente articulados na
lógica da troca e da solidariedade coletiva – expressa no ritual do dabucuri,
praticado pelos índios da região.
O enquadramento político da interlocução e das possibilidades de
acesso das comunidades indígenas aos programas de financiamento
impôs a necessidade de as lideranças indígenas se habilitarem para
dar conta da tarefa de interlocução. Ora, habilitação ou capacitação
implica aprender coisas novas para viver. Em última instância, significa fazer esforço para incorporar novas concepções, que podem
reforçar ou anular as concepções existentes. Significa ainda assumir
novas atitudes e comportamentos para pensar e fazer como o branco,
ou parecido com ele. Nesse sentido, não há meio termo. O que pode
existir é uma transição caracterizada por conflitos e contradições identitárias. Não estou dizendo que, ao aceitar as lógicas de projetos, os
Baniwa tenham decidido consciente ou inconscientemente abrir mão
de sua identidade cultural; mas chamo atenção para o fato de que, ao
reivindicarem e aceitarem as condições impostas pelos projetos como
possibilidade para resolver seus problemas, essa decisão tem um custo
social e cultural que precisam administrar, uma vez que apontam para
horizontes socioculturais diferentes daqueles próprios dos Baniwa,
como povo etnicamente diferenciado.
Na realidade, ou se aprendem e se incorporam novas práticas e
racionalidades dos projetos, ou se finge que aprendeu a lição, pois é a
única forma de acesso aos benefícios financeiros necessários para resolver velhos e novos problemas. O que mais acontece é que as lideranças
acabam incorporando o discurso e a prática das agências no cotidiano.
Pode ser numa intensidade e velocidade variada, mas é um processo
real. Um dos indicadores dessa mudança, ao que tudo indica, boa para
os projetos e ruim para as comunidades, é o distanciamento das lideranças de suas comunidades de base, seja para dar conta dos preceitos 42 Estudos indígenas
dos projetos, dado que as lideranças só poderão implementá-los longe
das comunidades, seja pelas condições burocráticas ou sociais. Muitas
regras de implementação de projetos, ao serem aplicadas nas comunidades, colocariam em conflito as lideranças com a comunidade e com
os próprios parentes. No caso dos Baniwa, a maioria dos projetos de
que tenho conhecimento chegaram a colocar em risco a vida de muitas
lideranças, que tiveram que deixar suas comunidades para se refugiarem
em outros lugares, preferencialmente nas cidades próximas.
Por fim, os projetos criam efetivamente uma nova diferenciação social e econômica entre os indivíduos e grupos dentro das comunidades
e dos povos indígenas, pelo menos na forma como hoje são pensados
e executados. As famílias e comunidades beneficiadas começam a ter
mais oportunidades de melhorar suas condições de vida por força de
apoio externo. O problema não é o fato de conseguirem as melhorias,
pois é um direito de todo indivíduo e coletividade lutar para alcançá- las.
No entanto, a conquista de melhores condições de vida deve ser mérito
individual ou grupal, sem intervenção externa e sempre visando ao bem
comum, segundo a concepção baniwa.
Os projetos são formas estabelecidas de intervenção na realidade das
comunidades indígenas, e como qualquer objeto cultural apresentam
uma forma, um uso, uma função e um significado, a partir dos quais são
avaliados como fracassados ou exitosos, conforme os resultados esperados.
Essa operação é realizada tanto pelos idealizadores e gestores, quanto
pelos beneficiários, cada qual à sua maneira e segundo seus interesses e
objetivos nem sempre explicitados nas formas escritas e discursivas ou nas
avaliações dos projetos. Disso resulta a “fritura” comum das lideranças
indígenas que coordenam ou intermediam os projetos, na medida em
que a gestão é também uma forma de subordinação que, ao que tudo
indica, as comunidades Baniwa ainda condenam.
Entendo e acredito que os projetos no Alto rio Negro são fundamentais para o presente e o futuro das comunidades indígenas. Esse é um
fato inquestionável. Os projetos continuarão sendo a solução para vários
problemas de sobrevivência dos povos que lá habitam, independentemente de mudança ou não do atual quadro aqui tratado, uma vez que
as comunidades estão se ajustando e se enquadrando às novas lógicas
operativas desses projetos. O enquadramento, entretanto, está longe
de ser uma renúncia à alteridade. Os projetos fazem parte da estratégia Povos indígenas e etnodesenvolvimento no Alto rio Negro 43
de apropriar-se do que é bom e necessário do mundo moderno para
garantir o controle dos horizontes socioculturais próprios, negados pelos
brancos ao longo dos séculos de escravidão e dominação. Nesse sentido,
os Baniwa, de um modo geral, percebem as tendências sutis de novas
formas de dominação dos projetos e procuram sutilmente reagir de
diversas maneiras, mas também reconhecem que, na atualidade, eles
constituem as únicas possibilidades concretas para sair da invisibilidade
e da “incapacidade” de dominar os instrumentos de poder dos brancos.
Penso que o processo de integração na sociedade nacional parece irreversível entre os Baniwa, mas isso não significa perda de alteridade, pois ela
permanece como base articuladora inexorável da vida do povo, como afirma
Oliveira (1996). Há uma variação da situação dos Baniwa contingenciada
pelas relações sociais e políticas, estabelecidas e necessárias para garantir a
sobrevivência e os interesses pela cidadania extra-aldeia, mas também um
substrato da condição dos Baniwa, no contexto temporal e espacialmente
definido pela ancestralidade cosmológica; ou seja, pela tradição que marca
e define sua origem e destino no mundo baniwa e que a aparente sedução
da modernidade e o acesso a ela não podem acarretar uma perda da identidade. Essa contingência da identidade ajuda a compreender a necessidade
que os povos indígenas têm de dominar os regulamentos dos brancos
(cidadania), para que não só suas demandas de autonomia econômica e
territorial, bem como seus direitos sejam garantidos nos marcos do Estado
brasileiro, mas também para estabelecer as fronteiras dessa apropriação.
Aqui residem, a meu ver, os limites dos projetos e programas, que muitas
vezes tentam inutilmente ultrapassá-los. Para os povos indígenas, a ciência é uma segunda cultura ou uma subcultura a que eventualmente eles
recorrem para complementar e reforçar seus conhecimentos, uma vez
que a primeira cultura é a deles, que organiza e sustenta toda a vida real e
imaginária do grupo. Numa escola indígena bilíngüe, por exemplo, a língua
portuguesa é estrangeira, ou é uma segunda ou terceira língua, uma vez
que a língua indígena local é a primeira. É, portanto, com essa perspectiva
que os projetos de desenvolvimento e seus predicados – desenvolvimento
alternativo, etnodesenvolvimento, desenvolvimento sustentável ou simplesmente alternativas econômicas – ganham relevância prática para os
povos indígenas do Alto rio Negro e relevância teórica para a subcultura
científica, se considerarmos o ponto de vista indígena.44 Estudos indígenas
Gersem José dos Santos Luciano
Baniwa, natural da aldeia Yaquirana, Município de São Gabriel da Cachoeira
– AM. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília – UNB, Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS. A sua dissertação de mestrado, Projeto é como branco trabalha: as lideranças que se virem para aprender
e nos ensinar – experiências dos povos indígenas do rio Negro, foi orientada pelo
Professor Henyo Trindade Barretto Filho, Ph.D do Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília – UnB. Atualmente cursa o doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Brasília e dirige o Centro Indígena de Estudos
e Pesquisas – CINEP, com sede em Brasília. Ex-bolsista IFP, turma 2003. E-mail:
gersem@terra.com.br, gersem@unb.br
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de inclusão das escolas no sistema ofi cial
de ensino de Mato Grosso
Francisca Navantino Pinto de Ângelo
RESUMO
Este artigo apresenta a pesquisa sobre o processo de inclusão das escolas indígenas no sistema oficial de ensino do estado de Mato Grosso,
tendo como eixo central o protagonismo indígena. O trabalho ressalta
a implementação de políticas de educação escolar indígena a partir da
perspectiva indígena e os seus desdobramentos no interior das comunidades. Destaca o papel dos movimentos e organizações indígenas na luta
para a consolidação da legislação vigente, tendo como foco a discussão de
estratégias que contribuam para a mudança das relações entre o Estado
e as sociedades indígenas. Ressalta que o grande desafio para os sistemas
de ensino é lidar com este novo processo de escolarização e identificar
os interesses e as necessidades dos diferentes povos indígenas.
PALAVRAS-CHAVE
EDUCAÇÃO DE ÍNDIOS – MOVIMENTOS SOCIAIS – POLÍTICAS EDUCACIONAIS – PROTAGONISMO INDÍGENA46 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
Este estudo aborda a realidade das escolas indígenas em Mato Grosso
no período de 1996 a 2002, focalizando os impasses e as contradições
ocorridas no processo de sua inclusão no sistema oficial como escolas
específicas, diferenciadas e interculturais. No estado do Mato Grosso,
as discussões e as reflexões acerca desse novo tipo de escola se intensificaram a partir da década de l980, concomitantemente à instituição de
políticas públicas pioneiras voltadas para a diversidade étnica e cultural.
Para tanto, as escolas indígenas contaram com a participação decisiva
do movimento indígena e de entidades indigenistas nas negociações e
no diálogo com o governo.
É consenso que já temos uma legislação estadual, nacional e até
mesmo internacional que define princípios, regulamenta a educação
escolar indígena e assegura a plena participação dos povos indígenas na
definição e na elaboração das políticas públicas. Entre esses instrumentos, destacam-se resoluções e pareceres, a Constituição Federal de 1988
(Brasil, 1988), a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil,
1996) e a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho
sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, ratificada
pelo Brasil em 2002 (ver Organização Internacional do Trabalho, 1989).
Na prática, porém, esse direito não tem sido garantido em sua plenitude, uma vez que os indígenas ainda não ocupam de fato o papel de
protagonistas1
 nesse processo. Conseqüentemente, verifica-se a frustração de expectativas dos povos indígenas, gerada pela percepção de
que, embora tenham conquistado progressos em termos da legislação,
ainda são inúmeras as dificuldades a serem enfrentadas. Várias ações
tidas como prioritárias por esses povos, para fazer avançar as práticas
ligadas à educação indígena, não chegam a ser implementadas pelas
autoridades não indígenas.
1
 Protagonismo indígena neste trabalho é entendido como a capacidade cada vez maior de as sociedades
indígenas estabelecerem relações dialógicas com a sociedade nacional e exercerem o controle do
seu projeto de vida no presente e no futuro. Segundo Secchi (2005), o protagonismo indígena se
expressa especialmente pela capacidade de os indígenas ocuparem os espaços de interesse coletivo,
pelo exercício do diálogo intercultural qualificado e pelo estabelecimento de relações democráticas
e respeitosas com os diferentes setores da sociedade e do Estado brasileiro. Protagonismo indígena no processo de inclusão das escolas no sistema ofi cial de ensino de Mato Grosso 47
No campo educacional, a luta das sociedades indígenas pelo acesso
a uma escola de qualidade tem sido um verdadeiro calvário. Na maior
parte das vezes, há uma demora excessiva para que importantes resolu-
ções ou pareceres sejam aprovados e estejam aptos a ser aplicados. Um
dos exemplos é o caso da Resolução 3/99 (Brasil, 1999) e do Parecer
l4/99 (Brasil, 1999), que instituem a transferência da educação escolar
indígena para o sistema de ensino estadual após 9 anos de discussões no
âmbito do Conselho Nacional de Educação.
O paradigma da educação específica, diferenciada e intercultural
preceitua que a educação escolar indígena deve ser uma iniciativa de
caráter comunitário, vinculada aos projetos societários de cada povo.
Deve considerar os saberes e conhecimentos, reafirmar a identidade étnica, as tradições e a memória histórica dos indígenas, mas deve também
interagir com os novos saberes e relações advindas de outros povos. Ou
seja, a educação escolar indígena deve abordar a cultura indígena e os
novos saberes oriundos de outras sociedades.
Entretanto, o fato de as escolas indígenas diferirem dos padrões das
demais escolas atendidas pelo sistema gera um dilema para as instâncias
mantenedoras, como as secretarias estaduais e municipais de educação,
que nem sempre estão dispostas a implantar políticas diferenciadas
voltadas para segmentos específicos como as sociedades indígenas ou
sequer dispõem de meios para tal.
Dada a relevância dessa discussão, este artigo, focalizando especificamente o estado de Mato Grosso, procura mostrar as contradições
e os impasses com que se defronta a educação escolar indígena, a
sua fragilidade, a descontinuidade das ações e o desconhecimento da
população no que diz respeito à construção de uma política pública
compatível com os interesses e as necessidades dos povos indígenas.
Para a realização do estudo, utilizei a observação participante, entrevistei professores e lideranças indígenas, participei de seminários e
encontros de indígenas nos estados do Amazonas, Rondônia e Mato
Grosso e também consultei bibliografia disponível sobre o tema. 48 Estudos indígenas
AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS VOLTADAS AOS INDÍGENAS
No estado de Mato Grosso, até a década de 1990, a não ser por iniciativas esporádicas,2
 os governos ignoraram a questão indígena no estado,
privando esses povos de espaços que assegurassem o exercício dos seus
direitos, principalmente na política educacional. Ao discorrer sobre
as características dos trabalhos educacionais voltados às populações
indígenas por diferentes instituições em Mato Grosso, Secchi destaca:
Numa primeira fase houve a predominância dos professores externos
(não-índios) na condução das atividades escolares. Num segundo período,
que se estendeu até a década de l980, ocorreu uma desarticulação institucional que ocasionou sucessivas interrupções das atividades escolares,
quer pela ausência de professores nas aldeias, quer pela concorrência de
outras atividades com maior significado cultural para as comunidades. Por
último, um período comum à maioria das escolas a partir da década de l980
caracterizado pela regularização das atividades escolares e a redefinição dos
currículos e das metodologias de ensino (2002, p. 119).
A partir de l995, teve início o processo de inclusão das escolas diferenciadas no sistema de ensino. Ocorreram também diversos desdobramentos em razão da regulamentação da Constituição Federal e a da
nova Lei de Diretrizes e Bases. A nova legislação repercutiu no âmbito
da Secretaria de Estado de Educação e nas secretarias municipais. Na
gestão do governador Dante de Oliveira (1995-2002) aconteceram
diversos eventos relevantes para a democratização das escolas públicas.
Num processo aberto a toda a sociedade mato-grossense, foi realizado
o Fórum Estadual de Gestão Escolar, Democracia e de Qualidade, com
vistas a referendar a reforma de ensino no estado. O eixo central do
debate foi político e pedagógico, enfatizando especificamente a questão
da gestão democrática nas escolas públicas estaduais.3
No tocante à questão indígena, o governo elaborou um Plano de
Metas em l995 que estabeleceu as seguintes diretrizes:
2
 É importante destacar, entretanto, que algumas iniciativas adotadas no decorrer da gestão Carlos
Bezerra, governador do estado do Mato Grosso (l985), vieram a contribuir para a criação da Coordenadoria de Assuntos Indígenas – CAIEMT –, instância indigenista governamental, cuja finalidade
era articular as ações políticas do governo com os índios.
3
 A Lei Complementar n 7.040/LOPEB, entre outras medidas, estabeleceu a eleição direta dos
diretores escolares e a gestão direta dos recursos destinados para as suas escolas (Mato Grosso,
1998a).Protagonismo indígena no processo de inclusão das escolas no sistema ofi cial de ensino de Mato Grosso 49
1. Apoiar o governo federal na demarcação e proteção das terras
indígenas;4
2. Implementar um projeto escolar para o indigenismo;
3. Executar os projetos de saneamento básico e de saúde;
4. Viabilizar apoio técnico aos projetos de economia indígena;
5. Fortalecer o órgão que trata de questões indígenas do estado por
meio de um núcleo mínimo central e de extensões de apoio nas
organizações de saúde, educação, agricultura e meio ambiente.
No que diz respeito à educação escolar indígena, enfatizaram-se a democratização do acesso à escola e a implantação de estratégias de gestão
diferenciada para as escolas das aldeias. O estado também promoveu o
reconhecimento da diversidade étnica, tendo como aporte os seguintes
documentos legais: o Decreto n. 265/95, que criou o Conselho de Educa-
ção Escolar Indígena – CEEI; a Lei complementar 49/98, que contém três
artigos referentes à educação indígena: o Artigo 35, que prevê a presença
de um representante da educação escolar indígena no Conselho de Educação do Estado – CEE/ Câmara de Educação Básica, o Artigo l06, que
assegura aos índios a reafirmação de suas identidades, e o 107, que prevê
a oferta de educação básica aos indígenas; a Constituição Estadual, cujo
Artigo 243 afirma que o poder público reconhece as unidades escolares das
comunidades indígenas; e, finalmente, o documento Política da educação
escolar indígena para o estado: uma construção coletiva, composto por três
programas divididos em dez projetos (Mato Grosso, 2000d).
As comunidades e seus representantes, por sua vez, participaram de
diferentes reuniões e eventos promovidos pelo governo do estado, ocasião
em que foram aprovados vários documentos destinados a subsidiar a polí-
tica educacional de Mato Grosso para os povos indígenas. As instituições
indigenistas relataram diferentes experiências relacionadas à sua atuação
no contexto da educação escolar indígena e promoveram discussões
a respeito da escola indígena diferenciada. Nesse período, também se
iniciaram cursos de capacitação sobre práticas pedagógicas e políticas
4
 A luta pela demarcação das terras indígenas nas décadas de 1970 e 1980 foi intensa tanto no
Mato Grosso como em todo o restante do território brasileiro. Ocorreram diversas denúncias das
comunidades e das agências indigenistas e educacionais, dada a situação precária em que viviam as
populações indígenas.50 Estudos indígenas
para os professores indígenas. Duas instituições não-governamentais se
destacaram nesse processo: a Operação Amazônia Nativa – OPAN – e o
Centro Indigenista Missionário – CIMI.
A proposta de uma escola indígena com uma pedagogia específica, cujo
currículo inclua a língua indígena, também foi discutida em eventos realizados nos municípios e nas escolas das aldeias. Os encontros, simpósios,
reuniões e assembléias promovidos por organizações e instituições governamentais ou não-governamentais que atuam na implementação da política
indigenista contribuíram para aflorar uma nova abordagem de educação
escolar concebida pelas comunidades. Segundo Secchi (2002, p. 117),
“esses eventos contaram com um seleto quadro de assessores externos,
dentre os mais ‘requisitados’ os professores João Pacheco de Oliveira,
Lúcia Helena Rangel, Ruth Montserrat e Antonio Brand”.
Procedeu-se também à reorganização da Equipe de Educação Escolar
Indígena da Secretaria de Estado de Educação e, em seguida, à institui-
ção de programas de formação de professores indígenas. As escolas, por
sua vez, foram regularizadas e fortalecidas, o que atendeu em parte as
reivindicações e as demandas dos povos indígenas do estado. Merece
destaque, ainda, por ter se tratado de um fato histórico na política
educacional do estado, a oferta de formação e de habilitação específica
para os professores indígenas.
No período compreendido entre l995 a 2002, destacamos os seguintes acontecimentos relacionados à educação escolar indígena no estado
de Mato Grosso:
• Criação de um Conselho de Educação Escolar Indígena, com
participação paritária de índios, instituições indigenistas e de instituições governamentais (a criação do Conselho atendeu uma das
reivindicações do movimento indígena, formulada no I Congresso
de Professores Indígenas de Mato Grosso);
• Presença de representante da educação escolar indígena no Conselho Estadual de Educação;
• Representação indígena no Conselho Nacional de Educação;
• Realização e conclusão do Projeto Tucum, com a habilitação de
176 professores indígenas; Protagonismo indígena no processo de inclusão das escolas no sistema ofi cial de ensino de Mato Grosso 51
• Aprovação, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educa-
ção – FNDE –, de um mecanismo diferenciado para a merenda
nas escolas do Xingu;
• Produção de material didático específico para diversos povos;
• Elaboração da Política de Educação Escolar Indígena;
• Criação da Comissão Interinstitucional e Paritária para elaboração
de cursos de licenciatura específicos.
O Projeto Tucum, voltado para a formação de professores indígenas
no estado do Mato Grosso, foi uma das reivindicações do movimento indígena, especialmente dos professores indígenas que militavam
ativamente no âmbito desse movimento, em conjunto com os aliados
indigenistas. Teve como princípio norteador os temas relacionados à
terra, cultura e língua indígenas, o que possibilitou a especificidade
da formação, embasada em uma metodologia didática que contemplava os diferentes contextos escolares. É interessante ressaltar que o
caráter inovador da formação oferecida pelo projeto encontra-se em
conformidade com as políticas educacionais e a legislação nacional
(Mendonça, Vanucci, l997, p. 88).
Portanto, pode-se afirmar que as políticas educacionais no estado de
Mato Grosso foram implementadas a partir de ações priorizadas num
contexto de reorganização do estado, que permitiram compatibilizar as
reivindicações indígenas com as políticas propostas no plano de metas do
governo. De fato, há muitos progressos, mas também há ainda muitas
questões pendentes.
O SISTEMA DE ENSINO: PROGRESSOS E PROBLEMAS
O Censo Escolar de 2004 indica que existiam em Mato Grosso 170
escolas indígenas, atendidas por 480 professores indígenas, o que representa 95% do total de docentes que lecionam nessas escolas. Desses,
30% têm o curso fundamental completo; 40% o curso fundamental
incompleto; 9% o curso médio completo; 20% o curso médio com magistério completo e apenas 1,0% cursou o ensino superior. 52 Estudos indígenas
Nível de formação dos professores/as indígenas – 2004
Curso Fundamental Incompleto
Curso Fundamental Completo
Curso Médio com Magistério Completo
Curso Médio Completo
Curso Superior
Fonte: Mato Grosso, SEDUC / 2002-2004.
Ainda de acordo com essa fonte, havia 9.800 estudantes indígenas no
estado, assim distribuídos: 86% no ensino fundamental; 5%, na educação
infantil; 8% em classes de educação de jovens e adultos; e 1% no ensino
médio. A totalidade dos alunos do ensino fundamental cursava da 1ª. à
4ª. série, sendo que, destes, 50% estavam na 1ª. série.
Estudantes indígenas segundo o nível de ensino – 2004
Ensino Fundamental
Educaçao de Jovens e Adultos
Educação Infantil
Ensino Médio
Fonte: Mato Grosso/SEDUC/2002-2004. Protagonismo indígena no processo de inclusão das escolas no sistema ofi cial de ensino de Mato Grosso 53
Os dados dos Censos Escolares de 2002 e de 2006 mostram que a
oferta de educação escolar indígena cresceu 47% na Federação, sendo
que em 2007 o número de estudantes indígenas chega a l72.256, em
cursos que vão da educação infantil ao ensino médio. Nenhum outro
segmento da população escolar no Brasil apresenta crescimento tão
expressivo no período (Brasil/INEP, 2007).
Em Mato Grosso, no mesmo período houve um aumento significativo
tanto das escolas indígenas (20,5%) como da população estudantil indí-
gena, 31,9%. O número de professores também cresceu, o que indica
um maior investimento do governo na sua formação.
Escolas indígenas no estado de Mato Grosso – 2002 e 2006.
Esfera administrativa Escolas Percentual de crescimento
2002 2006 %
Municipais 141 148 5,0 %
Estaduais 10 34 240,0 %
Total 151 182 20,5 %
Fonte: Censo Escolar (Brasil/INEP/MEC, 2003; Brasil/INEP/MEC, 2006).
Estudantes indígenas no estado de Mato Grosso – 2002 e 2006.
Modalidades/Níveis de ensino Estudantes 2002 Estudantes 2006 Percentual de crescimento
Educação Infantil 504 516 2,4 %
Ensino Fundamental séries iniciais 6.503 8.416 29,4 %
Ensino Fundamental séries fi nais 1.626 2.264 39,2 %
Ensino Médio 261 484 85,4 %
Educação de Jovens e Adultos 39 103 164,0 %
Total 8.933 11.783 31,9 %
Fonte: Censo Escolar (Brasil/INEP/MEC, 2003; Brasil/INEP/MEC, 2006).
Nas escolas indígenas, entretanto, o atendimento é compartilhado
com os municípios e com o estado, por meio de parcerias.Estes, porém,
raramente mantêm uma relação de parceria institucional, tampouco
adotam a gestão democrática, ou seja, uma gestão que contemple a
participação indígena na discussão e na formulação das políticas e de
projetos voltados para as comunidades indígenas. Portanto, embora a 54 Estudos indígenas
legislação estabeleça diretrizes e metas específicas para as escolas indí-
genas, diversos municípios tratam indistintamente as escolas regulares
e as indígenas.
De acordo com o que preceitua a legislação direcionada para a educa-
ção indígena que instituiu a educação bilíngüe, específica e diferenciada
para os povos indígenas, a escola que atende a essa parcela da população
deveria se organizar segundo a lógica sociocultural e lingüística de cada
povo, bem como direcionar a sua função social para oatendimento de seus
projetos específicos. Na prática, porém, o sistema educativo tradicio nal
indígena é desconsiderado pelo sistema oficial de ensino, e vem sendo
absorvido pelos seus mecanismos de controle, que enquadram a escola
e seus professores indígenas num mesmo regime normativo da escola
pública, desconsiderando os contextos socioculturais.
No imaginário indígena, entretanto, o sistema de ensino deveria atuar
em parceria com outras instituições governamentais, mas com vistas a
atender os projetos societários de cada comunidade, bem como servir de
instrumento para sua autodeterminação e dar continuidade ao seu modo
de viver na natureza.5
 Não podem ser, portanto, programas impostos
ou descontextualizados. Este pensar dos povos indígenas tem gerado
grandes descontentamentos com relação aos gestores públicos, assim
como impasses na execução de políticas diferenciadas.
Grupioni ressalta que,
Hoje, os próprios povos estão reclamando esse direito, a partir de
relações mais equilibradas com o mundo fora da aldeia, assentadas no
respeito às suas concepções nativas. Edificar escolas indígenas que possam contribuir para esse processo de autonomia faz parte dos diferentes
projetos de futuro dos povos indígenas no Brasil. (2004, p.55)
5
 No nosso contato com professores indígenas de algumas regiões do país, pudemos perceber a sua
descrença no poder público em atender a escola indígena específica e diferenciada. Por outro lado,
o modo como os professores indígenas compreendem a constituição dos sistemas de ensino nas
aldeias por parte do Estado tem raízes profundas no passado e na maneira como este impôs a escolarização por meio de políticas que quase dizimaram os diferentes povos indígenas, tendo como
instrumento inclusive a própria escola. São vários os ingredientes que compõem essa arquitetura,
e que vão desde a ocupação dos territórios, passando pelos métodos de ensino-aprendizagem e
incluindo até as relações hierárquicas que vigoravam nas escolas das aldeias.Protagonismo indígena no processo de inclusão das escolas no sistema ofi cial de ensino de Mato Grosso 55
DESAFIOS A SEREM ENFRENTADOS PELOS INDÍGENAS NA
FORMULAÇÃO/IMPLANTAÇÃO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS
Na esfera federal, nos últimos anos, a participação dos indígenas na
elaboração de políticas públicas tem sido a bandeira de vários movimentos de professores indígenas no país. Uma vitória importante foi a
incorporação pelo Estado brasileiro da Declaração de Princípios firmada
por professores indígenas no IV Encontro de Manaus, em 1991, que
deve servir de referência para a política nacional de educação escolar
indígena, fato que originou diversos documentos oficiais que enfatizaram
o protagonismo indígena na definição dessas políticas.
Na década de 1990, o MEC, por meio do Comitê de Educação Indí-
gena – CEI –, passou a reconhecer e a legitimar a participação indígena
e a levar em consideração os documentos firmados nas assembléias dos
movimentos indígenas ao estabelecer as diretrizes educacionais oficiais.
Destaca-se também a implementação de mecanismos de participação
de representantes indígenas, nas diferentes instâncias de governo, que
possibilitaram avançar no sentido da consolidação de uma nova relação
entre os povos indígenas e o Estado brasileiro. Realizaram-se também
seminários regionais bem como a formação continuada para técnicos
das secretarias estaduais sobre temas relevantes da educação escolar
indígena, tendo como base os Parâmetros em Ação Indígena (programa
de capacitação do MEC para a educação escolar indígena).
Em Mato Grosso, a criação do Conselho de Educação Escolar Indígena, já mencionado anteriormente, e de uma equipe de educação
escolar indígena contribuíram para firmar políticas para a educação
escolar no estado. O CEEI atuou na elaboração de políticas, em ações
de planejamento e de articulação e na intermediação entre os interesses
da escola indígena e o sistema de ensino, instituindo-se como um espaço
de participação qualificada dos povos indígenas na definição de políticas
e ações para a educação escolar indígena.
Enfim, a atuação do CEEI foi consolidada a partir do seu protagonismo em ações importantes, que mostram o pioneirismo da preocupação com a educação escolar indígena em Mato Grosso. Entre elas
destacamos:
• A realização da Conferência Ameríndia ou Congresso de Professores Indígenas em l997; 56 Estudos indígenas
• A elaboração e apresentação do Projeto de Formação de Professores
Indígena no Ensino Superior – projeto do 3º. Grau Indígena;
• A coordenação e elaboração da Política de Educação Escolar
Indígena;
• O Plano Estadual de Educação (2003), que estabelece políticas
educacionais para os dez anos de governo;
• A proposição e o acompanhamento do Projeto Tucum (Magistério
em nível de Ensino Médio), projeto de formação de professores
indígenas;
• Projeto Xamã – Programa de formação dos AIS – Agentes Indí-
genas de Saúde, destinado à sua escolarização em nível do ensino
fundamental;
• A organização de livros para a educação escolar indígena, como
Urucum, jenipapo e giz: educação escolar indígena em debate, de
1997 (Mendonça, Vanucci, 1997); Ameríndia: tecendo os caminhos
da educação escolar, de 1988. O CEEI, é importante destacar,
é composto por indígenas e não indígenas, sendo um colegiado
paritário e de caráter consultivo, deliberativo e de assessoramento
à Secretaria de Estado de Educação e ao Conselho Estadual de
Educação. Entretanto, desde a sua criação em 1995, até os dias
atuais, percebe-se que, apesar do acúmulo de experiência, ainda é
visto pelos gestores educacionais como um alienígena no sistema,
sendo que ainda há muita resistência às suas decisões. Por esse
motivo, os professores indígenas reivindicam das secretarias municipais e estaduais a sua participação nos processos relacionados à
educação escolar das diferentes realidades indígenas, para que haja
maior compreensão dessa diversidade e, assim, seja minimizado
o embate entre índios e gestores públicos.
Portanto, a despeito dos avanços, os indígenas têm enfrentado grandes
desafios, uma vez que o Estado não só resiste em realizar reformas efetivas
destinadas a atender às legislações pertinentes, como também se distancia
cada vez mais da realidade que o compõe. Além disso, continua adotando
políticas paternalistas, de cunho político, clientelista e burocrático, que
menosprezam a capacidade de seus beneficiários. Mesmo assim, os povos
indígenas vêm resistindo, contando para isso com a consolidação de novas
alianças com o Ministério Público Federal e o Sindicato dos Profissionais Protagonismo indígena no processo de inclusão das escolas no sistema ofi cial de ensino de Mato Grosso 57
da Educação de Mato Grosso. Nesse contexto, a força política indígena
tem tido um novo incentivo para a sua luta.
CONCLUSÕES
Como vimos, a inclusão das escolas indígenas no sistema de ensino
vem sendo debatida constantemente no âmbito dos movimentos indí-
genas e nas instâncias dos sistemas educacionais. Neste estudo, procurei
apresentar alguns pontos conflitantes, impasses e contradições desse
processo, assim como a luta do movimento indígena para consolidar os
seus direitos e para romper a ordem estrutural que mantém a educação
pública refém de interesses alheios à democratização do ensino.
Na discussão do processo de inclusão das escolas indígenas no sistema
oficial de ensino de Mato Grosso, expus a realidade vivenciada por essas
escolas, mostrando a necessidade de serem reconhecidas como escolas
públicas sem, contudo, perderem a sua identidade. Enfatizei também a
necessidade de essas escolas atenderem aos interesses coletivos, propiciarem novos conhecimentos às sociedades indígenas, democratizarem
a sua gestão, mas também valorizarem os processos educativos tradicionais. Assim, terão condições de romper com o autoritarismo e com
o clientelismo que ainda permeiam o sistema de ensino, tornando-se
instituições construtoras da autonomia e do desenvolvimento das sociedades indígenas.
Francisca Navantino Pinto de Ângelo
Pareci, natural de Cuiabá – MT. Graduada em História pela Universidade Federal
de Mato Grosso – UFMT. Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. A sua dissertação O processo de
inclusão das escolas indígenas no sistema oficial de ensino de Mato Grosso: protagonismo
indígena foi orientada pelo professor Darci Secchi, doutor em Ciências Sociais, professor adjunto do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação do Instituto de
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. No momento atua como 58 Estudos indígenas
docente dos cursos de formação de professores indígenas no magistério – Projeto Haiyô
(Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso) e na Licenciatura Intercultural da
Universidade Estadual de Mato Grosso – UNEMAT na Área de Ciências Sociais. É
também coordenadora de formação e desenvolvimento do Instituto Indígena MAIWU
de Estudos e Pesquisas de Mato Grosso. Preside a Organização de Professores Indígenas de Mato Grosso – OPRIMT e é vice-presidente do Conselho de Educação Escolar
Indígena de Mato Grosso. Ex-bolsista IFP, turma 2003. E-mail: nezokemaero@yahoo.
com.br; francisca.angelo@seduc.mt.gov.br
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Akwen e os conquistadores luso-brasileiros
em Goiás (1749-1811)
Cleube Alves da Silva
RESUMO
Este trabalho analisa as relações entre os conquistadores luso-brasileiros e os grupos indígenas Akwen no contexto dos contatos coloniais
no norte da Capitania de Goiás entre 1749 e 1811. No estudo foram
utilizados os passos teórico-metodológicos da etnoistória, como um
método interdisciplinar que se baseia na antropologia cultural, com
grande influência da história, e constrói interfaces com a arqueologia,
etnografia e a lingüística, entre outras áreas ou subáreas do conhecimento. O estudo recupera informações sobre um jogo de forças entre
indígenas e conquistadores no qual guerras, acordos de paz, alianças e
fugas deram forma aos contatos interétnicos e mostra também como,
em meio a catástrofes, perdas e derrotas, aqueles grupos indígenas
cria ram elementos e novas conexões para reconstruir a sua existência,
mantendo cultura e modo de ser indígenas.
PALAVRAS-CHAVE
ÍNDIOS – AKWEN – HISTÓRIA – ETNOGRAFIA62 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho foi o de conhecer como os grupos indígenas
Akwen (Xerente, Xavante, Xakriabá e Akroá) criaram elementos e novas
conexões étnicas e culturais diante da situação criada pelos contatos com
os conquistadores luso-brasileiros na Capitania de Goiás, no período de
1749 a 1811. Cada um desses grupos construiu interpretações próprias
para o contexto e o processo vivenciado. A questão é: como grupos culturalmente semelhantes tomaram caminhos diferentes diante do contato
com os não-indígenas? Os Akwen são grupos indígenas que foram descritos
por cronistas e historiadores como povos irmãos (Alencastre, 1864; Souza,
1967) e com ligações lingüísticas e culturais entre si (Pedroso, 1994; Giraldin, 2002). Todavia, Nimuendaju (1942, p. 1-2) considerou os Akroá
um braço lingüístico diverso que apresenta variações em relação aos demais
grupos, e Juciene Apolinário (2006, p. 48) definiu-os como integrantes
da família jê e falantes da língua timbira. Portanto a filiação dos Akroá é
tema de discussão, e neste trabalho optou-se por associá-los aos Akwen,
seguindo uma bibliografia há muito estabelecida.
Por ocasião da chegada dos luso-brasileiros, os Akwen habitavam uma
extensa área, que, apesar de não poder ser definida pelas fontes textuais,
por essas serem incompletas e viciadas por interesses e preconceitos daqueles que as elaboraram, pode-se dizer, cobria grande parte do território
delimitado como a Capitania de Goiás em 1749. Os Xakriabá, Xavante
e Xerente, depois de mais de 250 anos de contato, permanecem como
grupos étnicos em convivência com a sociedade nacional, nos estados
de Minas Gerais, Mato Grosso e Tocantins, respectivamente. Os Akroá,
por sua vez, são historicamente dados como extintos (Giraldin, 2002, p.
115; Pedroso, 1994, p. 22; Chaim, 1983, p. 50), uma posição perigosa,
que deve ser relativizada diante do fenômeno da emergência de grupos
indígenas considerados mortos e “que vem colocando, há alguns anos,
a exigência de reconsiderar a maneira de pensar (e fazer) a história do
contato” (Pompa, 2003, p. 22).
Entende-se como conquistadores aqueles que efetivaram o domínio
sobre um território pertencente a outros grupos humanos, conforme a
definição de Antônio Carlos de Souza Lima, para quem a conquista é
[...] uma modalidade de guerra, em que o domínio sobre populações
reduzidas pela força militar, suas terras, seus recursos naturais são Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 63
apropriados num processo no qual a aliança com parte das populações
habitantes dos espaços a serem incorporados, e todo um aparato que
hoje chamaríamos de meios de comunicação, têm tanta ou mais importância que a violência física; [...] conquista não é somente guerra e
destruição (violência aberta, portanto); mas implica em produção de
novas relações/identidades sociais, isto é, também se apresenta como
violência simbólica. (Lima, 2000, p. 409)
Assim, esse trabalho resgata informações sobre as tensões entre indígenas e conquistadores, nas quais diversificadas formas de luta e de
negociação permearam os contatos.
A Capitania de Goiás foi constituída território político-administrativo em
29 de janeiro 1748, desmembrada da Capitania de São Paulo e instalada em
8 de novembro de 1749, data em que tomou posse seu primeiro governador,
Marcos de Noronha (Alencastre, 1864, p. 93-94). Seu território correspondia aos atuais estados de Goiás e Tocantins, além de áreas atualmente
pertencentes a Minas Gerais (Triângulo Mineiro), Mato Grosso (território
entre o Rio das Mortes e o Araguaia) e Mato Grosso do Sul (a região de
Camapuã, entre os rios Aporé e Pardo). Esse território vivenciou, no século
XVIII, o ciclo da mineração e, no XIX, as tentativas (não muito exitosas)
de expansão da agricultura e da criação de gado, além da perspecti va do
comércio com o Pará e Maranhão por meio da navegação dos rios Tocantins
e Araguaia (Souza, 1967, p. 5-6; Alencastre, 1864, p. 121-127).
O recorte cronológico deste estudo inicia-se na data de instalação
da Capitania de Goiás e da montagem da máquina administrativa com
seu aparato militar e burocrático em ações que criaram novas linhas de
contato entre os luso-brasileiros e os indígenas, em 1749, e termina
com a publicação da Carta Régia de 5 de setembro de 1811. A idéia
central dessa carta régia era dar novo impulso à produção agropecuária
e ao comércio com o Pará, com a utilização do rio Tocantins como via de
transporte, e, para isso, concedia alguns privilégios àqueles que viessem
se estabelecer às suas margens, entre esses:
1 – Permitiam-se a guerra ofensiva contra os índios e a possibilidade
de escravizar aqueles que fossem aprisionados por um período
de dez anos, ou durante o tempo que durasse a sua “ferocidade”;
2 – Isentava-se, por dez anos, o pagamento de dízimos para aqueles
que fossem ocupar as terras dos índios (Carta Régia do Príncipe
Regente D. João..., apud Silva, Giraldin, 2002, p. 46).64 Estudos indígenas
Essa carta régia marca o início de uma nova política indigenista,
inaugura um novo aspecto nas relações de contato entre os Akwen e
os conquistadores e uma nova territorialização indígena, discussão que
está além do objeto deste trabalho.
FONTES E QUESTÕES TEÓRICAS
Este estudo se valeu de uma quantidade significativa de documentos
avulsos da Capitania de Goiás, microfilmados no âmbito do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco. Um conjunto de
documentos, que cobre o período de 1731 a 1822, está disponibilizado
em CD-ROMs; os originais estão sob a guarda do Arquivo Histórico
Ultramarino em Lisboa. Os trabalhos de organização e indexação deste
material foram feitos pelos professores José Mendonça Teles, Antonio
César Caldas Pinheiro e Juciene Ricarte Apolinário (2001), que consultaram ofícios, certidões, cartas, procurações, requerimentos diversos,
pareceres do Conselho Ultramarino e provisões reais.
A essas fontes foram somados um rol significativo de documentos
publicados pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro –
RIHGB –, em 1918, com o título Subsídios para a História da Capitania
de Goiaz (1756-1806), uma relação de cartas, ofícios e contratos transcritos e compilados por Antonio Brasil (1979), em Documentos históricos
de Goiás, e um conjunto de cartas transcritas por Maria Carmem Lisita
(1982, 1983, 1984), reunidas sob o título de Cartas dos governadores in
registro do caminho novo de Parati. Por fim, a obra Annaes da Província
de Goyaz, de José Martins Pereira de Alencastre, também publicada
pela RIHGB, em 1864. Alencastre, presidente da Província de Goiás
entre 1861 e 1862, escreveu os Annaes a partir de memórias de diversos
autores e documentos sobre a província, o que lhe permitiu traçar um
perfil do caminho percorrido pelos habitantes de Goiás, desde a chegada
da bandeira de Anhangüera até os dias de seu governo. O autor, apesar
de se prender muito aos atos dos governantes, descreve uma série de
acontecimentos e anexa à obra a transcrição de vários documentos que
permitem ter uma visão diferenciada dos eventos históricos.
Para perceber as transformações históricas e culturais advindas
do contato entre povos indígenas e conquistadores luso-brasileiros, Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 65
bem como as ações efetuadas pelas partes envolvidas nos conflitos de
conquista e resistência, foi necessário um olhar diferenciado sobre as
fontes, em especial as oficiais. Um olhar atento para as entrelinhas – o
intrínseco, o oculto na fala do conquistador – revela a personalidade
indígena presente naquele contexto.
Neste caminho foram utilizados os passos teórico-metodológicos da
etnoistória, como um método interdisciplinar ou uma disciplina híbrida,
que surge da antropologia cultural, tem grande influência da história e
constrói interfaces com a arqueologia, a etnografia e a lingüística, entre
outras áreas ou subáreas do conhecimento. Nesse método, as fontes,
produzidas por cronistas, funcionários públicos, missionários, viajantes
e outros observadores dos grupos indígenas, são utilizadas em uma pesquisa etnológica para reconstruir a história dos contatos (Silva, Oliveira,
2004/2005, p. 79).
Esclarecimentos sobre a origem da etnoistória são dados por Ricardo
Delfim Quezada Domínguez:
[…] emergió de la antropología cultural, ya que en su campo etnológico
necesitaba salir del freno impuesto por los estudios y análisis desde la
perspectiva sincrónica, por lo fue precisando la dimensión temporal
para entender los procesos de cambio operados en las sociedades. […]
Las dimensiones históricas de la etnohistoria pueden ser aplicadas de
dos maneras el estudio de puntos del pasado, de momentos históricos,
o bien, del proceso del desarrollo de una sociedad. Entonces, aparición
de la etnohistoria no fue la simple mezcla y unión de la antropología con
la historia, sino que se debió al manejo de una parte de la antropología
utilizando fuentes y los datos del pasado. (2004, p. 2)
Surgiu da antropologia cultural, pois em seu campo etnológico era
preciso romper com o limite imposto pelos estudos e análises da
perspectiva sincrônica, pela necessidade da utilização da dimensão
temporal para entender os processos de mudança operados nas
sociedades. [...] As dimensões históricas da etnoistória podem ser
aplicadas de duas maneiras ao estudo de fatos do passado, de momentos históricos, ou melhor, ao processo de desenvolvimento de
uma sociedade. Assim, a aparição da etnoistória não foi a simples
mistura e junção da antropologia com a história, mas se caracterizou
pelo manejo de uma parte da antropologia utilizando fontes e dados
do passado. (2004, p. 2)66 Estudos indígenas
Por sua vez David Eduardo Tavárez e Kimbra Smith esclarecem que:
No es posibile presentar la etnohistoria como una disciplina que surge
en un estado de completa madurez, […] en plena mitad del siglo XX.
Resulta mucho más sensato argüir que la etnohistoria surge de una
temática y una metodología preexistentes en la historiografía de las
Américas. Desde este punto de vista, la etnohistoria heredaría, de manera consciente, crítica y sistemática, una serie de preguntas, temas y
modos de operación que existían avant la lettre en el quehacer histórico
americano del periodo colonial y durante la emergencia de las naciones-
estado americanas en el siglo XIX.
Não é possível apresentar a etnoistória como uma disciplina que surge
em um estado de completa maturidade, [...] em meados do século XX.
É muito mais sensato argumentar que a etnoistória surge de temática
e metodologia preexistentes na historiografia das Américas. Desse
ponto de vista, a etnoistória herdaria, de maneira consciente, crítica e
sistemática, uma série de perguntas, temas e procedimentos que existiam avant la lettre no afazer histórico americano do período colonial
e durante o surgimento das nações-estados americanas no século XIX.
(2001, p. 20; tradução nossa)
A etnoistória é especialmente útil para o estudo de grupos indígenas
em processo de contato, dado que esse método interdisciplinar atribui
aos “indígenas um status de agentes históricos, ampliando a noção de
fonte e do campo de estudo sobre a história de diferentes etnicidades
ameríndias” (Silva, Oliveira, 2004/2005, p. 81). Seguindo esse caminho, este trabalho analisou os agentes sociais como atores do processo
histórico, conseqüentemente buscou ver o indígena na qualidade de
sujeito participativo do contexto socioistórico no qual estava inserido.
Pretendeu-se construir uma interpretação semelhante à de Maria Regina
C. de Almeida, que, por sua vez, mostra que os índios não se submeteram passivamente aos colonizadores.
Sem desconsiderar a violência e a opressão da conquista, é possível
perceber que as atitudes dos índios em relação aos colonizadores não se
reduziram, absolutamente, à resistência armada e à submissão passiva.
Houve diversas formas do que se pode chamar de resistência adaptativa,
por meio das quais os índios encontravam formas de sobreviver e garantir
melhores condições de vida na nova situação em que se encontravam.
(2003, p. 33)Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 67
O exercício de repensar a história dos indígenas impõe vários desafios,
entre eles o de estabelecer uma articulação contínua entre processos
históricos e organização cultural dos povos, valorizando as evidências
empíricas que, se interpretadas do ponto de vista interdisciplinar, criam
novas possibilidades de análise para as relações de contato e as transformações dos grupos étnicos na situação colonial.
Essa interpretação pode ser observada em alguns trabalhos mais recentes que rompem com a visão tradicional de índio como vítima passiva
e impotente diante da conquista do mais forte. Nessa linha, trabalhos
de Monteiro (1994), Pedroso (1994), Giraldin (1997), Oliveira Filho
(1999), Franchetto e Heckenberger (2001), Puntoni (2002), Almeida
(2003) e Pompa (2003), entre outros, efetuam uma análise diferente
das fontes e revelam que os índios souberam transformar e reelaborar
valores, culturas, interesses, objetivos e até identidades em um processo de convivência no qual as possibilidades de sobrevivência foram
interpretadas de diferentes formas, seguindo as orientações culturais
e o contexto de luta.
CONTATOS ENTRE INDÍGENAS E CONQUISTADORES
LUSO-BRASILEIROS
Na apresentação de O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, de Fredrik Barth (2000), Tomke Lask escreveu que o
pensamento do autor pode ser caracterizado, entre outras coisas, pela
visão de que “um determinado evento pode ser vivido e interpretado
a partir de diferentes modelos de acordo com o contexto cultural do
participante” (p. 13). Com base na visão de Barth, pode-se dizer que
os eventos ocorridos durante os contatos coloniais entre os Akwen e
os luso-brasileiros tiveram interpretações específicas de cada um dos
lados envolvidos. As formas de ver e de lidar com o oponente foram
direcionadas por concepções particulares informadas pela cultura de
indígenas e não indígenas. Assim, os agentes envolvidos nesse processo
de conquista colonial desenvolveram práticas político-estratégicas que
os levaram ora a caminhar juntos na construção de acertos de paz e
alianças, ora a seguir caminhos diversos com embates e escaramuças.
Muitos trabalhos já debateram os contatos entre os Akwen e os luso-
brasileiros sob a perspectiva da resistência, uma abordagem insuficiente 68 Estudos indígenas
para dar conta da complexidade que envolvia os embates e, sobretudo,
inadequada para captar a criatividade dos povos indígenas no diálogo
com os conquistadores. Exceções existem, como o trabalho de Odair
Giraldin (2001), no qual se destaca a perspectiva de “encontro cultural”,
concebendo que a presença do outro, seja ele Akwen ou não indígena
europeizado, “era interpretada, reciprocamente, a partir dos modelos
fornecidos por suas respectivas culturas”. Uma visão muito próxima
da concepção de Barth (2000) foi seguida neste trabalho, que buscou
salientar as diferentes formas de construções político-estratégicas utilizadas pelos diferentes grupos no decorrer do contato, ressaltando as
suas respectivas lógicas culturais.
Ao identificar as práticas político-estratégicas que se destacaram na
relação entre os Akwen e os luso-brasileiros, três se sobressaem. A primeira era direcionada pela administração portuguesa, que via o indígena
como um ser passível de conversão à religião católica e à vassalagem ao
Reino português (Ofício do Secretário de Estado da Marinha e Ultramar…, 1758). Os defensores dessa prática procuravam transformar o
índio em cristão fiel, produtor e contribuinte da Fazenda Real, além de
aliado contra os indígenas ainda não conquistados. Buscavam estabelecer
a população autóctone em um povoamento nos moldes europeus, no
intento de que os indígenas gradualmente assimilassem os hábitos da
população européia (Ofício do Contador Geral..., s/d.).
Compostos quase exclusivamente por administradores metropolitanos,
os defensores da civilização do indígena acreditavam também ser possível
sempre, ou quase sempre, o contato com a redução ou conversão de forma
efetiva e pacífica dos indígenas mediante a doação de prêmios e a oferta de
possíveis vantagens (Carta Régia do Rei..., 1761), levando-os a optar por
uma vida nos aldeamentos. Esses aldeamentos constituíam-se em espaços
delimitados, regidos por normas de convívio européias que buscavam a
inserção do índio no modelo de produção mercantilista.
A segunda prática estava orientada pelos interesses e demandas dos
luso-brasileiros que viviam no contexto da conquista – mineradores,
pecuaristas, agricultores, comerciantes – e que viam o indígena como
um empecilho aos seus propósitos. Inicialmente, durante o período da
mineração defendiam a expulsão do indígena para longe e depois, com a
agropecuária, objetivavam a retirada definitiva dos índios de suas terras.
Argumentavam ainda que o desenvolvimento do povoamento de Goiás Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 69
só dar-se-ia de forma eficiente com o aldeamento dos índios mansos e o
combate bélico aos bravios. Afirmavam que, quando ocorresse a redução
dos indígenas, estes deveriam ser mantidos longe dos seus parentes,
de seus antigos hábitos e sob constante vigilância, porque só assim se
poderia vencer a sua barbárie.
Os defensores da segunda corrente eram pessoas que procuravam pelo
ouro, trabalhavam no transporte de víveres, ocupavam-se do plantio,
para alimentos, ou se dedicavam à criação de gado. Mantinham contatos constantes com os grupos indígenas. Esses contatos ocorriam pelo
fato de as áreas de ocupação tradicional indígena constituírem objeto
de cobiça dos não-índios, devido a sua potencialidade mineral ou a
sua viabilidade agropecuária. Esses interesses levavam os goianos1
 a se
posicionarem de maneira diferente à dos administradores portugueses
na relação com os indígenas.
Todavia, imaginar goianos e administradores metropolitanos como
opositores ferrenhos é um erro tão grave quanto considerá-los iguais.
Exemplificando, uma das formas mais utilizadas pelos goianos foi o
combate bélico, por meio de efetivos armados, com vistas a forçar a
retirada do indígena de uma forma ou de outra, liberando novos espaços
territoriais. As expedições com essa finalidade eram organizadas por
autoridades administrativas da capitania ou dos arraiais, e também por
particulares, financiadas ora pela Fazenda Real, ora pelos moradores.
Para esses acontecimentos, contribuíam a legislação do reino português,
dúbia no que diz respeito ao trato com os indígenas, e o desejo dos luso-
brasileiros de ocupar as terras indígenas para diferentes fins.
A última prática era a assumida pelos indígenas, uma prática metamorfoseada que, em suas características político-guerreiras, foi construída conforme as circunstâncias vivenciadas. Diante da invasão de
território, desalojamento de casas, privação de liberdades e a perda de
um modo de vida, os Akwen criaram novos elementos para combater
um adversário estranho e que usava estratégias desconhecidas. Nesse
processo, desenvolveram ações diferenciadas por grupo e região e,
também, por situação e período vivenciado no contato. Fizeram guerra
1
 O termo “goiano” é aqui utilizado apenas para criar uma ligação entre o local em que se encontram
os indivíduos e as suas práticas, quase nada tendo a ver com o gentílico “goiano”, hoje utilizado
para caracterizar os nativos do estado de Goiás.70 Estudos indígenas
ou decidiam pela paz nos aldeamentos. Converteram-se, reinventaram
hábitos ou, pelos menos, adicionaram novos elementos materiais a sua
cultura. Mantiveram contatos belicosos e brigaram em uma convivência
forçada pela manutenção de seu espaço e modo de ser. Também fugiram, buscando um novo espaço ainda livre da presença ostensiva dos
luso-brasileiros, onde seguiram com suas tradições a uma distância das
interferências dos não-índios.
A despeito de terem sofrido com a violência e a opressão e terem
passado por inúmeros reveses e perdas materiais, diminuição populacional, redução territorial, confinamento, os indígenas, na sua relação
com o conquistador, não agiram de modo insensato ou se submeteram
passivamente. Houve atitudes que apontaram para uma adaptação à nova
situação, ações que por serem diferenciadas indicam uma interpretação
particular desenvolvida pelos diferentes grupos Akwen.
No estudo desse contato em Goiás, é importante identificar e analisar
alguns dos elementos que nortearam a relação entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros. Uma vez identificados esses elementos, nos
valemos de quatro deles para a melhor compreensão das ações indígenas:
aldeamento, guerra, incursões e campanhas, fugas e retiradas.
O aldeamento foi uma prática político-administrativa portuguesa
bastante utilizada nos contatos entre os conquistadores luso-brasileiros
e os indígenas em Goiás, com intento de evangelização do índio,
progresso do reino e inclusão do indígena no modelo de civilização
européia. Os aldeamentos também procuraram viabilizar uma força
de trabalho indígena. O intento teve algum êxito, uma vez que a
mão-de-obra indígena foi utilizada em diversas épocas de acordo com
as atividades do contexto. O indígena serviu como reserva de apoio
estratégico para defesa contra investidas de outros grupos não assimilados e na formação de um suporte para as caravanas de transporte
de ouro. Formaram a tripulação de barcos na navegação dos rios Araguaia e Tocantins e constituíram uma força de produção de gêneros
alimentícios para o comércio.
Os aldeamentos, segundo uma divisão clássica, aconteciam de duas
maneiras distintas: na primeira, os indígenas eram forçados, e na segunda
esses nativos optavam pela nova vida. As duas interpretações, simples e
lineares, não esclarecem por inteiro os acontecimentos. Nem a primeira
ou a segunda situação ocorria de fato. Isso porque quando os indígenas Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 71
desistiam de uma guerra e assinavam um termo de paz havia questões
intrínsecas nesse comportamento que podiam trazer vantagens para
o grupo, dentro do contexto por eles vivido naquele momento. Um
exemplo, os índios poderiam estar interessados em instrumentos de
ferro ou em ter um período de sossego para recompor as forças internas.
Questões como essas ainda foram pouco exploradas em estudos sobre
história indígena em Goiás.
Veja-se o termo de paz assinado pelos Akroá no sertão do Gilbués,
na Capitania do Piauí, em 1745, como um exemplo de acerto entre
partes que se viam na mesma posição. Isso provavelmente não fosse
uma situação real, no entanto, o contexto podia muito bem ser assim
entendido naquele momento. O superintendente de guerra, capitão-
mor Antônio Gomes Leite, acerta com o representante dos Akroá a paz
com a promessa de que:
[...] em nome de Sua Majestade que Deus guarde a paz sem mais lhes
fazer guerra e que seriam conservados debaixo da sua proteção e defendidos das nações inimigas, que estariam em sua inteira liberdade como
os que tinham ficado prisioneiros da guerra passada, e que nenhum
branco lhe faria dano ou vexação alguma, e que teriam toda a terra que
lhe fosse necessária para suas roças, sem que pessoa alguma pudesse
perturbar ou inquietar e que com eles estariam nas suas aldeias padres
missionários ensinando-os para serem cristão e filhos de Deus, e tratar
deles com tudo o que lhe fossem necessário. (Termo de ajuste..., apud
Almeida, 2003, p. 99-100; grifos nossos)
Um pacto que assegurava a paz que os Akroá não tinham, pelo menos,
desde 1750, ano em que já estavam guerreando com os conquistadores
em Pernambuco e no Maranhão, período em que morreram muitos dos
seus e outros tantos foram feitos cativos (Noronha, 1985). Um tratado
que garantia liberdade, segurança contra inimigos tradicionais e direito
à terra para o plantio de roças poderia ser uma ótima condição para os
Akroá se refazerem de perdas materiais e um meio de fortalecer o grupo.
Segue a mesma perspectiva, uma proposta de paz enviada pelo governador Marcos de Noronha, em 1750, aos Akroá, agora no Sertão do
Duro. Segundo a promessa de Noronha, quem quisesse a paz iria “ser
tratado com muita civilidade, e que lhe dariam terras, para se situarem,
missionários para os dirigirem e que nem eles, nem seus parentes ficariam sujeitos a nenhuma lei de cativeiro” (Noronha, 1985). 72 Estudos indígenas
A mesma tônica pode ser observada num acerto feito pelo capitão
José Pinto da Fonseca, representando o governador Tristão da Cunha,
quando da chegada dos Xavante ao aldeamento de Pedro III, também
chamado de Carretão, em 13 de janeiro de 1788. Os indígenas, ao
adentrarem o aldeamento, foram recebidos com festas e saudados
por autoridades. Entre as mais citadas está o vigário de Crixás, João
Batista Gervazio Pitaluga, e os sargentos-mores Álvaro José Xavier e
Bento José Marques. Diante dos Xavante liderados por seu maioral2
Arientomô-Iaxé-qui, Fonseca dá posse da terra do aldeamento aos
indígenas, fazendo o seguinte compromisso:
O nosso capitão grande, [...] que compadecido das vossas misérias, nos
enviou a convidar-vos nas vossas próprias terras, a fim de deixardes a
vida errante, em que viveis como indomáveis feras, e virdes entre nós
gozar dos commodos que vos oferrece a sociedade civil, debaixo da [...]
protecção da nossa augusta soberana, a Senhora D. Maria I, [...] me
envia aqui a receber-vos, e comprimentar-vos de sua parte, e segurar-
vos as suas boas intenções, offerecendo-vos estes presentes, signaes de
uma eterna aliança, com deseja firmar a paz, união e perfeita amizade,
com que reciprocamente nos devemos tratar. [...] Ao mesmo tempo,
em nome de nosso capitão grande, vos faço real entrega d’esta aldeã,
que para vosso domicílio tem destinado, a qual pertecendo-vos de hoje
em diante como própria, tambem sereis perpétuos possuidores d’estes
dillatados campos, rios e bosques, até onde vossas vistas possam alcançar.
(Alencastre, 1864, p. 335-336)
A citação demonstra que os indígenas, em uma situação comumente
vista como de sujeição, tinham possibilidades de negociação ou pelo
menos a perspectiva de assegurar determinadas coisas de que necessitavam. A soberana envia presentes que, nas palavras de seu emissário, são
“cousas que tanto facilitam suas comodidades” e proteção (Alencastre,
1864, p. 268). A rainha se apresenta como aliada e seus representantes
são sujeitos que se exprimem como seres desejosos em obter a amizade
dos indígenas. Hoje são conhecidas as intenções por detrás dessas propos-
2
 Maioral é um termo de época utilizado para definir um chefe superior indicado pelos diferentes
chefes indígenas para situações como a negociação com os não-indígenas.Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 73
tas, todavia, em determinadas situações poderia satisfazer seus anseios,
uma vez que, como pessoa do contexto, podia traçar as interpretações
que melhor lhe aprouvesse.
Os compromissos contidos nos acordos acenavam para uma paz duradoura e para a posse definitiva de terras desejadas pelos indígenas
porque as guerras constantes interferiam na vida cultural e ritual dos
grupos. Torna-se inviável a realização de cerimônias e festas quando
não se tem tempo para plantar e colher, quando não se pode pescar
ou caçar ritualmente. Com a posse da terra assegurada, tinha-se a
possibilidade de essas atividades serem realizadas. No acerto entre os
Xavante e os luso-brasileiros, as terras seriam tão “dilatadas” quanto as
vistas alcançassem, o que ia ao encontro da organização social xavante,
que se constituía em unidades semimóveis seguindo características dos
povos de savana.3
O que é importante é a percepção de um agente histórico que
opera por meio de um código cultural e que percebe e especula com a
presença de outros agentes e de outras culturas. Compreende-se que,
dentro das conversações para paz ou aliança, os grupos indígenas conseguiam negociar determinadas condições ou concessões. Um exemplo
dessa situação aconteceu com os Xavante, que conseguiram manter a
unidade do grupo quando de seu aldeamento em 1788. As autoridades
administrativas da Capitania de Goiás, temendo o grande número de
indígenas em um só local, queriam dividi-lo entre os estabelecimentos
de Carretão e Salinas. Depois de se manifestarem contrários à ida de
metade deles para Salinas, os Xavante seguiram unidos para o Carretão, onde entraram mais de três mil pessoas em “meio a aclamações
de alegria, e ao som dos seus maracás, trombetas e caixas de guerra”
(Alencastre, 1864, p. 334-335). Um espetáculo festivo provavelmente
orquestrado pelo governador Tristão da Cunha, defensor da idéia de que
deveria agradar os indígenas com o modo de viver dos “brancos” para
que esses tomassem gosto pela “civilidade”. As festividades e os termos
de paz e alianças só não apresentam as definições do que seria viver na
civilidade, algo que os indígenas só descobriram mais tarde na vivência
dos aldeamentos e de suas regras de comportamento e de produção.
3
 Sobre diferenciação entre povos da savana e povos de floresta, ver Claval (2001, p. 192).74 Estudos indígenas
A guerra foi outra estratégia utilizada em grande escala na conquista
luso-brasileira, sendo também utilizada pelos indígenas para construir
sua defesa. A guerra aos índios em Goiás foi nomeada de formas variadas
e caracterizou-se pelo objetivo de retirar o indígena de seu território.
Aproveitando-se da dubiedade da legislação, os luso-brasileiros sempre
invocaram o princípio da “guerra justa”, para alcançar o objetivo de
eliminar o indígena hostil com o avanço dos mineiros do ouro ou dos
criadores de gado. A concepção de guerra justa é jurídica e teológica e
suas origens remetem ao direito de guerra medieval. Naquele período
instituíram-se certas circunstâncias que eram permitidas aos cristãos
fazerem guerras, em especial aos mouros (Farage, 1991, p. 27). A adoção
desse princípio pelo mundo colonial é explicada por Odair Giraldin:
“com a expansão ultramarina aquela prática, antes utilizada contra os
sarracenos, passou a ser aplicada para os grupos indígenas do ‘Novo
Mundo’. O principal argumento para justificar a guerra era a ‘hostilidade’
por parte dos índios” (1997, p. 69, destaques do autor).
Denominações como “defensiva” e “repressiva” foram dadas à “guerra
justa”, quando se procurou eliminar a “ameaça” indígena ou quando se
buscou legalizar o combate àqueles que eram considerados “ofensores”. A
guerra “justa defensiva” era permitida quando grupos indígenas se encontrassem em atitudes que indicassem um ataque iminente e era proibido
o ataque de tropas às aldeias. Todavia essa categoria de guerra podia ser
permitida por várias autoridades locais e metropolitanas, o que levava
ao descumprimento dessa regra. A guerra justa ofensiva, pelo contrário,
permitia o ataque às aldeias. Essa modalidade, entretanto, só poderia ser
autorizada pelo rei (Perrone-Moisés, 1992, p. 124; Giraldin, 1997, p. 69).
A imprecisão da legislação, a livre interpretação das situações, o desejo
de combater os nativos, somados ou não, quase sempre, conduziam à
“guerra justa”. Outro interesse era o apresamento de indígenas para o
trabalho escravo. O governador Marcos de Noronha, em carta ao rei,
denuncia essa prontidão dos luso-brasileiros em fazer tudo para facilitar
a escravidão dos indígenas. O governador esclarece que as condições para
se fazer prisioneiros de guerra e os levar ao cativeiro eram baseadas em
um bando4
 de 5 de março de 1737, expedido pelo Conde de Sarzedas,
4
 Lei com anúncio ou proclamação pública para conhecimento de todas as pessoas comuns no século
XVIII.Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 75
então governador da Capitania de São Paulo, com jurisdição sobre as
minas de Goiás, que:
[...] deu faculdade para que livremente pudessem os moradores destas
minas, e as mais pessoas que os quisessem acompanhar, fazer guerra aos
gentios bravos que arrasam estes sertões, não só pelo caminho que vai
destas minas para o povoado, mas também pelo que vai para o Cuiabá,
declarado-se-lhe que todo o gentio que apanhasse na dita guerra, ou nos
seus alojamentos, ficariam cativos, e só deles se pagariam os quintos de
V. Majde. (Noronha, 1985)
O respeito ao direito dos indígenas de defenderem a terra em que
viviam era incompreensível para o luso-brasileiro da conquista de Goiás.
Todavia, os conquistadores em Goiás tinham conhecimento da importância de alianças e conheciam o universo da diversidade indígena em
sua multiplicidade de conflitos internos. Para confirmar tal percepção
basta ver os acordos de paz com ofertas de apoio aos futuros aliados
contra seus inimigos tradicionais.
É certo que as expedições de guerra contra os grupos Akwen levaram resultados negativos aos indígenas, como mortes, aprisionamento
e escravização, raptos de crianças e mulheres, aldeamentos forçados.
Todavia, os combates entre luso-brasileiros e grupos indígenas devem
ser compreendidos no contexto. Não para diminuir a força das batalhas
dos não-indígenas ou para superdimensionar os combates indígenas,
apenas para clarear o processo de conflitos. Nesse exercício, deve-se
considerar a maioria demográfica do indígena e as limitações técnicas
das armas de fogo da época. Deve-se levar em conta que os europeus
dominavam técnicas que produziam uma guerra racionalizada, em que
até os movimentos para a operação de recarga eram previstos (Puntoni,
2002, p. 225). Em compensação, os indígenas levavam vantagens por
conhecer melhor o terreno e poder travar uma guerra de emboscadas.
Conclui-se que não havia nos conflitos entre os Akwen e os luso -
brasileiros em Goiás vantagens bélicas significativas em favor dos não-
indígenas, a ponto de causar uma dizimação dos grupos nativos, embora
essa tenha sido uma concepção permanente em diversos estudos. Uma
interpretação possível é que a queda da população indígena ocorreu, também, por causa de epidemias como a de sarampo, que se acometeu sobre
os Akroá em 1751, em São José do Duro, a qual sendo “de tão ruim
qualidade que dentro de poucos dias tirou a vida a 150 pessoas” (Leite, 76 Estudos indígenas
apud Ravagnani, 1987). As condições de confinamento a que muitos
grupos viveram nos aldeamentos teriam favorecido esse processo. Uma
perspectiva que ainda está por ser investigada na história indígena do
Brasil Central.
Entre as práticas político-guerreiras adotadas pelos indígenas houve
as incursões e campanhas contra os povoamentos, as minas e as fazendas
estabelecidas pelos conquistadores luso-brasileiros. Segundo Giraldin
(1997, p. 49), existe entre os grupos jê uma prática de vingança, como
forma de compensar mortes ou perdas, e essa perspectiva teria promovido muitos revides aos ataques luso-brasileiros.Outro motivo pode ser
incluído como causa para as incursões, como o sugerido no estudo de
Giraldin sobre os Cayapó, o desejo pelo butim.5
Essa prática teria sido
motivo para atacar os arraiais e as fazendas, senão para todos os grupos
Akwen, pelo menos para alguns. Assim o combate contra os conquistadores de Goiás propiciou aquisições de elementos para a cultura material
dos indígenas. Os Akroá, por exemplo, foram indicados por Marcos de
Noronha como montadores de cavalos. Eles obtinham esses animais
em saques a fazendas e os usavam para conduzir gado bovino para suas
aldeias com a finalidade de se alimentarem (Noronha, 1985), substituindo assim a dieta antes conseguida com a caça. Os mesmos Akroá
também passaram a utilizar armas de fogo, manejo também adotado
pelos Xakriabá e Xerente.
As fugas e retiradas também foram elementos comuns aos grupos
Akwen no decorrer dos contatos, sendo as primeiras identificadas como
as ações de abandono dos aldeamentos e as segundas, como a recusa do
contato. As fugas ocorreram após os indígenas terem sido obrigados a se
estabelecer em aldeamentos e, quase sempre, por não se adaptarem ao
modelo cristão-ocidental de civilização, os abandonavam e retornavam à
vida livre do jugo ordinário e disciplinador dos padres, administradores,
diretores e soldados. Nesse retorno ao modo tradicional de vivência, os
indígenas levavam conhecimentos ocidentais adquiridos nos aldeamentos
que, mais tarde, eram utilizados nos embates com os luso-brasileiros.
Foram exemplos desse aprendizado o uso de armas de fogo, por vários
grupos, e de montarias, caso mais preponderante com os Akroá. Mas o
5
 Butim (o que se consegue com o saque após a guerra). Isso valia também para os não-indígenas.Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 77
que parece mais significativo foi a compreensão do universo de negociação dos conquistadores.
Outro aspecto importante relativo às fugas dos aldeamentos diz respeito aos indígenas que não se adaptavam às novas condições de vida,
deixavam-na e não voltavam para o seu local de habitação tradicional.
Isso ocorria muitas vezes porque os fugitivos queriam estar próximos ao
aldeamento para levar consigo os demais integrantes de sua parentela,
em uma tentativa de reconstruir seu grupo familiar e social. Nos aldeamentos de Goiás, ao contrário do que destaca Monteiro (1994, p.
183), em relação aos índios cativos de São Paulo, ocorriam fugas em
massa. Isso porque o universo de habitação tradicional dos indígenas
poderia ser alcançado facilmente, o que não ocorria com os cativos de
Piratininga do século XVII.
É importante ressaltar que as fugas não ocorriam somente como
reação à falta de adaptação; funcionavam também como elemento de
negociação dentro do universo de convivência com os luso-brasileiros.
O abandono de um aldeamento podia ser uma estratégia para o início
de uma nova negociação.
Cada um dos grupos Akwen, seguindo seu entendimento do contexto
ou seus interesses, utilizaram-se das estratégias de fuga e retirada no
embate/convívio com os luso-brasileiros. Nessa perspectiva, as fugas
para os Akroá tiveram como motivo a impossibilidade de convivência
pacífica, fato que levou esse grupo a um confronto bélico constante.
Já para os Xakriabá e Xerente, as fugas fizeram parte de negociações.
Embora com perdas para os indígenas, elas se configuraram como um
elemento que garantiu a sobrevivência dos grupos.
Os Xavante, diferentemente após a fuga e um período de conflito,
optaram por não manter mais contato com os conquistadores, indo viver
em uma área mais para o interior, onde os conquistadores luso-brasileiros
ainda não se constituíam uma ameaça. Esse comportamento dos Xavante
é significativo para demonstrar que esse grupo indígena tinha uma real
compreensão do processo político-social em que estavam envolvidos, a
ponto de tomarem uma decisão que lhes permitiu retornar a uma condição
que eles já tinham vivido e novamente desejavam. 78 Estudos indígenas
CONCLUSÕES
Constata-se que a ocupação do norte da Capitania de Goiás não ocorreu de maneira linear, uniforme e pacífica e que os indígenas reagiram
diante da invasão de seu território. As ações e atitudes desenvolvidas e
vivenciadas dependiam do jogo de forças entre os atores do contexto no
processo de contato e refletiam as influências da cultura de cada grupo
étnico. Assim, embora a resistência bélica dos indígenas, em especial dos
Akwen, estivesse sempre presente como forma de relação, o aldeamento constituiu opção de convívio em determinados momentos e a fuga,
negação de uma convivência opressora ou desvantajosa. A resistência,
portanto, não se limitava a uma reação insensata e irracional, mas a uma
forma de construir a sobrevivência em um contexto modificado com
a chegada do conquistador, portador de uma cultura e de uma lógica
diferente da dos grupos indígenas.
Todavia, a invasão do território indígena, a violência e o contexto de
arbitrariedades, gerados pelo conquistador luso-brasileiro, levaram os
indígenas a restringirem o contato com os não-indígenas. Arbitrariedades
materializadas em quebra de pactos, em ataques surpresas, em raptos de
mulheres e crianças, no descumprimento de acordos, como os que garantiam
aos indígenas o fornecimento de armas para defesa contra outros grupos
e de ferramentas para o cultivo da terra, geravam conflitos e desconfian-
ças mútuas. Uma insegurança que, somada aos interesses de indígenas e
conquistadores, não permitia o desenvolvimento de determinadas formas
de interação entre os Akwen e os luso-brasileiros na Capitania de Goiás.
Conseqüentemente, seguindo tal perspectiva e reconhecendo que os
Akwen mantiveram com o conquistador luso-brasileiro na Capitania de
Goiás uma relação de oposição, mesmo contraditória, com significativas
perdas, sua sobrevivência não se deve a uma acomodação alienante. Ao
contrário, ocorreram ações que num contexto reconhecidamente opressor
criaram ou recriaram comportamentos, concepções e atitudes para sua
sobrevivência física e cultural. Portanto, é sob esse ângulo que devem
ser vistas as campanhas bélicas contras as povoações mineradoras, os
acordos de paz que incluíam aldeamentos e as fugas do contato.
As diferentes ações dos Akwen foram direcionadas por situações
vivenciadas por eles, que, ao seguir suas orientações histórico-culturais,
estabeleceram, para cada acontecimento, a resposta que lhes pareceu
mais acertada nos limites de seu universo sociocultural. Interpretando mundos: contatos entre os Akwen e os conquistadores luso-brasileiros em Goiás 79
Nessa perspectiva, o que se deve ver não são as perdas, mas, sim, como
novos elementos foram adicionados a um núcleo central, gerando novas
possibilidades para um novo convívio. Estes “elementos ‘alheios’ foram
absorvidos pela cultura indígena porque se inseriram num contexto significativo, isto é, faziam sentido” (Pompa, 2003, p. 25). Isso permite entender
as ações dos Akwen em uma lógica mestiça (Gruzinski, 2001) e não apenas
resistência por reação ou revolta. As ações são estratégias de mediação e
adaptação e constituem novas formas sociais e culturais. Comportamentos,
concepções e atitudes foram criadas e recriadas constantemente, tanto por
parte dos indígenas quanto por parte dos luso-brasileiros.
Como elementos que podem ser incluídos em futuros estudos sobre
as ressignificação dos Akwen, apontam-se a cosmologia, a identidade
e a memória, entre outros. Para trabalhos que pretendem mensurar as
mudanças, proporia a utilização, além das fontes documentais, o trabalho
com a oralidade e a memória.
Cleube Alves da Silva
Natural de Guaraí – TO. É graduado em História pela Universidade do Tocantins – UNITINS e mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Grande Dourados – MS. A sua dissertação,
Confrontando mundos: os Xerente, Xavante, Xakriabá e Akroá e os contatos com os
conquistadores da Capitania de Goiás (1749-1851), foi orientada pelo professor
doutor Jorge Eremites de Oliveira, da Universidade Federal da Grande Dourados –
MS. Atualmente é pesquisador do Núcleo Tocantinense de Arqueologia – NUTA/
UNITINS, onde desenvolve pesquisas sobre o patrimônio hist órico e cultural.
Cursa doutorado em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Ex-bolsista IFP, turma
2003. E-mail: cleubesilva@bol.com.br80 Estudos indígenas
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no Acre: uma comparação econômica
Francisco Kennedy Araújo de Souza
RESUMO
Este estudo comparou três regimes comunitários rurais existentes
na Amazônia, estado do Acre: uma reserva extrativista – RESEX –, um
projeto agroextrativista – PAE – e um assentamento de colonização – PC.
Usando dados socioeconômicos e imagens de satélite, a pesquisa teve
como objetivo avaliar a efetividade desses três regimes comunitários
para a conservação florestal e melhoria de renda dos seus habitantes.
Para levar a efeito essa análise e comparação, procedeu-se à classificação
e à quantificação da cobertura vegetal das três áreas, realizou-se uma
análise estatística dos dados coletados e do processamento das imagens
e, por último, utilizaram-se modelos de regressão multivariada para integrar dados socioeconômicos e de cobertura. Os resultados certamente
contribuirão para mostrar o potencial econômico e ambiental desses
modelos comunitários existentes na Amazônia.
PALAVRAS-CHAVE
AMAZÔNIA – ECONOMIA – AGRICULTURA FAMILIAR – DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL84 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
Comunidades rurais e seus distintos usos da terra na Amazônia têm
sido objeto de intenso debate ao longo das duas últimas décadas (e.g.
Schwartzman, 1989; Allegretti, 1990; Anderson, 1990; Homma, 1989;
Browder, 1990). Enquanto alguns desses estudos têm defendido os regimes comunitários rurais como modelos alternativos de desenvolvimento,
as políticas públicas implementadas na região têm estimulado estratégias
econômicas baseadas na substituição da floresta pela exploração de gado,
mineração e madeira. De acordo com esta última perspectiva, o modo de
vida das populações locais, baseado no uso dos produtos florestais e em
outras formas de usos sustentáveis da terra, tem sido considerado inviável
e impeditivo do crescimento econômico da região (Hecht, 1985). Apesar
do dilema implícito nessa discussão, nos últimos oito anos, no estado do
Acre, localizado na parte ocidental da região, o governo local tem buscado
consolidar uma política de desenvolvimento fundamentada no apoio às
comunidades rurais e em suas estratégias de uso da terra com a finalidade
de indicar para os outros estados amazônicos um caminho viável com vistas
à melhoria econômica e à conservação dos recursos naturais.
Esse novo contexto local tem demandado estudos prementes que
avaliem a efetividade das práticas comunitárias para o bem-estar econômico das famílias extrativistas, agroextrativistas e de projetos de
colonização da região, entre elas o manejo florestal madeireiro e não
madeireiro, os sistemas agroflorestais e agrossilvopastoris. Análises dos
efeitos potenciais dessas estratégias de uso da terra sobre o modo de
vida das famílas e sobre a conservação ambiental têm sido raras. Kaimowitz e Angelsen (1998) ressaltam o limitado número de pesquisadores
qualificados e o tempo requerido para execução dessas pesquisas como
os dois principais fatores que limitam esse tipo de análise em nível familiar. A despeito de ainda existirem poucas pesquisas que combinem
análise econômica e análise da dinâmica de cobertura florestal, estudos
têm ressaltado que o aumento de renda dos pequenos produtores na
Amazônia contribui para mudanças no padrão e na escala de uso dos
recursos disponíveis na propriedade (i.e. Carpentier, Vosti, Witcover,
2000; Tomich et al., 1998).
Souza (2001) observou que a melhoria de lucratividade entre famílias
extrativistas e de colonos no Acre durante os anos de 1997 e 1998 colabo-Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 85
rou para a substituição de produtos agrícolas produzidos na propriedade
(e.g. arroz, feijão e milho) por produtos industrializados adquiridos no
mercado. Essa mudança na produção familiar identificada pelo autor
tem contribuído para que as famílias realizem maiores investimentos
em gado como estratégia de aumentar seus ganhos e, portanto, garantir
o acesso a bens industrializados, o que por sua vez tem causado prejuí-
zos à conservação florestal. Além da pecuária, a exploração madeireira
passa a ser uma atividade mais praticada pelas famílias, o que implica
maior contribuição à degradação florestal e prejuízos à biodiversidade.
Parece haver, portanto, trade-offs entre melhoria da renda familiar e
conservação ambiental, o que estimula um grande número de indagações
sobre a efetividade de estratégias de usos comunitários para a Amazônia.
Duas questões em particular foram fundamentais para este estudo:
(1) São os regimes comunitários rurais (extrativistas, agroextrativistas
e projetos de colonização) economicamente viáveis e compatíveis
com a conservação florestal na região?
(2) Qual regime comunitário tem sido mais eficiente para balancear
objetivos econômicos e de conservação florestal?
No intuito de contribuir para a reflexão sobre esse dilema, realizou-se
o estudo no Acre, onde desde 1999 uma proposta de política pública
denominada “Governo da Floresta” tem buscado consolidar um modelo
de desenvolvimento baseado no uso sustentável dos recursos naturais.
Nesse contexto, essa pesquisa representou uma rara oportunidade
para avaliar se áreas que são alvo do manejo por parte de comunidades
extrativistas, agroextrativistas e de projetos de colonização podem
efetivamente contribuir para a redução da desigualdade econômica e a
manutenção dos ecossistemas florestais.
Além desses aspectos, três outras questões orientaram a realização
deste estudo. São elas:
(1) Qual a efetividade econômica e ambiental (medida respectivamente por viabilidade econômica e percentual de desmatamento)
dos três regimes comunitários rurais analisados?
(2) Qual é a estratégia florestal mais eficiente economicamente:
manejo madeireiro ou não madeireiro?
(3) A eficiência econômica das comunidades tem contribuído para
aumentar o desmatamento? 86 Estudos indígenas
Baseado em estudos anteriores (Souza, 2001) realizados em parceria
com departamentos da Universidade Federal do Acre e em colaboração
com outras instituições da Amazônia e do exterior, foi formulada uma
hipótese para cada uma daquelas três questões: o Projeto de Assentamento Agroextrativista Porto Dias – PAE1
 – é o modelo comunitário mais
eficiente em contrabalançar geração de renda e conservação da floresta;
o manejo florestal não-madeireiro é mais eficiente economicamente
que o manejo madeireiro; a melhor viabilidade econômica implicará
um maior nível de desmatamento e, conseqüentemente, mudanças no
modo tradicional de vida das famílias.
A PESQUISA
Na pesquisa utilizamos os referenciais teóricos da Ecologia Política para
abordar a reforma agrária na Amazônia e as estratégias de usos comunitá-
rios entendidas como um processo dinâmico passível de ser observado em
múltiplas escalas espaciais. Desse modo, este estudo definiu que os usos
da terra na região resultam de eventos econômicos e políticos originados
externamente (Peet, Watts, 1996; Bryant, Bailey, 1997).
Com base numa perspectiva política, econômica e cultural, o estudo
que propomos parte do pressuposto de que o uso dos recursos naturais
é determinado pelas políticas econômicas e ecossistemas locais, nacional
e global (Blaikie, Brookfield, 1987; Schmink, Wood, 1992). Os ciclos
econômicos da borracha, que ocorreram durante algumas décadas nos
séculos XVIII e XIX, foram exemplos claros dessa conexão de fenômenos locais e globais. Enquanto os ciclos na Amazônia foram resultantes
de demanda internacional, as políticas nacionais e regionais por sua vez
estimularam a migração humana, os regimes de grande proprie dade
e também a degradação ambiental. Esse processo ajuda a entender
como as dinâmicas socioeconômica e política, em nível comunitário na
Amazônia, podem ser influenciadas por fatores exógenos e pela política
econômica acontecendo em múltiplas escalas.
A Ecologia Política, por sua vez, mostra como fatores sociais, culturais, ambientais e econômicos influíram nos regimes de propriedade
1
 O Assentamento Agroextrativista Porto Dias foi uma das áreas estudadas.Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 87
comunitária na Amazônia, entre os quais estão as reservas extrativistas,
os assentamenos agroextrativistas e os assentamentos de colonização.
No estado do Acre, sob o “Governo da Floresta”, as políticas públicas
têm privilegiado propriedades agrícolas que combinam resultados econômicos e ambientais, ou seja, que utilizam práticas de uso sustentável
da terra. A Ecologia Política, conseqüentemente, constitui uma base
teórica importante para o entendimento do contexto histórico e polí-
tico das categorias comunitárias fundiárias consideradas neste estudo.
Além da Ecologia Política, a pesquisa valeu-se também dos resultados
de estudos que analisam a economia de sistemas familiares rurais de
produção com foco no seu modo de vida e nos que se debruçam sobre
os fatores que afetam as mudanças de cobertura florestal em várias
escalas espaciais.
O objetivo de conciliar crescimento econômico e uso sustentável da
terra por parte de iniciativas implementadas por algumas organizações
governamentais e não-governamentais na Amazônia geralmente tem sido
apresentado como um eficiente caminho para conjugar conservação ambiental e bem-estar humano. Entretanto, concordamos com Wollenberg,
Edmunds e Anderson (2001), segundo os quais o aumento de investimentos
em atividades geradoras de renda altera o contexto social, a propensão à
conservação ambiental e os modos de vida das comunidades locais.
Além do mais, baseado em Ellis (2000), este estudo concebe os pequenos produtores rurais como atores sociais combinando diversas atividades
econômicas orientadas por seus modos particulares de vida. Aplicando
essa perspectiva, para as categorias fundiárias comunitárias aqui selecionadas, uma reserva extrativista (RESEX Chico Mendes), um projeto
agroextrativista (PAE Porto Dias) e um assentamento de colonização
(PC Peixoto), foram realizados dois níveis de análise. Primeiramente,
efetuou-se uma consulta à bibliografia publicada nos últimos trinta anos
sobre usos sustentáveis da terra praticados nas comunidades selecionadas. Estudos sobre os usos da terra e economia florestal na Amazônia nos
anos de 80 e 90 do último século (i.e. Godoy, Lubowiski, Markandya,
1993; Peters, Gentry, Mendelsohn, 1989; Pinedo-Vasquez, Zarin, Jipp,
1990; Nepstad, Schwartzman, 1992; Padoch, Jong, 1989) identificaram os potenciais desafios e oportunidades para estratégias econômicas
baseadas em produtos florestais e agroflorestais. Em segundo, além das
diferenças de caráter institucional, socioculturais e econômicas entre 88 Estudos indígenas
os regimes comunitários rurais, considerou-se também a diversidade
do modo de vida dos moradores de RESEXs, PAEs e PCs. Assim, para
efetuar uma análise econômica e de uso da terra, tornou-se necessário
entender o perfil de cada tipo de comunidade, isto é, as suas decisões
sobre os usos da terra como uma estratégia alternativa de desenvolvimento viável à Amazônia baseado em comunidades rurais.
Embora os produtores familiares, conforme Ellis (2000), busquem diversificar suas atividades como uma estratégia para manter o seu bem-estar, na
Amazônia essa decisão é também influenciada pela cultura local (Rego,
1999). Essa diversidade da produção familiar dificulta a sua análise socioeconômica. Hildebrand e Schmink (2004) ampliam essa problemática
ao afirmarem que fatores econômicos, sociais e institucionais afetam a
economia familiar. Esses aspectos, segundo os autores, têm conseqüências na estratégia de distribuição dos usos da terra em cada propriedade.
Essa pesquisa analisou o modo de vida dos produtores para entender
como as dinâmicas econômicas e de cobertura da terra são afetadas por
diferentes regimes de usos da terra. Os instrumentos de pesquisa de
campo (questionário, mapeamento participativo,2
 observação participativa etc.) foram adaptados para cada comunidade de acordo com
as estratégias utilizadas e seu modo de vida. Os resultados da análise
econômica apresentada neste artigo são divididos em termos de inputs
e outputs. Entretanto, para visualizar a diversidade dos modos de vida
das famílias, são agregados por categorias de usos da terra (agricultura,
pecuária e manejo florestal). Por outro lado, a análise espacial foi realizada tendo-se em vista a alocação dos usos da terra (área de agricultura,
pasto e floresta) por parte das famílias. As categorias econômicas e espaciais, por sua vez, são resultantes da alocação dos recursos disponíveis
(trabalho, recursos naturais e capital) para cada família.
O estudo procurou também identificar as causas e conseqüências das
mudanças dos padrões de cobertura vegetal em múltiplas escalas. Enquanto
alguns estudos sobre o desmatamento na Amazônia têm adotado abordagens
neoclássicas ou análises de ecologia política, outros têm sugerido uma combinação de causas locais e fatores exógenos em contextos geográficos e históri-
2
 Metodologia utilizada para identificar a forma de distribuição dos recursos naturais na propriedade
e sua forma de utilização pela família. Para isso identificam-se, por exemplo, áreas de floresta, agricultura, pasto, rios, lagos e como a mão-de-obra da família é distribuída em cada uma dessas áreas.
Essas informações posteriormente são validadas com o uso de imagens de satélites classificadas.Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 89
cos como explicativos das ações antrópicas (Geist, Lambin, 2002). Todavia,
em nível local, as respostas individuais e sociais às dinâmicas de cobertura
são também afetadas por mudanças econômicas em decorrência das ações
governamentais. Nessa perspectiva, Lambin et al. (2001) concluem que
as estratégias de usos da terra criadas pelo mercado e políticas públicas
regio nais são cada vez mais influenciadas por fatores regionais e globais.
Apesar da importância desses fatores, Anselin (2001) ressalta que a dinâ-
mica de uso da terra e cobertura florestal é particularmente influenciada
por decisões microeconômicas individuais em nível comunitário. Na
mesma perspectiva, Mertens et al. (2000) enfatizam que a integração de
estudos em escala familiar e dados de sensoriamento remoto constituem
estratégias apropria das para o entendimento empírico da associação e
para feedbacks se dando entre esses fatores em níveis regional e micro.
Para comparar os três regimes comunitários rurais no Acre, objetivando
avaliá-los da perspectiva econômica e de conservação florestal, essa pesquisa adotou um enfoque multidisciplinar utilizando dados socioeco nômicos
e geoprocessamento de imagens de satélites. Amostras de tipologia de
cobertura da terra (agricultura, pastagem, capoeira e floresta) foram
coletadas através do uso de equipamento GPS, objetivando realizar a
classificação dos mosaicos das áreas comunitárias por meio de imagens
do satélite Landsat TM 5. Adicionalmente, realizou-se uma análise
quantitativa, correlacionando resultados econômicos e dinâmicas de
cobertura florestal em nível familiar. Além disso, a fase de campo incluiu
realização de entrevistas semiestruturadas, observação e mapeamento
participativo e análise de sensoriamento remoto.
Figura 1. Localização da Área.
Reserva
Extrativista Chico Mendes
Assentamento
Agroextrativista Porto Dias
Assentamento
de Colonização Peixoto90 Estudos indígenas
 Para avaliar a viabilidade econômica e a conservação florestal das
estratégias sustentáveis de uso da terra implementadas pelas famílias
(por exemplo, manejo florestal e sistemas agroflorestais), foram selecionadas 3 áreas e 88 famílias nos anos agrícolas de 2004 e 2005 (Figura
1). (1) Na RESEX Chico Mendes, cuja principal atividade econômica é
o manejo florestal de vários produtos florestais não-madeireiros, foram
selecionadas 34 famílias. (2) No PAE Porto Dias, a amostra foi de 27
famílias que exploram produtos madeireiros e/ou não-madeireiros. (3)
A amostra do PC Peixoto foi constituída por 27 propriedades nas quais
as famílias combinam agricultura, pecuária e sistemas agroflorestais em
seus sistemas de produção.
A coleta das amostras de cobertura da terra, com uso de GPS, foi
realizada em dois períodos. Em 2004, durante a entrevista com produtores, foram georreferenciados 345 pontos de tipologias de cobertura
da terra. Todavia, a falta de acurácia e confusão espacial dos resultados
da classificação em áreas de bambus contribuiu para superestimar o
desmatamento das áreas, o que requereu uma nova coleta de 97 novos
pontos durante os meses de maio a agosto de 2005. Esses dados foram
então utilizados para realizar uma classificação supervisionada das cenas3
001-67 e 002-67 das imagens do satélite Landsat do ano de 2004. No entanto, esse tratamento foi antecipado por fusão das bandas4
 de 1 a 5 das
imagens, georreferenciamento, correção atmosférica. O desma ta mento
das propriedades foi quantificado utilizando-se polígonos espaciais que
indicam as áreas das famílias de cada uma das comunidades.
Os indicadores de análise conforme detalhamos a seguir foram classificados em dois grupos:
a) Econômicos: consideraram-se os resultados econômicos alcançados pelas famílias e os custos envolvidos no processo, conforme
os seguintes indicadores:
3
 Cena é uma imagem digital da superfície terrestre obtida pelo satélite. Considerando que seria
impossível a reprodução da superfície do planeta em uma única imagem, as diversas regiões do
globo estão divididas em várias cenas. Nesse estudo, utilizou-se o satélite Landsat em que cada
cena representa uma extensão de 30 x 30 metros do mundo real.
4
 Para a reprodução da superfície terrestre, a imagem digital obtida por um satélite é dividida pelas
cores e ainda pelo infravermelho. Cada uma dessas cenas de cores recebe o nome de banda. Para
esse estudo foram utilizadas as de 1 a 5.Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 91
 • Renda Bruta(RB): valor monetário da produção comercializada
pelas famílias no último ano agrícola;
 • Lucro (L): resultado monetário disponível para as famílias, após
pagamento de todos os custos de produção;
 • Valor Econômico de Subsistência (VES): valor em unidades
monetárias de bens consumidos pelas famílias produzidos internamente na propriedade;
 • Bem-Estar Econômico Total (BET): renda total apropriada pelas
famílias (RB + VES).
 • Custo Total (CT): refere-se a todos os gastos realizados pela
família ao longo do ano agrícola considerado;
 • Relação benefício/custo (B/C): indicador de relação entre BET
e CT. Esse resultado sendo acima de 1 significa uma viabilidade
econômica da produção ou de determinado produto.
b) Ambiental: foi quantificado o desmatamento em cada uma das
comunidades. A partir das imagens de satélites disponíveis foi realizada uma classificação supervisionada em duas classes: floresta e
não-floresta (pasto, capoeira, agricultura e sistemas agroflorestais).
MODELOS COMUNITÁRIOS E VIABILIDADE ECONÔMICA
No passado nós fomos pobres, mas felizes e unidos,
seringueiros coletando muitos produtos. Hoje somos ricos,
mas infelizes e desunidos. Passamos de seringueiros a
manejadores florestais explorando apenas madeira.
Essas foram palavras de um dos seringueiros entrevistados durante a
pesquisa de campo em 2005. Ele se referia ao dilema enfrentado pelas
comunidades em balancear crescimento econômico com suas práticas
culturais, sociais e ambientais.
O dilema entre conservação, crescimento econômico e modos de vida
teve, todavia, sua origem ainda durante os conflitos fundiários na região.
Em 1980, extrativistas, agroextrativistas e colonos empreenderam um
movimento social, reivindicando a implementação da reforma agrária
na Amazônia. Entretanto, a despeito de suas reivindicações terem sido
parcial mente alcançadas na década de 1990, outros desafios surgiram. 92 Estudos indígenas
Apoiados por algumas políticas públicas e organizações não-governamentais – ONGs –, as comunidades têm tentado consolidar as áreas
de RESEXs e PAEs como um modelo eficiente para aliar crescimen to
econômico e conservação ambiental. As estratégias utiliza das têm sido
incentivar produtos não-madei reiros, sistemas agrossil vo pastoris e, mais
recentemente, produtos madeireiros.
No contexto desse dilema entre desenvolvimento e conservação, é
importante ainda compreender que cada uma das comunidades rurais
na Amazônia, particularmente seringueiros e colonos, têm diferentes
objetivos. Do ponto de vista econômico, enquanto para populações
extrativistas e agroextrativistas o uso de produtos da floresta (por
exemplo, frutas, raízes, sementes, óleos, caça e pesca) foi importante
para a manutenção de suas famílias, para os moradores de áreas de assentamento de colonização, como o Peixoto, esse tipo de produção teve
pouca importância econômica para o seu autoconsumo familiar local.
Assim, enquanto o primeiro grupo busca implementar estratégias de
uso da terra que possam conjugar melhoria econômica e manutenção
de suas áreas florestais, a segunda categoria precisa aumentar a sua
renda, seja pela criação de gado, seja pelo cultivo de produtos agrícolas,
para poder comprar produtos industrializados. Além disso, cada um
dos regimes comu nitários tem uma composição econômica particular,
incluindo custos, rendas, escala de produção, relações e acesso ao mercado, decisões de uso da terra, investimentos, prioridades econômicas
e distribuição da força de trabalho familiar (Vosti et al., 2003) que
respondem diferentemente ao mercado.
Essas particularidades fizeram com que em Porto Dias a comunidade
definisse a área de manejo florestal madeireiro como um espaço coletivo, regulado por normas e acordos consensuados. Da mesma forma,
em escala estadual, o risco da instabilidade da demanda do mercado por
madeira tem contribuído para que os produtores combinem produtos
com diferentes potenciais econômicos. Essas características constituem
uma base importante para a conservação por meio do uso múltiplo florestal e, conseqüentemente, para a manutenção dos modelos de vida dos
moradores da Chico Mendes e do Peixoto. Baseado nesse pressuposto
teórico de diversidade, nas seções que se seguem serão examinados os
resultados da avaliação econômica dessas áreas e posteriormente far-se-á
uma comparação do nível de desmatamento de cada um dos modelos.Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 93
Na análise econômica foi considerado o total de produtos comercializados e, também, a produção destinada à subsistência familiar, incluindo produtos madeireiros, não-madeireiros, agrícolas e de pecuária.
A avaliação levou em conta três componentes principais: (1)renda bruta
resultante da comercialização; (2) bens consumidos da floresta, bem
como os provenientes da exploração agrícola e da pecuária na propriedade; e (3) custo total resultante da produção e exploração. Apesar de
os serviços ambientais serem fundamentais para o bem-estar presente e
futuro dessas comunidades, essa análise não foi incluída nesse trabalho.
Na Chico Mendes, desde a sua criação, as famílias têm priorizado a
exploração econômica de produtos florestais não-madeireiros – PFNM.
Em 1999, com o incentivo do “Governo da Floresta”, foi estimulada a
exploração de 15 tipos de produtos florestais não-madeireiros (Acre,
1999). O primeiro desses produtos foi a copaíba (Copaifera sp) nos
seringais São Pedro, Floresta e Palmari, áreas selecionadas nessa pesquisa.
Em 2004/2005, as famílias da Chico Mendes obtiveram uma Renda
Bruta – RB – anual média de R$ 2.670,00 (Tabela 2), resultante das
diversas atividades exploradas. Em detrimento de atividades com maior
impacto na floresta (principalmente borracha, castanha do brasil e copaíba), os PFNM foram os que tiveram a maior importância econômica,
constituindo quase 60% da RB total (Tabela 1). Apesar de essa comunidade ao longo dos últimos cinco anos ter estabelecido estratégias para a
substituição da agricultura tradicional por sistemas agroflorestais, estes
não foram significativos economicamente. Essa situação deve-se ao fato
de que os produtos componentes do consórcio agroflorestal ainda não
se encontravam em fase de produção.
O PAE Porto Dias, onde 61% da RB anual das famílias resultou da produção florestal madeireira (Tabela 1), foi a comunidade com maior RB
média anual (R$ 10.420,00) entre as comunidades analisadas (Tabela 2).
Esse resultado confirma a importância do manejo florestal madeireiro
para essa comunidade. Particularmente, a certificação internacional pelo
Forest Stewardship Council – FSC – e as oportunidades surgidas para a comercialização da produção no mercado brasileiro constituíram a principal
vantagem dessa comunidade em comparação com outras áreas similares
no Acre e também na Amazônia. Nessa comunidade, as atividades antrópicas tradicionais como agricultura e pecuária, em comparação com a
Chico Mendes, tiveram menor importância para as famílias. Todavia, essa 94 Estudos indígenas
situação tem contribuído para que os produtores do Porto Dias tenham
uma maior dependência de bens de consumo do mercado para sua subsistência, o que é demonstrado pelo Valor Econômico de Subsistência,
que foi o menor entre as três áreas estudadas (Tabela 2).
No modelo comunitário de colonização agrícola, representado por
Peixoto, a RB anual média obtida pelas famílias foi também acima de
R$ 10.000,00, equivalendo a uma remuneração de 3,5 salários mínimos
mensais (Tabela 2). Apesar de nos últimos dez anos várias organizações
governamentais e não-governamentais da região apoiarem a implantação de
sistemas agroflorestais – SAFs –, como alternativa de melhoria econômica,
redução ao desmatamento e recuperação de áreas degradas, essas atividades
representaram apenas 6% da RB total (Tabela 1). A pouca participação desse
tipo de produção é explicada pela pequena escala na qual os SAFs têm sido
implementados (~ 0,5 hectares). Adicionalmente, em comparação com
outras áreas, essa comunidade obteve o segundo melhor resultado econô-
mico de subsistência (VES). Esse fato indica a dependência das famílias
do Peixoto de sua produção interna (agropecuária e extrativismo) como
meio de garantir a manutenção dos membros familiares.
Tabela 1. Composição da Renda Bruta (RB) de acordo com o tipo de produto
em três modelos comunitários no estado do Acre, Brasil (2004/2005).
Comunidade Participação proporcional na RB média anual (%)
Pecuária Agricultura PFNM PFM SAFs TOTAL
RESEX Chico Mendes 24 18 58 100
PAE Porto Dias 18 4 16 61 100
PC Peixoto 47 43 1 4 6 100
Apesar de as comunidades manterem suas características rurais
como extrativistas, agroextrativistas e de colonização e com uma maior
importância econômica dos produtos não-madeireiros, madeireiros e
agrope cuários, a pecuária foi o segundo produto com maior destaque
econômico entre as famílias. Na Chico Mendes e no Porto Dias, a RB
média/anual dessa atividade variou de R$ 640,00 a R$ 1.910,00. No
Peixoto foi a principal atividade econômica, R$ 5.020,00/ano. A maior
demanda e, conseqüentemente, a maior liquidez são os principais
fatores que contribuem para a importância da pecuária. Além disso,
vários autores como Veiga (2001), Vosti et al. (2003), Vosti et al.
(2001) e Souza (2001) têm enfatizado outros fatores, entre os quais Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 95
subsídios, baixo risco, oportunidade de poupança familiar e pouca
necessidade de mão-de-obra.
O bom desempenho econômico da pecuária pode ser observado no resultado do benefício/custo – B/C. Na Chico Mendes, essa foi a atividade com
melhor eficiência econômica – B/C – de 1.42, isto é, para cada quantia de
R$ 142,00 de renda bruta gerada nessa atividade ocorreu um custo associado
de R$ 100,00 (Tabela 2). Um comportamento similar foi observa do em
Porto Dias (B/C=1,5), porém, nessa área o manejo florestal madeirei ro foi
a atividade que obteve melhor eficiência econômica com um B/C de 3,0.
Em Peixoto o B/C da pecuária foi de 1,81, resultado este quase similar à
agricultura e aos SAFs, porém, a atividade com melhor resultado econô-
mico nessa comunidade foi a madeireira. Excetuando- se o Porto Dias,
os produtos florestais não-madeireiros mostraram-se economicamente
inviáveis. O mesmo ocorreu com a agricultura, pois apenas no PC Peixoto,
onde o B/C foi 2,15, essa atividade mostrou-se viável economicamente.
Tabela 2. Indicadores econômicos de três modelos comunitários no estado
do Acre, Brasil (2004/2005).
Indicador Econômico Resultado Anual Médio (R$)*
Resex
Chico Mendes (n=34)
PAE
Porto Dias (n=27)
PC
Peixoto (n=27)
a. RENDA BRUTA (RB) 2.670,00 10.420,00 10.060,00
Pecuária 640,00 1.910,00 5.020,00
Agricultura 480,00 403,00 4.580,00
PFM — 6.400,00 390,00
PFNM 1.490,00 1.710,00 72,00
SAFs — — 670,00
b. CUSTO TOTAL (CT) 3.820,00 4.510,00 5.390,00
Pecuária 450,00 1.270,00 2.780,00
Agricultura 980,00 1.690,00 2.130,00
PFM — 2.120,00 31,00
PFNM 2.370,00 1.260,00 78,00
SAFs — — 370,00
c. VALOR ECONÔMICO DE SUBSISTÊNCIA (VES) 2.920,00 1.790,00 2.040,00
d. BEM-ESTAR ECONÔMICO TOTAL (BET) 5.590,00 12.210,00 12.100,00
e. BENEFÍCIO/CUSTO (B/C) 1,46 2,70 2,24
Pecuária** 1,42 1,50 1,81
Agricultura** 0,49 0,23 2,15
PFM** — 3,01 12,60
PFNM** 0,62 1,36 0,92
SAFs** — — 1,81
* Significância em 0,05. ** Não considerado no total agregado desses produtos o valor utilizado pelas
famílias para a sua subsistência.96 Estudos indígenas
Contradizendo muitos estudos, os resultados da análise econômica
mostraram uma eficiência econômica de todas as comunidades rurais.
O valor do Bem-Estar Econômico Total – BET – indicou que a renda
total das famílias variou de 2 a 4 salários mínimos mensais. Porto Dias
(B/C = 2,70) foi a comunidade com melhor viabilidade econômica. Por
outro lado, a Chico Mendes foi a área com pior eficiência (B/C = 1,46).
As baixas produtividades da agricultura e PFNM, bem como o alto de custo
de produção associado a essas atividades contribuiram para essa situação.
A certificação internacional, melhor acessibilidade e intenso investimento
em gado explicam a situação de grande destaque, respectivamente, de
Porto Dias e de Peixoto. Alternativas de desenvolvimento para essa região,
portanto, devem considerar a particularidade comunitária e também as
oportunidades e riscos das atividades mais ineficientes economicamente.
Dois outros fatores têm contribuído para essa situação particular da
Chico Mendes. Em primeiro lugar, embora o governo estadual tenha
apoiado o manejo florestal comunitário não madeireiro, essa política
ainda não tem sido suficiente para igualar sua rentabilidade à da agropecuária. Em segundo, limitações ecológicas (por exemplo, densidade e
produtividade dos PFNMs) têm implicado baixos retornos econômicos
e altos custos de produção. Esses resultados certamente terão conseqüências ambientais que devem ser consideradas pelas comunidades,
por políticos e outros agentes na formulação de estratégias de desenvolvimento alternativo nessa região.
MODELO COMUNITÁRIO E CONSERVAÇÃO AMBIENTAL
O desmatamento nos regimes comunitários rurais analisados no ano
de 2005 mostrou que a extensão da área antropizada está correlacionada
à composição da renda. Na Chico Mendes, a comunidade com menor RB
anual média, ocorreu o menor percentual desmatado (8,7%) (Figura 2).
No Porto Dias e Peixoto, o percentual foi respectivamente de 13,6% e
51%. A distribuição espacial do desmatamento nessas áreas foi resultado
dos investimentos realizados pelos produtores locais em cada uma delas.
Ao mesmo tempo, a configuração espacial reflete a particularidade de
uso da terra de cada comunidade, isto é, uma combinação de diversas
estratégias produtivas conduzidas pelas famílias. Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 97
O uso da terra nas comunidades está distribuído da seguinte forma:
na comunidade Chico Mendes 1,2% da área (~ 11.600 hectares) é
utilizada para agricultura, 4,4 % (~ 42.500 hectares) para pastagem,
3,1% (30.900 hectares) encontravam-se na forma de capoeira, e a maior
parte, 91,3%, estava na forma de floresta manejada para exploração de
PFNMs. Em Porto Dias, a área florestal representou 86,5%, a área de
floresta secundária (capoeira), 1,5%, a de pastagem, 10,3%, e somente 1,7% estava ocupada por atividades agrícolas. No caso do Peixoto,
diferentemente das áreas anteriores, o desmatamento foi de 51% da
área total, seguido de 26% de área ocupada por pastagem, 14% utilizada
como área agrícola e 9%, na forma de capoeira.
Figura 2. Comparação do desmatamento em três modelos de uso da
terra em 2005, Acre, Brasil.
Área desmatada
Resex Chico Mendes
Área total: 977.000 ha
Desmatamento: 85.500 ha (8.7%)
PAE Porto Dias
Área total: 22.000 ha
Desmatamento: 2.992 ha (13,6%)
PC Peixoto
Área total: 318.000 ha
Desmatamento: 161.900 ha (51%)
A opção pelo modelo comunitário com mais efetividade para a conservação florestal deverá levar em consideração a diferença cultural das
famílias em cada uma dessas áreas. De uma perspectiva conservacionista,
a Chico Mendes foi o modelo com maior sucesso para a conservação
ambiental, todavia, os resultados econômicos mostraram que no atual 98 Estudos indígenas
padrão tecnológico a agricultura e os PFNMs são inviáveis. Em conseqüência disso, em longo prazo, o desmatamento poderá se acelerar,
pois poderá haver uma tendência dos produtores de investirem em
atividades com maior rentabilidade e maior degradação ambiental, por
exemplo, a pecuária.
Por outro lado, o Peixoto representa o tradicional modelo de ocupação fundiária na Amazônia, com maior importância econômica da
agropecuária. Porto Dias pode-se constituir em uma combinação dos
dois modelos. Mostra uma grande eficiência na conservação ambiental
e também na melhoria econômica das famílias, todavia, o baixo valor do
VES poderá ter conseqüências negativas para a conservação ambiental
em longo prazo, pois, com maior dependência de bens do mercado, a
floresta poderá perder importância para as famílias, o que poderá contribuir para um maior investimento em atividades com maior retorno
econômico e maior ação antrópica.
Francisco Kennedy Araújo de Souza
Apurinã, natural do Estado do Amazonas. É graduado em Economia pela Universidade Federal do Acre – UFAC. Cursou o mestrado no Center for Latin American
Studies da University of Florida, USA, onde se especializou em Conservação e
Desenvolvimento Tropical. A sua dissertação, Effectiveness of Extractive Reserves,
Agro-extractive Settlements, and Colonist Settlements in Southwestern Amazonia: an
Economic and Land-cover Comparison of Three Land Tenure Types in Acre, Brazil,
teve a supervisão dos professores Stephen Perz, Charles Wood e Marianne Schmink.
Durante os últimos dez anos tem liderado e colaborado com diversos programas
de conservação e desenvolvimento na Amazônia, em cooperação com várias organizações brasileiras e estrangeiras. Essas iniciativas são apoiadas por agências como a
NASA (US National Aeronautics and Space Administration), USAID (US Agency
for International Development), IDRC (International Development Research Centre),
Fundação Ford, WWF (World Wildlife Fund), MMA (Ministério do Meio Ambiente), MCT (Ministério da Ciên cia e Tecnologia) e PPG-7. É coordenador-geral de
projetos na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do
Acre – UFAC, onde gerencia três programas regionais de pesquisa e pós-graduação
em consórcio com organizações governamentais e não governamentais. Em 2007, Regimes comunitários rurais e uso da terra no Acre: uma comparação econômica 99
por meio de um Programa da CAPES, tornou-se o primeiro ex-bolsista IFP a ser
selecionado como bolsista Fulbright para doutorado pleno nos Estados Unidos,
onde cursará o Ph.D. na School of Public and Environmental Affairs na Indiana
University, sob orientação do professor Eduardo Brondizio, por meio do qual
estará também vinculado ao Anthropological Center for Training and Research on
Global Environmental Change da mesma Universidade. Ex-bolsista IFP, turma
2002. E-mail: apurinan@gmail.com
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etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro
Julio Cezar Inácio
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo elaborar o zoneamento etnoambiental das unidades da paisagem da Terra Indígena de Ligeiro – RS e
classificá-las com base nas classes de solos, geomorfologia, vegetação e
hidrografia. O diagnóstico das classes de solos identificou quatro classes
distintas. A geomorfologia, a vegetação e a hidrografia foram diagnosticadas em campo e por meio de imagem de satélite, cartas topográficas
e foram processadas no Sistema de Informações Geográficas-SIG. O
estudo da geomorfologia identificou quatro classes de declividades das
menores para as maiores altitudes. Para a vegetação, foram identificadas
duas fitofisionomias principais: floresta ombrófila mista e floresta estacional decidual. A hidrografia foi definida como cursos e corpos d’água
(banhados/lagoas). O resultado final do estudo está representado no
mapa das unidades da paisagem.
PALAVRAS-CHAVE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – ECOLOGIA – ÍNDIOS – KAINGANG102 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
As questões ambientais, em particular aquelas relacionadas à conservação da natureza, estão entre as mais críticas das últimas décadas
(Diegues, 2000). Nos últimos anos, entretanto, a ecologia de paisagem
tem apresentado uma grande aplicabilidade no diagnóstico e solução de
problemas ambientais. Por um lado, ela oferece teorias e conceitos para
entender problemas ambientais em pequena escala. Por outro, permite uma
reciprocidade entre conceito e objeto pertinente a cada escala de análise.
Esses fatores, associados ao uso de sistemas de geoinformações – SIG –,
possibilitam processar dados conceitualmente coerentes com modelos que
descrevem e explicam escalas locais, regionais e até continentais (Sanderson, Harris, 2000; Turner, Gardner, O’Neill, 2001).
No Brasil, a ecologia de paisagem tem sido cada vez mais utilizada
para dar suporte à gestão ambiental. Todavia, ainda há poucos estudos
sobre etnopaisagem, a despeito da importância etnocultural das terras
indígenas, que ocupam 11,58% do território brasileito (Menegat, 2002).
Diagnosticar os elementos estruturadores da paisagem e as formas de
uso cultural passa a ser fundamental para a gestão etno-sustentável dos
povos indígenas.
Nesse sentido, este estudo efetua um diagnóstico das unidades da
paisagem da Terra Indígena de Ligeiro. Dentro do ecossistema que
envolve essas unidades, está inserida a população indígena, que desempenha estreita relação com cada uma delas. Esse estudo descreve
sucintamente as formas de uso desenvolvidas pelos índios Kaingang, tais
como: hábitos, costumes, crenças e organização social, em consonância
com o local onde vivem, as unidades da paisagem.
A Terra Indígena de Ligeiro situa-se nos terrenos dissecados do vale
do rio Uruguai, na região de interface entre o Planalto das Araucárias
e o das Missões, que são subdomínios do Planalto Meridional, no Rio
Grande do Sul (Herrmann, Rosa, 1990). Nela, foram identificados pelo
menos três derrames de olivina-basalto intercalados por depósitos de
rochas piroclásticas (Menegat, Siviero, 2002). As características litológicas e estruturais do topo dos derrames controlaram a dissecação,
que resultou na formação de patamares estruturais superpostos em
diferentes altitudes. A esculturação desses patamares por canais fluviais
encaixados em falhas geológicas gerou vales de diferentes profundida-Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 103
des, espigões de distintos comprimentos e grau de dissecação, mesetas
e morros isolados na forma de cones.
AS ETAPAS DA PESQUISA
O estudo das unidades da paisagem e do zoneamento etnoambiental
foi elaborado em quatro etapas:
Etapa 1 – Planejamento e fundamentação: levantamento dos dados
existentes, tais como mapas, relatórios, bibliografias, e obtenção
dos materiais necessários ao desenvolvimento do estudo;
Etapa 2 – Diagnóstico de campo: diagnóstico dos meios físico (solos,
hidrografia e geomorfologia), biótico (vegetação), socioeconômico
e cultural (agricultura e artesanato) e uso e ocupação da área;
Etapa 3 – Integração e elaboração do modelo: realização de análises
integradas dos ambientes natural e socioeconômico a fim de obter
mapas derivados. O estudo possibilitou a identificação, delimita-
ção e caracterização de distintas unidades da paisagem, basea do
nos contrastes físico, biótico e socioeconômico;
Etapa 4 – Conclusão: foram apresentadas algumas propostas de
gestão e manejo de cada unidade da paisagem da área de estudo.
Levantamento pedológico
O levantamento das classes de solos desenvolveu-se em três fases:
A) Fase pré-campo: efetuada com o auxílio de cartas topográficas
do Serviço Geográfico do Exército nas escalas de 1:50.000 e
1:250.000; imagem de satélite Landsat-7 sensor TM com resolução de pixel de 30 metros e composição colorida em falsa cor
das bandas 3, 4 e 5 RGB.
B) Fase de campo: vistoria geral da área a fim de efetuar o levantamento das classes de solos. Foi coletada uma amostra composta
para cada classe de solo, sendo que cada uma das amostras foi
composta por 20 subamostras.
C) Fase pós-campo: as amostras foram encaminhadas ao Laboratório de Análises do Departamento de Solos da Faculdade de
Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para 104 Estudos indígenas
que se efetuasse a análise dos seguintes componentes do solo:
fósforo (P), potássio (K), alumínio (Al), cálcio (Ca), magnésio
(Mg), argila, pH, matéria orgânica (MO) e índice SMP. A síntese
dos resultados permitiu classificar os solos com base no Sistema
Brasileiro de Classificação de Solos da Empresa Brasileira de
Agropecuária – EMBRAPA – (1999).
Geomorfologia
O diagnóstico preliminar da geomorfologia foi realizado por meio
de fotointerpretação de imagem de satélite Land Sat TM. Em campo,
foram dispostas transecções,1
 que permitiram detalhar mais o relevo.
Para tanto, foi necessário utilizar GPS, bússola, trena e cartas topográ-
ficas nas escalas 1:50.000 e 1:250.000.
Para a classificação, foram adotados intervalos de declividade de
0-20%, 20-30%, 30-40% e declividades maiores de 40%. A partir
disso, foi elaborado um mapa que contempla as principais classes de
decli vidade, processadas, espacializadas e impressas pelo Sistema de
Informações Geográficas (SIG/Idrisi e Cartalinx).
Hidrografi a
O diagnóstico da hidrografia foi realizado com base em cartas topográficas e interpretação de imagens de satélite Landsat 7, sensor TM,
combinação das bandas 3, 4 e 5 RGB em falsa cor. Com base em Cooke
e Doornkamp (1990), foi possível classificar os rios quanto a sua morfologia e, com base em Shreve (1966), hierarquizá-los e ordená-los. Além
disso, foram feitos levantamentos em campo, onde foram observadas as
dimensões e características físicas dos canais dos cursos d’água.
Levantamento da vegetação
O procedimento inicial para o levantamento da vegetação foi desenvolvido por meio de interpretação de imagem de satélite Landsat 7, sensor TM
e composição das bandas 3, 4 e 5 RGB em falsa cor. Posteriormente, foram
1
 Operação que consiste na análise da vegetação de uma faixa contínua, alongada e estreita, que
permite obter um corte da vegetação ao longo da intersecção de um plano vertical com a superfície
da Terra.Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 105
determinadas as caracterizações florística, fitofisionômica e fitossociológica
para a secção de floresta. Para a secção de capoeira, determinou-se apenas
a florística.
O método de amostragem utilizado para a área de floresta foi o do
quadrante centrado em um ponto (Barbour, Burk, Pitts, 1987). Cada
quadrante possui área de 1m2
, e eles foram dispostos de maneira eqüidistante ao longo de transeccionais em intervalos de 10 em 10m, com
extensão de 50m para cada transecção (Figura 1).
Figura 1. Ilustração do método do quadrante centrado em um ponto.
Apenas um exemplar para cada quadrante foi amostrado, utilizando-
se dois critérios básicos para a escolha: a) o indivíduo mais próximo do
ponto central do quadrante e b) o indivíduo com PAP (Perímetro à Altura
do Peito) acima de 5cm (centímetros). Também foram registradas as
distâncias entre o ponto central e cada exemplar amostrado, além da
altura total de cada indivíduo (estimada).
A amostragem das formações de capoeira foi efetuada por meio
do método de pontos (Barbour, Burk, Pitts, 1987). Os pontos foram
distribuídos em distâncias de 2 em 2m entre si, em transeccionais com
extensão de 50m cada. Para cada exemplar localizado em cada ponto
da transecção, foi medida a altura, coletada e identificada a espécie.
Foram utilizados como material de apoio: trena, fita métrica, cartas
topográficas, GPS, bússola e jornal para preparação das exsicatas.2
2
 Fragmentos ou exemplar vegetal, dessecado e prensado, acompanhado de uma ou mais etiquetas,
das quais constam informações diversas sobre o espécime, como o nome da espécie, local e data
da coleta, nome do coletor etc., conservado em herbário para estudo.106 Estudos indígenas
Socioeconomia
Para o estudo da socioeconomia e das formas de uso cultural das
unidades da paisagem, foram utilizadas imagens de satélite e entrevistas
com membros da comunidade, bem como realizados levantamentos em
campo. O processamento final das informações obtidas dos parâmetros
avaliados foi submetido ao geoprocessamento no SIG pelos softwares
Idrisi 32, Idrisi Kilimanjaro e Cartalinx.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Utilizando a metodologia prescrita anteriormente, procedeu-se ao
levantamento dos parâmetros ambientais do meio físico, biótico e socioeconônomico, descritos a seguir. Embora as unidades da paisagem
zoneadas resultem de vários processos dinâmicos, tais como os de origem
biótica, pedológica e clima, elas são principalmente condicionadas pela
geomorfologia.
Geomorfologia e distribuição das classes de solos
A geomorfologia organiza-se em quatro patamares estruturais, denominados por algarismos arábicos de 1 a 4, em ordem crescente, das altitudes
inferiores para as superiores (Figura 2). A distribuição e associação de
quatro classes de solo – latossolo, nitossolo, cambissolo e neossolo – estão
condicionadas pelos patamares e declividade das vertentes entre eles.
O patamar 1 (P1) identifica as terras planas de menor altitude relativa
da área, em torno de 480m, e declividades variando entre 0% e 20%. Ele
é formado por depósitos sedimentares dos terraços fluviais do vale do rio
Ligeiro e segmento final do rio dos Índios. Esse patamar apresenta o cambissolo como principal classe de solo, que se distribui em terreno plano
a suave-ondulado, com seqüência de horizontes A/Bi ou O/A/Bi,3
 sobre
depósitos aluviais e fluviais dispostos ao longo das margens dos cursos de
água. Essa unidade possui excelente aptidão para a atividade agrícola e é
ocupada com o cultivo de plantas anuais de verão e inverno, tais como a
3
 São as camadas do solo que se diferenciam entre si, num perfil em profundidade. São definidos
principalmente pela sua composição mineralógica e coloração, entre outros atributos.Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 107
soja (Glycine max) e o trigo (Triticum aestivum) respectivamente, em
sistema de plantio intensivo. Apresenta elevado grau de preservação das
matas, principalmente das matas ciliares, que são exploradas apenas com
atividades que não causam impacto ao meio. Nesse patamar, também é
desenvolvida a atividade agrícola extensiva. Além desta, esse patamar é
explorado culturalmente pelos Kaingang, principalmente por meio da coleta de matéria-prima para confecção de artesanato típico e alimentação.
Algumas espécies de bambu, tais como Merostachys burchelli (Manso)
e Bambusa trinii (Nees ex Rupr.), da família das poáceas, denominadas
vãn em língua kaingang, são muito utilizadas na confecção de cestarias.
Alguns frutos da família das mirtáceas são utilizados na alimentação,
tais como a Eugenia uniflora (Linn.), jymi, em kaingang. Outra espécie
de grande importância cultural da família das apiáceas é o Eryngium
pandanifolium (Cham. & Schlecht), fyj, em kaingang, muito utilizado
na culinária tradicional kaingang (Backes, Nardino, 1999).
Figura 2. Seção esquemática Oeste-Leste da geomorfologia e distribuição
das classes de solos e patamares da Terra Indígena de Ligeiro
Fonte: Inácio et al., 2003.
O patamar 2 (P2) localiza-se em altitudes entre 480m a 540m e representa as vertentes ou terrenos com pouca continuidade lateral que
ocorrem como degraus na encosta do vale do rio Ligeiro, onde as declividades variam de 20% a 30%, raramente ultrapassando os 40% (Figura 3).
Nesses terrenos, distribui-se a associação das classes cambissolo/neossolo,
que também ocorre na vertente entre os patamares 3 e 2 e entre esses o
patamar 1. Exibe, entre outras, a seqüência de horizontes A/R, A/C/R,
A ou H/Bi/C em terreno ondulado a forte-ondulado, onde o sistema de 108 Estudos indígenas
cultivo mais utilizado é o extensivo, para a produção de alimentos de subsistência como o feijão (Phaseolus vulgaris). Estão presentes nesse patamar
algumas nascentes que são afluentes do rio Ligeiro e do rio dos Índios, com
predominância da vegetação tipo floresta estacional decidual.4
 Nessa área,
além da atividade agrícola, são desenvolvidas eventualmente atividades
culturais, tais como a caça e a coleta de frutos.
Figura 3. Mapa das declividades da Terra Indígena de Ligeiro.
4
 Vegetação caracterizada por duas estações climáticas bem demarcadas. Na região sul, por exemplo,
no inverno as árvores perdem suas folhas (decíduas), e, no verão, rebrotam.Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 109
O patamar 3 (P3), o mais extenso, situa-se na altitude média de
620m. Esse patamar estrutural é resultante da dissecação do vale do
Ligeiro e marca o limite entre derrames de rochas vulcânicas. Quando
ocorre na vertente do Ligeiro, possui a forma de pequenos espigões
orientados na direção nordeste (NE), ladeados por arroios com extensão
máxima de 8km. Quando ocorre na vertente do rio dos Índios, o terreno
é suave ondulado, pois os talvegues dos afluentes desse rio estão menos
dissecados do que os do rio Ligeiro. Nesses terrenos suave-ondulados,
emergem isoladamente os morros testemunhos com feições mesiformes
e coniformes, sendo o Morro Branco o mais alto da área, com 730m.
Nesse patamar, ocorrem as classes de latossolo e nitossolo com excelente
aptidão agrícola, que apresentam horizontes O/A/Bl/C/D/E/R e O/A/
Bn/C/D/E/R, respectivamente, com o cultivo baseando-se no sistema
de plantio direto (intensivo).
Nas áreas mais altas, altitudes de até 730m, está o patamar 4 (P4), que
marca a superfície de topo dos morros isolados e dos espigões orien tados
a nordeste. O cambissolo ocorre no patamar 4, em terreno ondulado
a suave ondulado, com horizontes A/Bi/C ou R/R, apresentando boa
aptidão agrícola, porém, sendo pouco cultivado.
Vegetação
De acordo com a classificação fitogeográfica de Rizzini (1997), a área
de estudo está inserida na formação vegetacional conhecida como Complexo dos Pinhais (mata atlântica), com espécies aciculadas e latifoliadas.
Apresenta um extrato superior formado pela Araucária angustifolia
(pinheiro brasileiro). Reitz, Klein, Reis (1983) acrescentam que ela
possui também um denso sub-bosque, constituído principalmente por
lauráceas, tais como canela preta (Nectandra megapotamica), canela
branca (Nectandra rigida), canela guaicá (Ocotea puberula); mirtáceas, tais como guamirins (Myrcia bombycina), camboim (Myrceugenia
euosma), araçazeiro (Myrciantes gigantea); aqüifoliáceas, tais como
erva-mate (Ilex paraguariensis), caúnas (Ilex dumosa, I. brevicuspis, I.
theezans); sapindáceas, tal como camboatã-vermelho (Cupania vernalis);
mimosácea, tal como o angico-vermelho (Parapiptadenia rigida). 110 Estudos indígenas
Vegetação arbórea (floresta) – A Tabela 1 destaca três táxons
(espécies) que foram mais significativos em uma das transecções de
amostragem (transecção sul): a Nectandra megapotamica apresenta altos
valores em todos os parâmetros avaliados em relação aos demais táxons,
principalmente o índice de valor de importância (IVI), que expressa
a importância ecológica do táxon no ambiente e que foi de 76,61 %.
Tabela 1. Parâmetros fi tossociológicos das espécies arbóreas, apenas para
a transecção sul, onde: ni-número de indivíduos.
Espécies ni DRi UAi FAi FRi ABi (m) DORi IVI
Albizia sp 1 1.39 1 5.56 1.6 0.016 0.48 3.50
Allophylus edulis 3 4.17 3 16.67 4.9 0.038 1.12 10.20
Araucaria angustifolia 4 5.56 4 22.22 6.6 0.414 12.24 24.35
Ateleia glazioviana 1 1.39 1 5.56 1.6 0.006 0.17 3.20
Campomanesia xanthocarpa 2 2.78 2 11.11 3.3 0.089 2.63 8.69
Campomanesia guazumifolia 1 1.39 1 5.56 1.6 0.012 0.36 3.39
Celtis sp. 1 1.39 1 5.56 1.6 0.018 0.52 3.55
Cupania vernalis 10 13.89 9 50.00 15 0.391 11.54 40.18
Desconhecida 1 1 1.39 1 5.56 1.6 0.007 0.20 3.23
Desconhecida 2 1 1.39 1 5.56 1.6 0.010 0.29 3.32
Diatenopteryx sorbifolia 2 2.78 2 11.11 3.3 0.231 6.83 12.88
Eugenia piriformis 1 1.39 1 5.56 1.6 0.031 0.90 3.93
Eugenia sp 1 1.39 1 5.56 1.6 0.007 0.21 3.24
Lithrea brasiliensis 3 4.17 1 5.56 1.6 0.112 3.30 9.10
Lonchocarpus sp 1 1.39 1 5.56 1.6 0.005 0.15 3.17
Luehea divaricata 1 1.39 1 5.56 1.6 0.052 1.54 4.57
Machaerium sp 5 6.94 2 11.11 3.3 0.050 1.47 11.69
Myrcianthes gigantea 1 1.39 1 5.56 1.6 0.026 0.76 3.79
Myrciaria sp 2 2.78 2 11.11 3.3 0.015 0.43 6.49
Nectandra grandifl ora 1 1.39 1 5.56 1.6 0.011 0.32 3.35
Nectandra lanceolata 2 2.78 2 11.11 3.3 0.090 2.65 8.71
Nectandra megapotamica 16 22.22 11 61.11 18 1.231 36.36 76.61
Nectandra rigida 2 2.78 2 11.11 3.3 0.083 2.44 8.49
Parapiptadenia rigida 3 4.17 3 16.67 4.9 0.040 1.19 10.28
Patagonula americana 2 2.78 2 11.11 3.3 0.369 10.90 16.95
Paullinia cupana 2 2.78 2 11.11 3.3 0.010 0.29 6.35
Rollinia sp 1 1.39 1 5.56 1.6 0.008 0.23 3.25
Zanthoxylum rhoifolium 1 1.39 1 5.56 1.6 0.016 0.48 3.50
TOTAL 72 338.89 3.385 100 299.98Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 111
OBS: (1) A densidade relativa (DRi), que é expressa em porcentagem, é a relação entre o número
de indivíduos de um determinado táxon (espécie) e o número de indivíduo de todos os táxons. (2) A
freqüência absoluta (FAi) expressa o percentual calculado, considerando o número de parcelas em que
determinado táxon ocorre e o número total de parcelas amostradas. (3) A freqüência relativa (FRi) é
o valor percentual calculado para FAi de cada táxon em relação à freqüência total, que é o somatório
de todos as FAis. (4) Área basal (ABi) é a medida da circunferência de cada táxon. Essa medida é
também conhecida como PAP (perímetro à altura do peito). (5) A dominância relativa (DORi) foi
calculada através de Do[O]T / Do[O}Ai 100 Do[O]Rt = , onde DoAt é a dominância absoluta do
táxon t e DoT a dominância total, considerando o somatório das DaAt de todos os táxons. O índice
de valor de importância (IVI) teoricamente expressa a importância ecológica do táxon no ambiente.
A Cupania vernalis também obteve valores altos, principalmente
de freqüência absoluta (FAi), com 50,00%, e índice de valor de importância (IVI) de 40,18%. A Araucária angustifolia (pinheiro brasileiro)
possui alguns valores baixos, tais como o de densidade relativa (DRi) e
de freqüência relativa (FRi); no entanto, a dominância relativa (DORi)
é alta (12,24 %); isso se deve ao fato de a área basal da araucária ser
sempre alta, mesmo com a presença de poucos espécimes na transecção.
A Tabela 2 apresenta quatro táxons que se destacam entre as demais:
a Myrciaria sp, com valores altos em todos os parâmetros avaliados, é
a mais significativa com valor de índice de valor de importância (IVI)
de 71,27 %, seguido pela Paulínia cupana (41,27%), Cupania vernalis
(40,20%) e Nectandra lanceolata (39,15%).
Tabela 2. Parâmetros fi tossociológicos das espécies arbóreas, apenas para
a transecção norte.
Espécies ni DRi UAi FAi FRi ABi (m) DORi IVI
Allophylus edulis 2 2.778 1 5.556 1.5 0.012 2.45 10.79
Ateleia glazioviana 2 2.778 2 11.11 3 0.014 2.97 16.86
Cabrela canjerana 1 1.389 1 5.556 1.5 0.010 2.14 9.08
Cedrela fi ssilis 1 1.389 1 5.556 1.5 0.013 2.78 9.72
Celtis sp. 3 4.167 3 16.67 4.6 0.016 3.27 24.10
Cupania vernalis 5 6.944 5 27.78 7.6 0.026 5.47 40.20
Erythroxylum sp 1 1.389 1 5.556 1.5 0.005 1.12 8.06
Eugenia pyriformis 1 1.389 1 5.556 1.5 0.010 2.02 8.97
Eugenia unifl ora 3 4.167 3 16.67 4.6 0.012 2.53 23.36
Ilex cleinii 3 4.167 3 16.67 4.6 0.015 3.12 23.95
Ilex dumosa 3 4.167 3 16.67 4.6 0.015 3.02 23.85
Ilex paraguariensis 2 2.778 2 11.11 3 0.013 2.64 16.53
Lithrea brasiliensis 2 2.778 2 11.11 3 0.012 2.59 16.48112 Estudos indígenas
Espécies ni DRi UAi FAi FRi ABi (m) DORi IVI
Lonchocarpus sp 2 2.778 2 11.11 3 0.011 2.24 16.12
Luehea divaricata 1 1.389 1 5.556 1.5 0.020 4.13 11.07
Myrcianthes gigantea 4 5.556 4 22.22 6.1 0.024 4.94 32.72
Myrcianthes pungens 4 5.556 3 16.67 4.6 0.035 7.33 29.55
Myrciaria sp 11 15.28 8 44.44 12 0.056 11.55 71.27
Nectandra grandifl ora 2 2.778 2 11.11 3 0.015 3.07 16.96
Nectandra lanceolata 5 6.944 4 22.22 6.1 0.048 9.98 39.15
Nectandra megapotamica 3 4.167 3 16.67 4.6 0.033 6.82 27.66
Parapiptadenia rigida 2 2.778 2 11.11 3 0.014 2.87 16.76
Paullinia cupana 5 6.944 5 27.78 7.6 0.032 6.54 41.27
Rollinia sp 1 1.389 1 5.556 1.5 0.005 1.12 8.06
Schinus terebinthifolius 1 1.389 1 5.556 1.5 0.004 0.87 7.82
Sebastiania commersoniana 2 2.778 2 11.11 3 0.011 2.34 16.23
TOTAL 72 366.7 0.482 100 567
Vegetação herbácea (capoeira) – A capoeira é uma comunidade
arbustivo-arbórea que ocorre em locais originalmente florestais, desmatados e posteriormente abandonados. A fase sucessional, ou regenerativa natural, varia consideravelmente conforme a proximidade com
o fragmento florestal remanescente e outras condições ambientais,
determinando, por conseguinte, a estrutura e a composição florística
desse estádio vegetacional.
O Quadro 1 exemplifica claramente a pouca diversidade de espécies
encontradas nas áreas de capoeira. Devido à grande dificuldade para
identificar as espécies que ocorrem nas capoeiras, principalmente as
gramíneas, muitas amostras coletadas foram classificadas apenas no que
diz respeito à família. A família de maior expressão foi a Asteraceae,
seguida pela Fabaceae. Para a secção de capoeira, não foi possível elaborar o gráfico de suficiência de amostragem devido à dificuldade na
identificação das espécies; portanto, em estudos futuros, os resultados
podem ser aperfeiçoados com trabalhos de coleta e identificação.Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 113
Quadro 1. Relação de espécies e respectivas famílias para a transecção
sul da secção capoeira.
Espécie Família Espécie Família
1 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 27 Cf Baccharidastrum Asteraceae
2 Cf Baccharidastrum Asteraceae 28 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae
3 Erianthus trinii Hack Poaceae 29 Erianthus trinii Hack Poaceae
4 Erianthus trinii Hack Poaceae 30 Asteraceae Asteraceae
5 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 31 Asteraceae Asteraceae
6 Andropogon sp Poaceae 32 Cf Eupatórium Asteraceae
7 Cf Eupatórium Asteraceae 33 Cf Baccharidastrum Asteraceae
8 Andropogon sp Poaceae 34 Asteraceae Asteraceae
9 Pterocaolum sp Asteraceae 35 Pteridium aquinifolium Kunh var Pteridaceae
10 Erianthus trinii Hack Poaceae 36 Erianthus trinii Hack Poaceae
11 Amarantaceae Amarantaceae 37 Pteridium aquinifolium Kunh var Pteridaceae
12 Asteraceae Asteraceae 38 Atteleia glazioviana Baill Fabaceae
13 Lonchocarpus sp Fabaceae 39 Pteridium sp Pteridaceae
14 Fabaceae Fabaceae 40 Pteridium sp Pteridaceae
15 Cf Baccharidastrum Asteraceae 41 Pteridium sp Pteridaceae
16 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 42 Pteridium sp Pteridaceae
17 Fabaceae Fabaceae 43 Pteridium sp Pteridaceae
18 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 44 Pteridium sp Pteridaceae
19 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 45 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae
20 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 46 Pteridium aquinifolium Kunh var Pteridaceae
21 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae 47 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae
22 Asteraceae Asteraceae 48 Pteridium aquinifolium Kunh var Pteridaceae
23 Baccharis sp Asteraceae 49 Pteridium aquinifolium Kunh var Pteridaceae
24 Cf Baccharidastrum Asteraceae 50 Ateleia glazioviana Baill Fabaceae
25 Cf Baccharidastrum Asteraceae 51 Asteraceae Asteraceae
26 Baccharis dracunculifolia DC Asteraceae 52 Cf Baccharidastrum Asteraceae
Hidrografi a
Os cursos d’água compreendem canais fluviais que não ultrapassam 8km de extensão, com exceção do rio Ligeiro. Este apresenta
uma morfologia que compreende, de acordo com Leeder (1999), um
grau de sinuosidade > 1,26, grau de entrelaçamento < 5% e grau de
anastamosonamento também < 5%. Isso o caracteriza como um rio
meandrante encaixado, com leito cascalhoso a rochoso, onde as barras
arenosas longitudinais estão ausentes, bem como venulações laterais. 114 Estudos indígenas
Vários afluentes do rio Ligeiro nascem dentro da própria Terra Indígena
e deságuam nele. A hidrografia foi definida como um dos mais importantes componentes das unidades etnoambientais, devido a sua grande
importância cultural (caça, pesca, banho, rituais).
Socioeconomia
As principais atividades que compõem a base econômica referem -se
à produção agrícola de grãos e à produção e comercialização de artesanatos. Há também o comércio sazonal de produtos silvestres como
o pinhão. As culturas mais utilizadas nessa unidade, que ocupam as
maiores áreas da Terra Indígena, são a soja (Glycine max), o milho (Zea
mays), o trigo (Triticum aestivum) e a cevada (Hordeum sativum).
O artesanato indígena, embora não tendo uma geração de renda tão
elevada quanto a atividade agrícola, é considerado de fundamental
importância para a economia. Devido a sua integralidade no mercado,
pode ser produzido e comercializado o ano todo, sem restrição de
clima ou outros fatores ambientais aos quais a atividade agrícola, por
exemplo, está sujeita.
Além da atividade agrícola, e do artesanato, muitas famílias indí-
genas sobrevivem do trabalho vinculado a órgãos públicos das esferas
municipais, estadual e federal. Em geral, são profissionais das áreas da
saúde e da educa ção, tais como professor bilíngüe e agente comunitário
de saúde. Há também os que sobrevivem da venda de mão-de-obra,
trabalhando como diaristas fora da Terra Indígena, geralmente para os
agricultores do entorno.
Zoneamento etnoambiental das unidades da paisagem
De acordo com os dados da geomorfologia, classes de solos, forma-
ções vegetacionais, hidrografia e informações da socioeconomia descrita
acima, foi possível determinar quatro principais unidades da paisagem
da Terra Indígena de Ligeiro (Figura 4), que são: a) unidade da paisagem de uso agrícola; b) unidade da paisagem floresta ombrófila mista;
c) unidade da paisagem floresta estacional decidual e d) unidade da
paisagem hidrografia (corpos e cursos d’água).Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 115
Figura 4. Mapa das unidades da paisagem da Terra Indígena de Ligeiro.
a) Unidade da paisagem de uso agrícola:Essa unidade ocupa a maior
parte do patamar 3 (P3), o mais extenso, aproximadamente
1.166ha (hectares), cerca de 25,79 % da área total da Terra Indígena. As áreas de cultivo (épy, em língua kaingang) são desenvolvidas
em dois níveis diferentes, classificadas em função da sua escala
de produção: o cultivo intensivo, cuja produção é integralmente
comercializada (escala comercial), e o cultivo extensivo, cuja produção geralmente é destinada ao consumo das próprias famílias
produtoras (cultivo de subsistência).
Nas áreas com cultivo extensivo ou de subsistência, são produzidos principalmente feijão (Phaseolus vulgaris L. [rãgró]), mandioca
(Manihot esculenta [manioca]), milho (Zea mays L. [gãr]), moranga
(Cucurbita sp. [pého]), batata-doce (Ipomoea batatas [pén´ó]) e amen-116 Estudos indígenas
doim (Arachis hypogaea L. [minui]). Já nos de cultivo intensivo, são
produzidos em maior escala a soja (Glycine max) e o milho (Zea mays),
no período de verão, e o trigo (Triticum aestivum) e a cevada (Hordeum
sativum), no período de inverno.
b) Unidade da paisagem floresta ombrófila mista:A cobertura vegetal
nativa é a que ocupa a maior extensão areal da Terra Indígena de
Ligeiro, cerca de 3.251,9ha (hectares), aproximadamente 71,92%
da área total. A fitofisionomia da área de estudo faz parte do bioma
Mata Atlântica, tendo sido classificada de acordo com o projeto
RADAM (Brasil,1986) e Pillar e Quadros (1997), e dividida em
duas categorias principais: a) floresta estacional decidual; b) floresta ombrófila mista. Ambas somam uma área de 2.942,92ha,
cerca de 65,1%. Além dessas, ocorrem áreas com “capoeira”, com
308,98ha, equivalente a 6,8% da área total.
A unidade da paisagem floresta ombrófila mista, também chamada
floresta com araucária, ocorre em altitudes elevadas em Ligeiro, e é
predominante entre as cotas de 580m a 730m, no patamar 4 (P4).
Constitui o andar superior da floresta, com sub-bosque bastante denso.
É assim classificada devido a sua composição florística, pois contém
um dos elementos culturais mais importantes para o povo Kaingang
da Terra Indígena de Ligeiro, denominado por eles de fág, a Araucaria
angustifólia, cuja semente fornece o pinhão, uma alimentação de extrema importância, principalmente para as crianças, devido ao seu alto
valor nutricional. Durante a estação de inverno, período de sua coleta, os
indígenas também comercializam o excedente, que acaba por se tornar
uma fonte de renda sazonal para as famílias indígenas.
c) Unidade da paisagem floresta estacional decidual:A área ocupada por
essa unidade estende-se desde os patamares em menores altitudes
como o P1 e P2, até os patamares mais elevados P3 e P4. Ocupa
principalmente locais de encostas e vertentes nas dissecações do
vale do rio Ligeiro em declividades íngremes, onde predominam
os solos mais rasos (neossolos). Em solos mais desenvolvidos (latossolos e nitossolos) e relevo pouco ondulado, essa formação é
mais esparsa, devido à grande fragmentação sofrida ao longo do
tempo em função da expansão da atividade agrícola e da extração
madeireira. Apesar da fragmentação das áreas com floresta estacional decidual, a floresta apresenta uma boa conectividade entre Unidades da paisagem: um estudo etnoecológico da Terra Indígena de Ligeiro 117
os fragmentos, pelos corredores, garantindo, dessa forma, o bom
desenvolvimento das funcionalidades ecológicas desse ecossistema.
O uso cultural dessa unidade pelos indígenas dá-se por meio da
coleta de matéria-prima para a confecção de artesanatos e a prática
da caça e coleta de frutas silvestres para alimentação.
d) Unidade da paisagem hidrografia: A hidrografia inclui banhados e cursos d’água, que ocupam aproximadamente 102,17ha, cerca de 2,2% da
área total. Constituem uma das mais importantes unidades de paisagem devido à importância cultural para os índios. Os banhados são
pequenas áreas (corpos d’água) que ocorrem geralmen te próximas
ou junto às áreas de nascentes de cursos d’água. Possuem características muito peculiares, apresentando solos hidromórficos,5
 e
ocorrem em locais com relevo plano. Essas áreas são de essencial
importância cultural para os Kaingang devido à ocorrência de
espécies vegetais como o eryngiun [fyj] e animais, muito utilizadas
principalmente na culinária e na medicina tradicional indígena.
Os banhados e os rios, além de fornecer a água, elemento vital ao
homem, possibilitam desenvolver atividade cultural tal como a pesca.
Essa atividade é feita de forma artesanal, na qual é utilizado um artefato
confeccionado com bambu pelos Kaingang de Ligeiro, denominado pãrj,
uma espécie de armadilha utilizada para capturar os peixes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento etno-sustentável da Terra Indígena de Ligeiro requer
um adequado conhecimento do solo, suas restrições e potencialidades, e
da cobertura vegetal, cujas características e distribuição são controladas
pela geomorfologia. Além disso, esse conhecimento deve levar em conta
a importância de preservar os costumes da cultura Kaingang e o adequado
manejo das unidades da paisagem. O diálogo cultural deve ser a base para
o desenvolvimento e autogestão, de sorte que não haja apenas um simples
repasse de informações, mas também o respeito à cultura indígena quando
da discussão dos problemas ambientais por eles enfrentados. Embora a área
5
 Solos com drenagem natural deficiente, que concentram grande quantidade de água em seu perfil.118 Estudos indígenas
estudada apresente mais cobertura vegetal do que as áreas do seu entorno,
como indicam a análise da imagem de satélite e o levantamento de campo,
mesmo assim persistem problemas ambientais, resultantes, por exemplo,
de práticas inadequadas de manejo, principalmente da atividade agrícola
devido ao uso excessivo de agroquímicos.
Julio Cezar Inácio
Kaingang, natural de Tapejara – RS. Graduado em Agronomia pela Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. Mestre em Ecologia
pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS. A sua dissertação, Zoneamento etnoambiental da terra indígena
de Ligeiro: um estudo com base na ecologia de paisagem, teve como orientadora a
professora Maria Luiza Porto, Ph.D em Ecologia do Programa de Pós-graduação
em Ecologia, Laboratório de Ecologia de Paisagem, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é professor das disciplinas Culturas
Anuais e Topografia no Curso Técnico de Agropecuária do Centro Técnico La Salle
– Xanxerê – SC e também integra o curso de pós-graduação em Agronegócios da
Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atua como engenheiro agrônomo no Projeto Microbacias da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa
Catarina – EPAGRI – e desenvolve trabalho em terra indígena Xapecó, em Ipuaçu
– SC. É presidente do Warã-Instituto Indígena Brasileiro, com sede em Brasília.
Atua em defesa dos direitos indígenas em nível nacional e internacional, inclusive
com participação garantida em todas as sessões do Fórum da ONU. Ex-bolsista
IFP, turma 2002. E-mail: inacio.julio@hotmail.com, julioinacio@uneagro.com.br
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Maria das Dores de Oliveira
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar, em linhas gerais, o nosso trabalho de pesquisa com a língua ofayé, uma língua indígena brasileira,
falada por índios de mesma denominação – os Ofayé. Do ponto de vista
lingüístico, a descrição a que nos propomos enfoca a fonologia e a gramática da língua (morfologia e sintaxe). Além da descrição sob o ponto
de vista lingüístico, estamos também contribuindo para a elaboração de
materiais didáticos e paradidáticos para alfabetização e ensino da língua,
até há bem pouco tempo considerada extinta.
PALAVRAS-CHAVE
ÍNDIOS – OFAYÉ – FONOLOGIA – GRAMÁTICA
INTRODUÇÃO
Várias razões nos motivaram a realização deste trabalho, mas a principal
delas é o nosso compromisso político e étnico com a população indígena
brasileira de modo geral e, mais particularmente, com os Ofayé, para 122 Estudos indígenas
quem a pesquisa foi direcionada. O compromisso político é em razão de
nosso envolvimento profissional com a educação escolar indígena e por
partilharmos das mesmas perspectivas de luta e ideais de justiça dos povos
indígenas na busca pela autonomia, pelo reconhecimento da diversidade
cultural, lingüística e histórica de cada povo. Trata-se também de um
compromisso étnico em razão de nosso pertencimento ao povo Pankararu.
Quando iniciamos o projeto de pesquisa, não havíamos definido
exatamente qual povo pesquisar, mas alguns critérios já estavam bem
delimitados para o trabalho: seria a descrição de uma língua indígena
brasileira com pouco ou nenhum estudo prévio e que estivesse ameaçada de extinção. A idéia era documentar a língua, colaborando de
algum modo para a sua sobrevivência ao fornecer subsídios aos seus
usuários para que refletissem sobre a sua manutenção ou revitalização
e ajudá-los na elaboração de materiais didáticos com vistas ao fortalecimento e prestígio da língua na comunidade de fala.
A escolha da língua ofayé deu-se quando participamos de um encontro
de técnicos da educação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),1
 em
Brasília, em 2001. Nesse evento, pudemos conhecer e conversar com pessoas que trabalham com povos indígenas do Brasil inteiro, inclusive com
os técnicos que trabalham com os Ofayé. Eles relataram a fragilidade do
grupo e chamaram a atenção para a necessidade de trabalhos de pesquisa
com a língua. A partir daí, procuramos saber mais detalhes sobre o povo,
localização, falantes, acesso e possibilidades de entendimento com os Ofayé,
a fim de apresentarmos uma proposta de pesquisa para a descrição da língua.
Tivemos um primeiro contato com o cacique por telefone e combinamos
uma visita à comunidade para apresentar nossa proposta de trabalho. Tivemos uma boa receptividade na comunidade e, a partir dessa visita, criamos
laços e nos organizamos formalmente para a pesquisa de campo.
CONHECENDO OS OFAYÉ
Os índios conhecidos historicamente como Ofayé ou Ofayé-Xavante
estão localizados no município de Brasilândia, Mato Grosso do Sul. Na
literatura sobre os Ofayé, encontramos a designação de “povo do mel”,
1
 Fazemos parte do quadro de professores dessa instituição governamental.Ofayé, a língua do povo do mel 123
que remete ao fato de esses índios terem sido, em uma época em que
ainda viviam isolados, grandes coletores de mel. Na língua, há uma
enorme quantidade de termos relacionados a esse campo semântico.
O genocídio praticado contra os Ofayé resultou numa depopulação de
grandes proporções. De acordo com Ribeiro (1986), no primeiro contato
oficial desses índios com o General Rondon, em 1903, a população de
Ofayé era estimada em dois mil indivíduos. Por volta da década de 1970,
os Ofayé estavam reduzidos a pouco mais de uma dezena de indivíduos. Essa substancial redução contribui para colocá-los na lista de índios
extintos e, portanto, esquecidos pelos órgãos oficiais por mais de duas
décadas. Entretanto, não foi o que aconteceu. Apesar de expropriados
de suas terras, ignorados no cenário nacional, entregues à própria sorte
e vivendo em circunstâncias extremamente adversas, permaneceram
unidos por um laço comum: a identidade étnica.
Atualmente, os Ofayé vivem em uma área de 1.144 hectares, ad -
quirida com os recursos de indenização da CESP (Companhia Energé-
tica de São Paulo), em razão da inundação de suas terras tradicionais
decorrente da construção da Hidrelétrica de Porto Primavera, atualmente Hidrelétrica Engenheiro Sergio Motta (Dutra, 1996). Na
aldeia, vivem 75 indivíduos, distribuídos em 23 famílias. Desse total,
apenas 46 são Ofayé. Os demais são índios de outras etnias (Guarani -
Nhandevá e Guarani-Kaiwá) e não índios, todos vindos de casamentos
interétnicos.
ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Teórica e metodologicamente, o nosso trabalho está fundamentado
na literatura existente sobre pesquisa de campo lingüístico, descrição e
análise de línguas ágrafas como Payne (1997), Samarin (1967), Whaley
(1997), Museu Nacional (1965).
Para a descrição fonológica, especialmente no que diz respeito aos
processos de realização de fonemas, utilizamos os conceitos da fonologia
gerativa, principalmente a partir de Kenstowicz (1994), mas também
utilizamos os sistemas de traços propostos por Chomsky e Halle (1968),
com algumas modificações propostas por Clements (1989). Na descrição
gramatical, adotamos uma perspectiva tipológico-funcional com base em 124 Estudos indígenas
Dixon (1990 e 1999), Comrie (1989), Shopen (1985), Givón (1984,
1990), Van Valin (2001), Spencer (1991), entre outros.
Nosso trabalho na comunidade Ofayé desenvolveu-se durante cinco
viagens à aldeia. Na primeira, como já dissemos, fomos apresentar o
projeto de pesquisa para a comunidade. Depois, retornávamos quando
era necessário coletar dados para a descrição da língua. O período mais
longo de permanência entre os Ofayé foi de dois meses e meio. A proposta era conhecer sua realidade e compartilhá-la, a fim de entendermos
um pouco o povo e suas características socioculturais.
A coleta de dados deu-se por meio de gravação de listas de palavras,
baseadas nos questionários do SIL (Summer Institute of Linguistics)
e do Museu do Pará Emílio Goeldi, das listas de Swadesh e de outras
questões de livre escolha, relevantes para resolver os problemas que
surgiam à medida que a análise avançava. Gravamos ainda pequenos
textos relacionados ao cotidiano da comunidade e à história do grupo.
Tivemos três informantes mais diretos, mas sempre recorríamos a outros falantes para testarmos nossos conhecimentos acerca da língua. As
gravações foram feitas em MD (Mini Disc), com transcrição simultânea
dos dados.
Segundo classificação de Rodrigues (1986), o ofayé é uma língua
isolada que pertence ao tronco lingüístico macro-jê. É a única representante da família lingüística ofayé (Rodrigues, 2000). Atualmente, é
falada por apenas 11 indivíduos, com idades que vão de 19 a 74 anos.
Por ser um grupo bastante reduzido de falantes, a língua é considerada
como fortemente ameaçada de extinção.
O enfoque que damos à língua é essencialmente descritivo. A nossa
maior preocupação ao tentarmos descrevê-la, embora seja este um trabalho acadêmico – e por isso, principalmente na fonologia, há algumas
tentativas de formalização –, é a de elaborar um texto que também
possa ser lido pelos índios Ofayé.
A FONOLOGIA E A GRAMÁTICA OFAYÉ
Na análise da fonologia da língua, descrevemos os sons e apresentamos os inventários de fonemas, consoantes e vogais, baseando-nos em
contrastes e distribuição. Discutimos a estrutura da sílaba fonética e
fonológica e alguns processos de realização de fonemas, além de darmos Ofayé, a língua do povo do mel 125
uma descrição sucinta de algumas alomorfias e tecermos breves considerações sobre acento e tom.
Definimos o padrão silábico da língua como sendo (C)(C)V(C). Há
restrições com relação a que consoantes podem ocupar a posição C1
em onset silábico inicial de palavra. Em todas as posições na palavra,
a posição C2 em onset só pode ser ocupada pelo tep []. Do ponto de
vista fonológico, a posição de coda pode ser preenchida apenas pela
nasal coronal [n] e pelas aproximantes [w] e [j].
Há uma série de itens lexicais na língua que parecem demonstrar
o valor contrastivo da duração no sistema de vogais ofayé. Entretanto,
devemos observar que, em ofayé, vogais longas só ocorrem em fronteira
de morfema ou de palavra. Por isso, tendo observado uma série de casos
de alongamento de vogal, propusemos que a vogal longa é claramente
um alongamento compensatório causado pela perda de uma sílaba na
fronteira de morfemas ou na fronteira de palavra. No exemplo abaixo, a
vogal longa que aparece no final da forma singular pode ser considerada
o resultado de um alongamento compensatório, já que é possível sua
recuperação na forma diminutivo singular.
Assim, dos aspectos supra-segmentais, vimos que a duração não é
fonológica em Ofayé. Também o tom não é usado distintivamente na
língua. Quando testado experimentalmente, o tom, no nível da palavra
fonológica, mantém-se constantemente nivelado. Raros picos de altura
são mais o resultado de certa ênfase por parte do falante do que uma
modificação predizível propriamente dita.
O acento é fixo. Há mais intensidade sempre na primeira sílaba
da palavra fonológica, em conjunção com uma leve subida do pitch.
A diferença entre uma sílaba acentuada e uma sílaba não-acentuada é
mínima. Nos nossos registros, foram encontradas palavras de até cinco
sílabas. Em todas, o acento recai sobre a primeira sílaba da esquerda.
Isso posto, parece não haver muito o que dizer sobre acento nessa
língua. Tanto nomes como verbos mostraram o mesmo comportamento
quanto ao padrão acentual. Podemos dizer, portanto, que o ofayé é uma 126 Estudos indígenas
língua de pés livres, ou seja, uma língua em que há apenas um acento
por palavra e que coloca o núcleo acentuado na sílaba inicial.
Morfologicamente, o nome caracteriza-se pelo recebimento de prefixos de posse, sufixos derivativos – aumentativo e diminutivo – e um
sufixo flexional –, número. De acordo como tipo de marcação de posse
que o nome aceite, pode ser dividido em três subclasses:
a) nomes inalienavelmente possuíveis, que são, basicamente, termos
de parentesco e partes do corpo. Exemplos (04) e (05);
b) nomes alienavelmente possuíveis, como objetos, animais e plantas.
Exemplos (06), (07) e (08);
c) nomes não possuíveis, como seres da natureza, acidentes geográ-
ficos e outros. Exemplos em (09).
A distinção morfológica no sistema de posse é muito sutil, marcada
mais precisamente na primeira pessoa do singular – // e /a/ –, respectivamente. Nas demais pessoas, o que caracteriza inalienabilidade
versus alienabilidade é muito mais a obrigatoriedade versus a não obrigatoriedade de uma marca de possuidor. Além dessas marcas de posse, que
separam as classes de nomes em Ofayé, há ainda uma marca de posse
enfática /-/. Exemplo (07). Essa última divisão parece ser estabelecida
cultural2
 ou discursivamente.
2
 Deve-se notar que, entre os Ofayé, há ainda um sistema econômico em que a posse da propriedade é coletiva. Assim, uma parte de terra, o gado, a criação de peixe, são bens comuns a todos
os membros da comunidade. Entretanto, é possível para um indivíduo do grupo adquirir um bem
próprio, com o seu empenho particular.Ofayé, a língua do povo do mel 127
Embora a distinção de gênero não seja sistemática, a língua emprega a palavra [] ou [] para indicar o sexo feminino de
alguns animais.
No sintagma, o núcleo nominal pode ser modificado por outro nome
ou por um adjetivo. A relação entre os dois nomes pode ser de posse ou
genitiva. A língua não faz distinção, formalmente, entre os dois tipos de
construções: posse e construção genitiva. A diferença entre definição
e generecidade também não é explicitada. A relação genitiva ou de
posse se dá quando o termo dependente é animado, como mostram os
exemplos (12) e (13).
Em (12), a relação é específica, o falante refere-se a um rabo de um
determinado tatu. Em (13), a relação entre os dois nomes do sintagma é
genérica, pois o falante está se referindo a rabo de tatu em geral. Não há,
porém qualquer distinção formal entre os dois enunciados no que diz respei to
à constituição do sintagma [kanawra higi] o rabo do tatu ou rabo de tatu. A
ordem, nos dois casos, é sempre a mesma: modificador-nome modificado.
No sintagma nominal, apenas o nome recebe um morfema flexional,
a categoria de número. Não há concordância entre o nome e os demais
constituintes do sintagma nominal. A ordem canônica é dependente-
núcleo, seja qual for a relação estabelecida entre os membros do sintagma, desde que esses membros sejam todos nomes. 128 Estudos indígenas
Na relação de posse que se estabelece entre dois nomes no sintagma nominal, a ordem é possuidor-objeto possuído. A relação
genitiva entre dois nomes é igual à relação de posse, com o nú-
cleo do sintagma à direita. Uma relação que se estabelece entre
dois nomes, como a que ocorre entre [] galinha e [] ovo,
em [] ovo de galinha, é uma relação genitiva, com [] galinha funcionando como modificador. Para Payne (1997, p. 262),
Nouns themselves may act as noun-phrase premodifiers.3
 Desse modo,
em uma sentença como [] o ovo do meu jacaré, o núcleo
do sintagma seria [kate] ovo, e o modificador, outro nome [-]
meu jacaré. Quer dizer que o núcleo do composto é o elemento mais à
direita, o elemento da esquerda sendo o modificador, ou dependente.
O fato de a língua apresentar poucos afixos derivacionais faz com que
a composição seja o principal mecanismo pelo qual o léxico é formado e
aumentado. O processo de composição na língua é bastante semelhante ao processo de formação de sintagmas. De modo geral, compostos
são formados pela justaposição de membros das classes lexicais mais
importantes da língua: nome, verbo e adjetivo.
Um mecanismo bastante produtivo na formação de nomes em
ofayé baseia-se no uso dos sufixos que indicam avaliação ou grau /-/
pequeno e /-ta/ grande. A derivação por sufixo de grau avalia positiva
ou negativamente a coisa referida pelo nome e serve para criar nomes
de outros seres, notadamente espécies do reino animal.
3
 Os próprios nomes podem atuar como pré-modificadores do sintagma nominal.Ofayé, a língua do povo do mel 129
Como nomes podem ser derivados de verbos, verbos podem ser
derivados de nomes, quantificadores e outras classes de palavra pela
adjunção do morfema verbalizador /-/.
Em ofayé, dos fatos relacionados à classe verbo, estamos considerando verbos as palavras que respondem ao critério sintático de tomar
um sujeito ou um objeto quando expresso no nível clausal. Mas estamos considerando também a sua natureza mutável em um intervalo de
tempo, quer seja essa mudança externa – tempo – ou interna – aspecto.
A raiz verbal, do ponto de vista morfológico, mantém-se basicamente
inalterada, salvo pelos morfemas de aspecto que se realizam como sufixos
e uma marca de concordância com o sujeito, que é opcional. Poucas vezes, o falante lembra-se de marcar essa concordância, embora ela devesse
ser necessária, pois, quando representada por índices pronominais, não
é encontrada a distinção singular/plural para esses elementos na língua,
principalmente no caso dos verbos ativos.
Como a maior parte das categorias que, em línguas flexionais, são
expressas por morfologia presa, em ofayé, uma noção como tempo é
expressa por advérbios e, em alguns casos, por verbos que se especializaram como auxiliares.
As categorias que afetam o verbo, morfológica/flexionalmente ou
sintaticamente, considerando-se também os pronomes gramaticais/correferenciais, que não podem faltar na sentença gramatical, são tempo,
argumentos pronominais, aspecto e número.
Acreditamos que a distinção presente/passado é completamente
ausente no lexema verbal propriamente dito. A mesma forma – tanto
na palavra verbal, como na sentença – pode expressar tanto passado
quanto presente. Entretanto, embora essa noção não seja obrigatória,
ela pode ser expressa por advérbios e partículas que parecem apontar
para uma oposição entre passado recente // e passado remoto //. 130 Estudos indígenas
O futuro é obrigatoriamente expresso no nível da sentença, o que
nos leva a imaginar que há uma distinção, mesmo que não seja marcada
morfologicamente, em termos de futuro/não-futuro. O mecanismo
utilizado é um auxiliar que parece ser a gramaticalização de um verbo
de movimento . No tempo futuro, há também uma distinção
entre futuro neutro e futuro imediato, que é expresso sintaticamente
com o advérbio4
 quase.
Os argumentos pronominais em ofayé são elementos pronominais
que ocupam principalmente as posições de sujeito e objeto, na estrutura
gramatical da sentença. Essas formas não são morfologicamente livres,
devendo sempre se ligar a outra palavra. Entretanto, do mesmo modo que
os pronomes livres, elas podem substituir sintagmas nominais plenos em
uma sentença. Há uma série de pronomes-sujeito para verbos transitivos
e verbos intransitivos ativos [ta], [te] e , e outra série para verbos
intransitivos inativos e predicados adjetivais , [e] e . Há uma
série de pronomes que são usados como objeto de verbos transitivos
[e] e . Os pronomes objetos, marcados como dativo, são ainda
utilizados como sujeito de verbos de emoção e de cognição.
Na estrutura bitransitiva, o sujeito é o mesmo dos verbos ativos. O
argumento recipiente, objeto indireto, é expresso pelos pronomes-objeto
que são, então, seguidos pela posposição [he], marca de dativo.
Apenas uma distinção aspectual, marcada morfologicamente, é
produti va na língua: perfectivo vs. imperfectivo. A distinção é marcada
4
 Uma distinção entre  e , o que nos permite dizer que o primeiro é um advérbio e o
segundo um verbo auxiliar, é que o verbo auxiliar vem acompanhado de um índice pronominal
, enquanto o advérbio, não. Outra característica do advérbio, que o distingue do verbo auxiliar,
é que ele vem sempre na periferia da cláusula, enquanto o verbo auxiliar ocupa uma posição mais
central, embora essa posição seja móvel em relação ao verbo principal.Ofayé, a língua do povo do mel 131
no verbo pelos morfemas sufixais -ta,
para indicar o imperfectivo. Essa distinção pode ser encontrada em uma
série de usos, mas sempre com a mesma característica semântica de
denotar a extensão de uma ação.
As construções com imperfectivo são de dois tipos. Em uma delas,
apenas o verbo recebe a marca de imperfectivo. Na outra, o verbo
recebe o morfema aspectual [-ta], mas há ainda a ocorrência de um
auxiliar [] andar. Enquanto a primeira construção tem sentido de
continuativo, a segunda indica evento em curso, ou seja, progressivo.
O aspecto inter-relacio na-se com o tempo para expressar diferentes
noções temporais-aspectuais.
A distinção inceptivo vs. completivo, que não é mais produtiva, é
marcada pelo pronome-sujeito utilizado na estrutura gramatical. Assim,
para indicar ação iniciada, utiliza-se o pronome []. Para ações completadas, o pronome é [nã)]. Esses pronomes têm uma única forma e
são utilizados em todas as pessoas gramaticais.
Há uma marca raramente manifestada de concordância verbal com o
sujeito da sentença. O falante, querendo indicar que o sujeito expresso
pronominalmente é plural, marca o verbo com o morfema -. A marca
de concordância é notadamente mais utilizada com os verbos ativos, que
repetem os pronomes [ta], [te] e [] para as pessoas correspondentes
do plural, e com verbos de sentido recíproco. Com os verbos inativos,
para os quais se faz uso do conjunto de pronomes livres para pessoas do
plural [], [eke] e [ida], que correspondem respectivamente à primeira, segunda e terceira pessoas, raramente, ou talvez mesmo nunca,
a marca de concordância é observada.132 Estudos indígenas
Os verbos em ofayé podem ser divididos em três classes principais:
ativos, incluindo verbos transitivos primários e a maior parte dos verbos
intransitivos que são ações; estativos, incluindo nessa classe os verbos
adjetivais, estativos propriamente falando, e os verbos que codificam
funções corporais; e verbos de emoção, não necessariamente incluídos
em uma terminologia típica.
Um verbo intransitivo típico expressa uma ação-processo com apenas
um participante, o Ator. Para que uma sentença seja gramatical em ofayé,
basta que o verbo esteja acompanhado por um elemento pronominal que
desempenhe as funções sintáticas e represente os papéis semânticos correspondentes. Nessa estrutura, o agente é representado pelos pronominais
/ta/, /te/ e / – primeira, segunda e terceira pessoas, respectivamente.
Os verbos transitivos – verbos de ação-processo com dois participantes,
um agente e um paciente – têm uma estrutura sintática com argumentos que,
quando expressos pronominalmente, apresentam-se do seguinte modo: [ta],
[te] e  são agentes, enquanto [wa], [e] e [] são pacientes. A ordem
canônica é definida como sendo SOV. Esses índices pronominais que se
referem a agente e paciente na sentença transitiva são também índices
gramaticais sem referência externa. Quando nominais, que possuem referência plena, aparecem na sentença, os índices gramaticais permanecem,
o que nos permite dizer que eles também são correferenciadores.
Verbos bitransitivos, cujo protótipo é o verbo dar – com uma estrutura semântica que apresenta três argumentos, agente, paciente e
recipiente –, comportam-se sintaticamente do seguinte modo:
· agente, o doador, é expresso por um pronome da série sujeito;
· paciente, o objeto doado, é expresso por um pronome da série objeto;
· recipiente, o participante a quem o objeto é doado, é expresso por
um pronome da série objeto, com ligeira modificação, marcado Ofayé, a língua do povo do mel 133
com a posposição [he]. É, portanto, um dativo, em termos de
marcação de caso, mesmo se a marcação é sintática em ofayé.
Há dois tipos de verbos que podem ser ditos verbos estativos. São os
verbos que compõem predicados adjetivais e os verbos que expressam
funções corporais involuntárias – exemplos (31) e (32), respectivamente.
Os pronomes que têm função gramatical ou correferencial nessa estrutura sintática são diferentes dos pronomes com essas funções na estrutura
dos verbos transitivos primários e dos outros verbos intransitivos.
Na estrutura sintática nas classes de verbos que se configuram como
estativas, o pronome de primeira pessoa não é igual nem ao sujeito nem
ao objeto dos verbos transitivos primários, mas um elemento diferente.
Os pronomes que constituem a estrutura gramatical dos verbos
estativos não podem ser repetidos, como ocorre com os pronomes da
classe ativa, para as pessoas do plural. Com os verbos estativos, tem-se
que usar para o plural os pronomes livres.
5
 Objeto 1 corresponde ao objeto indireto.134 Estudos indígenas
Os verbos que expressam emoção em ofayé apresentam uma estrutura
sintática específica. O experienciador é semanticamente um Recipien te e,
como tal, é marcado como dativo, constituindo-se em um objeto indireto
do ponto de vista sintático. O objeto da emoção é semanticamente um
estímulo e tratado como objeto na estrutura sintática.
Considerando apenas as duas classes principais, verbos transitivos
primários e verbos intransitivos, temos a seguinte configuração:
a) Os verbos transitivos primários são verbos de ação prototípicos e
comportam-se como tal, com o agente (A) sendo tratado sintaticamente como sujeito.
b) Uma parte dos verbos intransitivos comporta-se sintaticamente do
mesmo modo que os verbos transitivos, ou seja, seu argumento único
é tratado como agente (S) nas sentenças como verbos transitivos
primários. Assim, A = S. De 15 classes semânticas levantadas, 11
comportam-se, sintaticamente, do mesmo modo que os verbos
transitivos primários, com uma estrutura ativa, quer dizer, o sujeito
desses verbos é o mesmo dos verbos transitivos primários.
c) Outra parte dos verbos intransitivos, incluindo-se aí, grosso modo,
os predicados adjetivais, recebem uma marcação de sujeito diferente. Por esse cenário, teríamos uma estrutura sintática do tipo
que é definido na literatura como ativa-estativa. Contudo, algumas
complicações aparecem, como veremos a seguir.
Os verbos estativos – predicados adjetivais e funções corporais – tomam como argumento único um sujeito que não é agentivo. Embora,
nas segunda e terceira pessoas do singular, exemplos (40) e (42), esse Ofayé, a língua do povo do mel 135
argumento seja igual ao objeto dos verbos transitivos primários, exemplos (41) e (43), o fato de o pronome utilizado com esses verbos ser
diferente, na primeira pessoa, do objeto dos verbos transitivos primários
(O) não nos permite dizer que o sujeito dessa classe de verbos é tratado
como o objeto dos verbos transitivos primários, o que configuraria a
língua como sendo do tipo sintático ativo-estativo.
Em vez disso, o que ocorre é que esse sujeito é diferente de A, mas
é também diferente de S e de O. Para efeito de descrição, chamaremos
o sujeito desses verbos Internalizado ou Inerente. No quadro abaixo,
apresentamos um esboço dessa situação.
Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos.
A sujeito de verbos transitivos primários
Agente
S sujeito de verbos intransitivos
O objeto de verbos transitivos Paciente
I sujeito de verbos estativos Internalizado
R sujeito de verbos de emoção Recipiente
Por isso, a situação em que se encaixa a estrutura sintática da língua
ofayé parece mais próxima de um tipo que apresenta intransitividade
cindida, porém com o argumento único dos verbos estativos sendo diferente do argumento paciente dos verbos transitivos primários.
Finalmente, há uma classe de verbos, os que expressam emoções,
que apresentam uma estrutura sintática diferente. Esses verbos têm dois
argumentos na estrutura sintática, semanticamente um experienciador
da emoção e um estímulo, o alvo da emoção. O experienciador é tratado
como recipiente, desde que marcado como dativo, e o estímulo como
paciente. Essa última classe pode ser desconsiderada no estabelecimento 136 Estudos indígenas
da estrutura sintática, desde que todas as línguas parecem ter verbos
que se comportam à margem do padrão predominante.
A ordem dos argumentos na estrutura gramatical do ofayé é bastante
fluida, mas, canonicamente, podemos defini-la como sendo SOV, que
é a mais presente em dados elicitados, sobretudo quando as posições
argumentais na estrutura sintática são preenchidas por pronomes. Essa
parece ser uma ordem de constituintes bastante típica em línguas do
tronco macro-jê. Um fato interessante notado na estrutura sintática
do ofayé é que todos os argumentos podem ser representados por um
pronome gramatical. Esse pronome gramatical, contudo, pode ter a sua
referência tornada explícita por sintagmas nominais plenos. Nesse caso,
a ordem do sintagma nominal pode variar bastante: antes ou depois do
pronome gramatical ou depois do verbo.
Outros complementos, tanto adverbiais como adposicionais, ou seja,
representando tanto papéis semânticos periféricos, não obrigatórios,
como adjuntos adverbiais, circundam a estrutura básica central. Esses
complementos podem vir no início ou no final da sentença.
O sintagma adposicional é constituído por um nome e uma posposição. A ordem dependente-núcleo continua a ser obedecida se considerarmos que o núcleo do sintagma é representado pela posposição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De modo geral, neste trabalho, apresentamos alguns aspectos da
análise do sistema fonológico, da morfologia e da sintaxe da língua
ofayé. Todos esses níveis de análise são, logicamente, perpassados por
implicações de ordem semântica, incluindo-se aí o léxico.
Evidentemente, trata-se ainda de uma descrição preliminar. Por isso,
vários pontos precisam ser retomados, mas consideramos que os objetivos básicos do nosso projeto – que eram descrever e propor um sistema
ortográfico para a língua, para, a partir daí, elaborar materiais didáticos
de apoio ao ensino de ofayé na comunidade de Brasilândia – foram alcançados. Uma cartilha está sendo usada experimentalmente na aldeia.
Junto com a nossa informante e professora de ofayé, Marilda de Souza, Ofayé, a língua do povo do mel 137
esperamos poder dar continuidade ao trabalho, corrigindo a cartilha e
elaborando novos materiais. Também um dicionário ofayé-português/
português-ofayé encontra-se em fase de conclusão em uma versão com
transcrição fonética. Sua transposição para uma versão em ortografia
ofayé dependerá das correções feitas no sistema ortográfico e da sua
aceitação pela comunidade.
Mais do que simplesmente cumprir os objetivos acadêmicos deste
empreendimento, ficaremos felizes se tivermos cumprido a nossa missão
de responder aos anseios da Nação Ofayé, o povo do mel.
Maria das Dores de Oliveira
Pankararu, natural de Tacaratu – PE. Graduada em História pela Faculdade
de Formação de Professores de Arcoverde – PE, em Pedagogia pela Universidade
Federal de Alagoas – UFAL, é doutora em Letras e Lingüística pela Universidade
Federal de Alagoas – UFAL. A sua tese de doutorado, Ofayé, a língua do Povo
do Mel: fonologia e gramática, foi orientada pela professora Januacele Francisca
da Costa, pós-doutora em Lingüística e professora da Faculdade de Letras –
FALE – da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Atualmente é professora
da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Nesta instituição trabalha no Setor de
Educação da Administração Executiva Regional de Maceió, em atividades relacionadas às políticas públicas para educação escolar nas comunidades indígenas de
Alagoas e Sergipe. Mais especificamente, acompanha os trabalhos das Secretarias
de Educação do Estado e Municípios onde se concentram os povos indígenas. É
também professora substituta de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Ex-bolsista IFP, turma 2002. E-mail:
maria.pankararu@gmail.com
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WHALEY, L. Introduction to typology: the unity and diversity of language. London: Thousand Oaks;
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marcas de aspecto em laklãnõ
Nanblá Gakran
RESUMO
Neste trabalho, apresento alguns dos resultados da descrição morfossintática da língua laklãnõ (xokleng). A língua laklãnõ pertence ao
ramo meridional da família jê, do tronco macro-jê. Dentre os aspectos
gramaticais da língua laklãnõ, concentro-me na ordem dos constituintes nas orações independentes intransitivas e na constituição interna
destas, assim como nas relações sintático-semânticas de suas marcas
de aspecto, que por sua vez também ocorrem nos tipos de predicados
descritos. Na análise, propõe-se que a ordem básica da oração assertiva
em laklãnõ é SOV. Porém, mesmo nas assertivas, essa estrutura pode
variar, deslocando-se o sujeito, mas nunca mudando a posição do objeto
direto em relação ao verbo.
PALAVRAS-CHAVE
ETNOLINGÜÍSTICA – LINGUAGEM – XOKLENG – LAKLÃNÕ140 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
A língua laklãnõ pertence ao ramo meridional da família jê, do tronco
lingüístico macro-jê, e é falada pelo povo que se autodenomina Laklãnõ1
e que vive na única área indígena dessa etnia existente no país, Terra
Indígena Laklãnõ Ibirama, que se estende por quatro municípios do estado de Santa Catarina: José Boiteux, Vítor Meireles, Doutor Pedrinho
e Itaiópolis.
O meu objetivo é descrever aspectos importantes de uma língua jê
muito pouco estudada e, conseqüentemente, ampliar o conhecimento
sobre a família lingüística a que pertence. Pretende também contribuir
para o fortalecimento da língua do povo Laklãnõ, para o qual a documentação e a descrição lingüísticas são fundamentais, bem como estimular
o estudo científico e a documentação das línguas indígenas brasileiras.
A língua laklãnõ pode ser considerada ameaçada de extinção, tendo
em vista possuir um número não muito elevado de falantes que convivem
com outras línguas no seu dia-a-dia. Vários Laklãnõ são bilíngües em
laklãnõ e em português, mas muitos Laklãnõ são monolíngües em português. Como falante nativo do laklãnõ, e dada a situação da minha
língua materna, interessei-me em refletir e estudar a sua organização e
funcionamento e, assim, contribuir para a sua documentação e para o
seu fortalecimento.
Neste estudo, dentre os aspectos gramaticais da língua laklãnõ, abordo
a ordem dos constituintes nas orações independentes intransitivas e a
constituição interna destas, assim como relações sintático-semânticas de
suas marcas de aspecto, que também ocorrem nos tipos de predicados
descritos. Na análise, propõe-se que a ordem básica da oração assertiva
em laklãnõ é SOV. Porém, mesmo nas assertivas essa estrutura pode
variar, deslocando-se o sujeito, mas nunca mudando a posição do objeto
direto em relação ao verbo.
1
 É importante esclarecer o leitor sobre o uso do termo laklãnõ, nome sobre o qual trataremos adiante,
e o valor dessa denominação. Orações intransitivas independentes e marcas de aspecto em laklãnõ 141
O POVO LAKLÃNÕ (XOKLENG)
O nome do povo Xokleng tem provocado muitos debates. Desde os
primeiros contatos “amistosos” de algumas parcialidades com os funcionários do Serviço de Proteção ao Índio – SPI –, a partir de 1914, as
denominações dadas ao povo foram as mais variadas: antes de “Bugres”,
“Botocudos do Sul”, “Aweikoma”, “Xokleng”, “Xokrén”,2
 “Kaingang de
Santa Catarina” e “Aweikoma-Kaingang”. Estas últimas denominações
devem-se à proximidade lingüístico-cultural existente entre os Xokleng
e os Kaingang. Nas primeiras publicações de um antropólogo sobre esse
povo, Jules Henry (1935), apesar de denominá-los Kaingang, admitiu
que havia diferenças lingüístico-culturais entre eles e os outros Kaingang.
Segundo Greg Urban (1985), os Xokleng originaram-se dos Kaingang,
sendo que a separação se deu devido a fissões de suas patrimetades.
O mesmo autor afirma ainda que o termo “Xokleng” é muito genérico
e não lhes dá identidade. Dos poucos pesquisadores que estudaram o
povo Laklãnõ, Silvio Coelho dos Santos é o que mais trabalhos publicou
a respeito dessa sociedade indígena.
A literatura antropológica e o indigenismo acabaram consagrando a
denominação “Xokleng”, aplicando-a a todas as comunidades relacionadas, outrora bastante esparsas e até distintas. Historicamente, no século
XX, conforme Santos (1997), o termo Xokleng havia sido incorporado
pelo grupo como denominador de uma identidade externa, usada em
suas lutas políticas junto à Fundação Nacional do Índio – FUNAI – e
aos meios de comunicação. É relevante citar que os Laklãnõ não reconheciam o termo Xokleng para se autodenominar porque, segundo o
povo, o nome Xokleng é demarcador do olhar do colonizador sobre a
comunidade e não desta como povo. Segundo os mais velhos, o nome
Xokleng foi atribuído por pesquisadores e não os identifica como povo,
devido ao fato de que seu significado não é muito agradável e, com isso,
o povo se sentia humilhado.
Assim, num processo recente de resgate da história, a comunidade
iniciou um processo de redenominação, procurando resgatar aquele que
considera o verdadeiro nome que a distingue e identifica enquanto povo.
2
 Segundo Santos (1997). Registre-se também que, já em 1777, no mapa da expedição de Sampaio
de Souza aos campos de Guarapuava (PR) aparece o nome “Xaclan”.142 Estudos indígenas
A partir desse questionamento, em conjunto procurou-se reconstruir
e redefinir a identidade do grupo, sobretudo em conversa com os mais
idosos, na tentativa de recuperar informações sobre a história e assim
redefinir a autodenominação.
Nessa pesquisa, investigou-se a etimologia do nome mais comu mentemente utilizado pelo próprio povo, e a comunidade que representa essa
sociedade indígena chegou a um consenso sobre a sua auto de nominação,
qual seja, “Laklãnõ” – “povo que vive onde nasce o sol, ou gente do sol
(ou, ainda, povo ligeiro)”.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
A escolha da metodologia adotada para o estudo considerou, entre
outras coisas, o fato de que o autor pesquisador é falante nativo da língua laklãnõ e que seria indispensável a coleta de dados de falantes da
comunidade. Ouvindo outros falantes e gravando suas falas, senti-me
mais seguro acerca dos meus julgamentos sobre a adequação e a gramaticalidade das frases.
Na escolha dos informantes, alguns critérios foram estabelecidos: 1)
pessoas não muito jovens (a única com menos de 50 anos foi escolhida
por ser professor bilíngüe e porque também se julgou importante incluir
pelo menos uma pessoa das gerações mais novas); 2) pessoas dos dois
sexos; 3) pessoas que moraram a maior parte da vida na aldeia.
Para a coleta de dados foram utilizados questionários previamente
preparados. No primeiro questionário, recolhi dados para evidenciar a
estrutura do sintagma nominal. O interesse principal do segundo questionário foi reunir dados lingüísticos sobre a estrutura básica e a ordem
preferencial das orações declarativas com verbos intransitivos, transitivos
diretos e bitransitivos. Os dois primeiros questionários foram usados em
minha primeira viagem a campo. Um terceiro questionário foi elaborado
posteriormente, e utilizado em outra ocasião, para esclarecer dúvidas
acerca da estrutura das orações bitransitivas. Além dos questionários, em
diversos momentos em que o andamento da pesquisa e da análise dos
dados exigiu, eu mesmo produzi dados que, em um momento posterior,
foram submetidos à avaliação de um segundo falante. Por fim, também
lancei mão de narrativas dos idosos, gravadas em anos anteriores. Orações intransitivas independentes e marcas de aspecto em laklãnõ 143
ORDEM DOS CONSTITUINTES EM ORAÇÕES3
Em laklãnõ, a ordem dos constituintes da oração não é fixa, havendo
a possibilidade de variações. Por outro lado, não é totalmente livre, pois
constatamos que a ordem de alguns elementos tende a ser preservada,
apesar das variações possíveis. Isso colaborou para interpretarmos o
sistema de marcação do sujeito dessa língua, permitindo assim que
chegássemos à ordem básica da língua. A análise dos dados identificou
que as orações independentes em laklãnõ contêm um verbo, um período
simples e podem se articular com outras orações para formar sentenças
complexas. Nessas orações o verbo pode ser: intransitivo, transitivo ou
bitransitivo, formando orações correspondentes, como se pode observar
nos exemplos a seguir.4
Ordem das Orações Intransitivas: S + V Intransitivo
A ordem dos constituintes das orações intransitivas em laklãnõ é,
preferencialmente, S + V:
.
3
 As abreviaturas utilizadas neste estudo e seus significados correspondentes são: ADV = advérbio; ART = artigo; ASP ou asp. = aspecto; Loc. ADV = locução adverbial; MS = marca de
sujeito; neg. = negação; n. masc. = nome masculino; PAS = passado; pl. = plural; S = sujeito;
sg. = singular; 1ª p. = primeira pessoa; 2ª p. = segunda pessoa; V = verbo; 3ª pm = terceira pessoa
masculina; 3ª pp = terceira pessoa do plural.
4
 Devido à limitação do número de páginas solicitadas para este estudo, tratarei da ordem preferencial
nas orações independentes intransitivas.
5
 O morfema “te” é um artigo definido, que ocupa a posição à direita do núcleo do sintagma nominal
(SN). O uso desse recurso é opcional pelos falantes, o que é argumento a favor de sua função. Esse
morfema pode ser usado em orações afirmativas, negativas e interrogativas.
6
 MS (marca de sujeito) é uma partícula ou palavra gramatical que ocorre à direita de um sintagma
nominal para indicar que esse sintagma é o Sujeito da oração. Na língua laklãnõ não se produz
“oração” sem marcador de sujeito, sendo portanto elemento essencial na sintaxe desta língua. 144 Estudos indígenas
Nas orações declarativas negativas, a ordem preferencial S. V. também
é respeitada, como mostram os seguintes exemplos:
Ao lado da ordem S + V, nas orações intransitivas, também é possível a ordem V + S, como mostram os exemplos abaixo. Observe-se,
porém, que a mudança de ordem acarreta também mudanças na forma
do sujeito de 1ª., 2ª. e 3ª. pessoas.
Como pode ser visto nesses exemplos, quando o sujeito é uma 3ª.
pessoa e ocorre mudança na ordem preferencial, à direita do verbo é
usado apenas o pronome, sem a marca de sujeito. Ao contrário, quando
o sujeito é 1ª. ou 2ª. pessoa, com a mudança de ordem, à direita do
verbo ocorre a marca de sujeito, apagando-se o pronome.
Quando a oração intransitiva é expandida com informação adicional,
observamos duas situações: (a) Se o acréscimo é de um advérbio que
modifica o verbo, ele ocorre à direita do verbo, entre este e a marca de
aspecto. (b) Se o acréscimo é de uma locução adverbial (de tempo ou
lugar), ele ocorre antes do verbo, entre o sujeito e o verbo.
Em síntese, modificadores do verbo devem ir à direita do verbo, enquanto expressões de circunstância devem vir antes do verbo. Vejam-se
os exemplos a seguir:Orações intransitivas independentes e marcas de aspecto em laklãnõ 145
MARCAS DE ASPECTO
Em laklãnõ, há um conjunto de marcas de aspecto, algumas delas derivadas de verbos (como m e t, do verbo “ir”, ou n, do verbo “sentar”),
que são de presença obrigatória na oração independente, aparecendo
sempre na posição final. Em alguns casos, guardam proximidade com
as noções de “perfectum” e “imperfectum”, mas alguns casos devem
revelar aspectos relacionados à posição física do sujeito ou objeto em
relação à ação expressa pelo verbo.
As marcas de aspecto em laklãnõ são:
Levando em consideração que na língua laklãnõ não se produz
“oração” completa sem marca de aspecto, ela é essencial na sintaxe
dessa língua. Em laklãnõ, a marca de aspecto “m” é usada em uma
ação consolidada, ação acabada, terminada ou realizada: 146 Estudos indígenas
 A marca de aspecto “t” ocorre quando a ação não é realizada, ou
seja, é uma ação que irá acontecer (ou futuro) ou uma ação ainda não
completada, que não se encerrou. Também é usada nas formas negativas.
O “t” também é usado no tempo presente, com sujeito em movimento
(contemporâneo).
7
 Nesta oração o sujeito Kãggunh está doente e deitado (acamado).
8
 Nesta oração o sujeito Kãggunh está doente e sentado.
9
 Veja que nessa outra oração Kãggunh está doente e em pé.
Por outro lado, as marcas de aspectos: “nõ”, “n”, “jã” relacionam -se
à descrição do estado ou posição do Sujeito. Seguem-se exemplos de
cada uma.
A marca de aspecto “nõd” em laklãnõ é plural/ não se sabe a posi-
ção do Sujeito e nem o tempo da ação, podendo ser presente, passado
recente ou passado remoto.Orações intransitivas independentes e marcas de aspecto em laklãnõ 147
A marca de aspecto “kó” ocorre somente com a primeira pessoa em
orações afirmativas que parecem compostas por expressões idiomáticas.
Nas orações interrogativas, ocorre com a 2ª. pessoa. A seguir seguem
exemplos das ocorrências dessa marca em orações afirmativas:
Veja-se que, em orações com a mesma estrutura e semelhante carga
informacional, quando se tem sujeito de 2ª. ou 3ª. pessoa, não é aceitável
a marca “kó”, mas apenas “jã”:
Exemplos de orações interrogativas com a marca de aspecto kó :
A marca “kó” também é usada nas orações de 2ª. e 3ª. pessoas nas
construções com discurso indireto. Nesses casos, aparece uma marca
de sujeito específico “mõ”:
Sobre a marca “vã”, a minha hipótese é que nas orações em que
ocorre dá o sentido de um “descritivo”. Emprega-se quando se fala de
uma ação ou situação que se está vendo. Exemplos:148 Estudos indígenas
O leitor deve ter observado nos dados acima que, além da marca
aspectual, que considero um dos elementos essenciais na sintaxe da
língua laklãnõ, existem termos para indicar o tempo verbal.
O tempo passado, na língua laklãnõ, é expresso por uma partícula “jó”.
Observe os exemplos 19 e 20. O tempo futuro é indicado pela partícula
“ke”. Observe os exemplos 21 e 22. A categoria tempo é marcada na
posição à direita do SV e imediatamente antes da marca de aspecto.
Para os fatos que ocorrem no tempo presente, não se observou a
existência de uma partícula própria para indicá-lo, mas foi constatado
que na própria marca aspectual indica-se esse tempo. Exemplos 11,
12, 13 e 14.
CONCLUSÃO
Este trabalho não teve grandes pretensões teóricas, mas objetivou
trazer à luz o aspecto de uma língua pouco estudada. Como se trata de
uma língua jê, essa investigação poderá ser muito útil para o conhecimento de pesquisadores que trabalham com outras línguas dessa família.
Busquei mostrar com exemplos simples, mas variados, um panorama
fundamental ou básico da estrutura sintática dessa língua. Com respeito
a um dos interesses do estudo, de verificar se a influência do português
estaria provocando algum tipo de mudança perceptível na sintaxe da
língua, creio que os dados apresentados mostram que isso não está
acontecendo. Orações intransitivas independentes e marcas de aspecto em laklãnõ 149
Espero que este trabalho possa contribuir para despertar maior
interesse sobre a importância das línguas indígenas brasileiras e, particularmente, para o fortalecimento da língua do meu povo, além de ser
uma ferramenta de trabalho para os professores pesquisadores Laklãnõ
e demais pesquisadores das línguas indígenas brasileiras.
Nanblá Gakran
Xokleng, natural de José Boiteux – SC. Graduado em Ciências Sociais (ênfase em Desenvolvimento Sustentável) pela Universidade do Vale do Itajaí Univali
– SC. Mestre em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp,
Programa de Mestrado em Lingüística do Instituto de Estudo da Linguagem IEL.
O professor Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis, PhD da Unicamp, orientou a sua
dissertação Aspectos morfossintáticos da língua laklãnõ (Xokleng) Jê. É professor
titular de Sociologia na Escola Estadual de Educação Básica José Clemente Pereira,
no município de José Boiteux – SC, e professor de Língua Materna Xokleng na
Escola Indígena de Educação Básica Laklãnõ na Aldeia Palmerinha da Terra Indígena
Laklãnõ Ibirama, município de José Boiteux – SC. Participa como GRIÔ APRENDIZ no Projeto Ação Griô do Ministério da Cultura e participará da seleção 2008
para doutorado na Universidade Federal do Paraná. Ex-bolsista IFP, turma 2002.
E-mail: gak_nan@hotmail.com, xokleng@ibest.com.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HENRY, J. A Kaingang text. Internacional Journal of American Linguistics, v. 8, n. 3/4, p. 34, 1935.
SANTOS, S. C. dos. Os Índios xokleng: memória visual. Florianópolis: Ed. da UFSC Itajaí; Ed. da
UNIVALI, 1997.
URBAN, G. Ergativity and accusativity: in shokleng (gê). International Journal of American Linguistics,
v. 51, n. 2, apr. 1985. Medidas de tempo e sistema numérico
entre os Taliáseri do rio Negro
Adão Oliveira
RESUMO
Este estudo, com base em pesquisa de campo, aborda a etnomatemática dos Taliáseri. O objetivo é demonstrar que os Taliáseri, como
outros povos do planeta, possuem saberes matemáticos próprios que são
utilizados cotidianamente para organizar as atividades econômicas, a agricultura e a pesca. Registra também a sua maneira de explicar, conhecer
e lidar com o ambiente natural, cultural e místico. A etnomatemática
é uma área de estudo que ainda ensaia seus primeiros passos no Brasil,
mas que poderá ganhar relevância, dada a diversidade cultural do país.
PALAVAS-CHAVE
TALIÁSERI – TARIANO – ÍNDIOS – ETNOMATEMÁTICA152 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta a pesquisa etnográfica sobre a etnomatemática
dos Taliáseri da região do Médio rio Uaupés (também conhecidos como
Tariano), principalmente do clã Mali Makaliapi,1
 conhecido pelos outros
Taliáseri como Yawialipé (gente do rio Ayari). Os Taliáseri constituem
um dos grupos étnicos da família lingüística arawak que habita a região
do Médio Uaupés, compartilhando um território com outros grupos da
família lingüística tukana. Na literatura antropológica, o grupo indígena
em estudo recebe várias denominações: Tariana, Tariano, Tariá e Filhos
do Sangue do Trovão (Giacone, 1962, p. 7), sendo reconhecidos por
outros grupos étnicos da região como Taliá, Paana e Tarianos. Eles se
autodenominam, porém, de Taliáseri ou Filhos do Sangue do Trovão.
O território desse povo tem seus limites no Baixo rio Papuri com a
comunidade de Aracapá, no Alto rio Uaupés com a de Periquito e no
Médio rio Uaupés com a comunidade de Ipanoré. Além dessas, há a comunidade de Santa Terezinha2
 no rio Ayari. Entre Periquito e Ipanoré,
no rio Uaupés, intercalam-se aldeias de outros grupos de língua tukana,
como: Tukano, Arapaso e Piratapuia. A principal aldeia hoje é um agrupamento de aldeias denominado de Iauaretê. Além de ser um centro
de ocupação tradicional dos Taliáseri, é sede de um dos distritos do
município de São Gabriel da Cachoeira (AM), sendo composto por dez
comunidades, todas com nomes cristãos:3
 Aparecida, Cruzeiro, Dom
Bosco, Dom Pedro Massa, São José, São Pedro, Vila Fátima, Santa
Maria, São Miguel e Domingo Sávio. Embora apenas as três últimas
sejam ocupações tradicionais dos Taliáseri, eles estão presentes nas nove
das dez comunidades que formam o povoado de Iauaretê. No ano de
2002, dos 2.659 habitantes do povoado, 900 eram Taliáseri (Andrello,
2004, p. 136).
Ao redor do povoado de Iauaretê, existem outras comunidades Tali-
áseri. Por exemplo, no Baixo rio Papuri, na margem direita, localizam-se
as comunidades de Aracapá, Sabiá e Japurá. No Alto rio Uaupés estão
1
 O clã Mali Makaliapi é o mais representativo.
2
 Do rio Uaupés, em Santa Rosa, para a comunidade de Santa Terezinha há uma caminhada de várias
horas.
3
 Os nomes tradicionais existem, mas são utilizados somente pelos mais velhos.Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 153
as comunidades de Periquito, Santa Rosa, Miriti e Itaiaçu. Já as comunidades de Ilha de São João, Campo Alto, Nova Esperança, São Braz,
Urubuquara e Ipanoré situam-se no Baixo rio Uaupés. Os Taliáseri, em
sua maioria não utilizam mais seu idioma para se comunicar. Segundo
Barbosa e Garcia (2000), apenas cerca de 150 pessoas, habitantes dos
povoados localizados no rio Uaupés acima, falam o idioma nativo, embora haja um processo de revitalização da língua paterna por parte dos
moradores de algumas das comunidades supracitadas.
A estrutura social dos Taliáseri é composta por 37 clãs, divididos
em três grupos: Perisi, Koiwate e Kaiyaroa. A relação entre os três é de
senhorilidade, ou seja, eles se relacionam como “irmãos maiores” e “irmãos menores” numa escala hierarquizada. Os membros de um mesmo
clã se consideram descendentes de um ancestral comum. Cada grupo
de descendência tem como propriedade uma série de nomes próprios.
A pertença de um indivíduo a determinado clã não é assegurada unicamente pela descendência patrilinear. Só se é membro de um clã após ter
recebido um nome, o que ocorre em uma cerimônia específica (baxséke
wame). É o nome de um ancestral que outorga o direito à vida social e
um lugar próprio na hierarquia clânica, além dos privilégios econômicos,
ritualísticos e sociais. Esses nomes são exclusivos do clã. Portanto, no
interior de um clã podem existir vários indivíduos com o mesmo nome,
o que pode identificar a geração a que pertencem (Athias, 1995).
A população dos Taliáseri da região do Médio Uaupés é estimada
em 1.914 pessoas, sendo que a maior parte se concentra no povoado
de Iauaretê, ou seja, cerca de 900 pessoas. Além desses, há um número
desconhecido de famílias que hoje vivem nas cidades de São Gabriel da
Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos. Como em toda a região do Alto rio
Negro, a agricultura itinerante é a sua principal atividade econômica,
destacando-se o cultivo da mandioca amarga (Manihot esculenta cranz),
embora também cultivem outras plantas, como cana-de-açúcar, abóbora, batata-doce, cará e, às vezes, milho (Ribeiro, 1995). Além dessas,
acrescentam-se abacaxi, cucura, pupunha, pimenta, banana, ingá, açaí,
bacaba e outros.
Para superar a escassez de peixes, característica dos rios de águas
pretas, os povos indígenas da região, inclusive os Taliáseri, desenvolveram uma tecnologia de pesca muito elaborada. Eles, por morarem ao
longo do Médio rio Uaupés e Baixo Papuri, trechos encachoeirados, são 154 Estudos indígenas
os que mais praticam a pesca, sendo considerados “especializados em
implementos de pesca como caiá, cacuri, matapi” (Calbazar, Ricardo,
1998, p. 42). A pesca é praticada pelos homens durante todo ciclo anual
com a utilização de várias técnicas e a caça também é uma atividade
masculina. Há algum tempo, a tecnologia da caça era bastante simples,
resumindo-se aos tradicionais arcos com flecha e zarabatana, atualmente
suplantados pela espingarda (Buchillet, 1997). As principais caças são
paca e cutia; os animais maiores como anta, veado e caitetu (porco do
mato) são mais raros. A coleta é praticada tanto pelos homens quanto
pelas mulheres no período em que as frutas silvestres estão maduras,
entre elas, o açaí do igapó, o açaí chumbinho, a bacaba, o patauá, o
cunuri, o uacu, o japurá, o buriti do igapó e outros. As famílias também
plantam nas suas roças ou ao redor das casas várias outras qualidades de
plantas como pupunha, buriti, bacaba e outros, não dependendo assim
exclusivamente da natureza.
A investigação sobre a etnomatemática foi motivada por opiniões
etnocêntricas de alguns pesquisadores que estudaram povos indígenas da região do rio Uaupés e negaram a sua ciência e os seus valores.
Concomitantemente, há certa tendência de impor práticas, costumes
e concepções dos ditos povos civilizados, pressupondo que os indígenas
não conseguiram produzir conhecimentos, por possuírem “pequeno
alcance da inteligência” (sic) (Silva, 1977, p. 119).
Além disso, não existem trabalhos sobre o tema em pauta em nossa
região. Lembro aqui o encontro que tive com o padre Casimiro Beksta, em
Manaus, no Centro de Documentação Etnográfica Missionária de Manaus
– CEDEM –, onde não havia nenhuma pesquisa sobre o grupo Taliáseri. De
acordo com aquele padre, quem deveria preocupar-se com os acervos eram
os próprios indígenas. Por isso, acredito que também para os Taliáseri este
trabalho servirá como documento-base. Com exceção de produções mais
recentes, os resultados das pesquisas de vários estudiosos que passaram
pela região nunca foram conhecidos pelos Taliáseri, talvez por se tratar de
trabalhos dirigidos a acadêmicos que dominam as teorias antropológicas. É
importante salientar, entretanto, que nem todos adotam essa postura e vá-
rios colaboram de alguma maneira, com os seus antigos “objeto de pesquisa”.
A relevância desta pesquisa está no fato de que os seus resultados poderão
servir de subsídio a outros estudos acadêmicos na área de etnomatemática
e também para o processo de revitalização dos conhecimentos tradicionais Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 155
dos Taliáseri e dos grupos existentes na região do rio Negro, em especial
na região do rio Uaupés.
A produção de conhecimentos ocorre em todas as culturas humanas, e
com os Taliáseri não é diferente. A intenção é valorizar os conhecimentos
produzidos pelos povos indígenas, especificamente os Taliáseri, que, por
sua vez, irão enriquecer o patrimônio matemático universal. Procurei
demonstrar que os Taliáseri, como outros povos do planeta, possuem
saberes matemáticos próprios, como medição de tempo, sistema de
numeração, utilizados cotidianamente para organizar as atividades econômicas, a agricultura e a pesca. Ademais, o trabalho registra os modos,
técnicas de explicar, de conhecer, de lidar com seu ambiente natural,
cultural e místico (Ferreira, 1998, p. 13).
Acredito também que o resultado dessa pesquisa ampliará os conhecimentos sobre a etnomatemática das populações indígenas. A
etnomatemática ainda é uma área de estudo que está ensaiando seus
primeiros passos no Brasil, mas que pode vir a tornar-se um campo de
maior relevância na antropologia, dada a diversidade cultural do país. Os
pesquisadores etnomatemáticos, na maioria das vezes, baseiam-se nos
trabalhos dos antropólogos ou lingüistas. São os antropólogos que vão
a campo para pesquisar os conhecimentos matemáticos dos indígenas,
como também dos outros grupos culturais, tais como comunidades
urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais e tantos
outros grupos que se identificam com objetivos e tradições comuns
(D’Ambrosio, 1993).
Para este estudo, realizei uma pesquisa de campo no clã Mali Makaliapi da etnia Taliáseri na comunidade de Ditalipukipe, Aracapá, situada
no Baixo rio Papuri, afluente do rio Uaupés, em duas etapas, sendo a
primeira em julho de 2005 e a segunda durante primeiro semestre de
2006. A comunidade de Aracapá é o lugar tradicional do clã Mali Makaliapi (Yawialipé/gente do rio Yaviari) e está localizada a 8 km da foz do
rio Papuri, ou seja, do povoado de Iauaretê. Como os Mali Makaliapi do
grupo de Aracapá não falam mais a língua taliáseri, procurei pessoas do
clã Kayaroa da comunidade de Santa Rosa para me auxiliar. Na etapa
inicial, realizei o primeiro contato com os membros do clã Kayaroa e
conversei também com meu pai, Livino Oliveira, atualmente com 77
anos de idade, sobre pessoas que eventualmente poderiam ser entrevistadas. Estas seriam então consultadas sobre a sua disponibilidade em dar 156 Estudos indígenas
informações sobre os conhecimentos tradicionais que dizem respeito às
medidas de tempo, constelações, mitos, origem de armadilhas e técnicas
de sobrevivência, como a agricultura e a pesca. Foram indicados três
irmãos, conhecedores da cultura Taliáseri: Benedito Almeida, Graciliano Almeida e Acácio Almeida. Como os três não falam mais o idioma
taliáseri, fiz contato com o sr. Cândido Brito,4
 que fala a língua taliáseri
e que foi indicado para ajudar na tradução da língua tukano para tali-
áseri.5
 Pelo fato de os três irmãos serem viúvos, não foi possível fazer
contato com suas esposas, pois o depoimento das mulheres me parece
importante para conhecer o espaço de uma plantação e a maneira de
organizarem esse espaço. Nesse sentido, optei por entrevistar Emiliana
Ferreira Almeida, filha do sr. Benedito, e uma senhora idosa, dona “Maroca”, cuja entrevista foi vetada pelo filho devido a sua idade avançada.
Para suprir essa lacuna, conversei informalmente com outras mulheres
Baré, Karapanã, Piratapuia, Uanana – esposas dos Taliáseri.
A segunda etapa aconteceu entre os meses de janeiro e julho de 2006,
ocasião em que entrevistei meu pai, sr. Livino, e o sr. Luís Almeida, e
conversei com o sr. Graciliano. A técnica de pesquisa utilizada no decorrer do trabalho de campo foi principalmente a observação participante,
complementada com entrevistas, gravadas e fotografadas. Utilizei o discurso dos colaboradores como recurso etnográfico, bem como procurei
articular a teoria e a realidade empírica. Além disso, foi efetua do um
levantamento bibliográfico (teses, dissertações, artigos, revistas e jornais), com o intuito de conhecer a etnomatemática dos povos indígenas
e compará-la com os dados obtidos entre os Taliáseri. Como observador
participante e ao mesmo tempo membro do grupo pesquisado, senti
algumas dificuldades durante a realização da pesquisa de campo, pois
realmente “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas
não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos
pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido” (Velho, 2004, p.
49). Na verdade, para recolher os dados, passei por uma situação que
Roberto da Matta chama de “auto-exorcismo”, ou seja, voltei-me para
4
 O sr. Cândido Brito, embora pertença à comunidade de Santa Rosa, no Alto rio Uaupés, reside em
Vila Aparecida, Iauaretê, durante um período do ano.
5
 Mesmo pertencendo ao grupo Taliáseri, falo a língua tukano utilizada nas conversas com os
informantes.Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 157
minha própria sociedade, redescobrindo conhecimentos tradicionais do
meu próprio povo. Foi difícil “tirar a capa de membro de uma classe e
de um grupo social específico para poder – como etnólogo – estranhar
alguma regra social familiar e assim descobrir o exótico” (Matta, 1982).
Essa dificuldade também foi apontada pelo padre Justino, Tuyuka do
rio Tiquié, na sua pesquisa sobre educação Tuyuka. Durante palestra na
Faculdade Salesiana do Nordeste, Recife, ele se referiu à dificuldade de
obter dados, mesmo pertencendo ao grupo. Segundo ele, essa dificuldade é maior quando o pesquisador é indígena, porque, na cultura dos
povos do rio Negro, há certos conhecimentos que são retransmitidos
somente para alguém da família, ou seja, o avô pode contar apenas para
o filho ou para o neto. São conhecimentos clânicos. Lembro também
uma ocasião em que meu tio Benedito Almeida, no início de uma gravação sobre os benzimentos de defesa, pediu que eu não os repassasse
a outros, principalmente pessoas desconhecidas de outras etnias, pois,
segundo ele, esses benzimentos utilizados para o bem poderiam ser
usados também para o mal.
ETNOMATEMÁTICA E SABERES TRADICIONAIS
A intenção desse trabalho foi estudar e compreender os Taliáseri
mediante suas manifestações de saberes matemáticos. O foco recai na
mensuração da passagem do tempo que serve para organizar as atividades econômicas como agricultura e pesca, além do sistema numérico
utilizado especificamente na medição do tempo e nas atividades de
subsistência – termos que representam noções de medida e que neste
trabalho denomino medidores. Estes são construídos socialmente e se
configuram, em geral, por meio de representações míticas e dos movimentos dos astros, além da percepção de mudanças que ocorrem no
meio ambiente. Estão relacionados às ciclicidades observadas no céu,
na vida de plantas e animais, nos fenômenos atmosféricos, no cultivo
da terra e na produção de alimentos, nos ritos que estruturam os ciclos
de vida dos homens e da sociedade.
Segundo Berta Ribeiro (2000), há cerca de três décadas, os antropólogos começaram a estudar os processos de geração e trocar conhecimentos sobre como os indígenas classificam seu ambiente natural e 158 Estudos indígenas
cultural. Partiam da noção de que cada povo cria seu próprio sistema de
perceber, organizar e classificar sua realidade ambiental e cultural. Em
outras palavras, cada etnia constrói a sua etnociência, sua própria leitura
do mundo. A etnociência, conforme Eduardo Sebastiani Ferreira,6
 propõe
a redescoberta das ciências de outras etnias, que foram desvalorizadas
ao longo de séculos. Essa revalorização dos conhecimentos de outros
grupos e, principalmente, outras formas de conhecimentos dos indí-
genas levaram à criação de campos disciplinares como etnolinguística,
etnobotânica, etnozoologia, etnoastronomia, etnoeconomia, etnomatemática, etnoistória etc. Neste trabalho, assumo a etnomatemática
como um produto cultural. O termo “etnomatemática” é composto
pelas raízes etno, matema e tica, o que significa que existem várias formas, técnicas, habilidades (tica) de explicar, de entender, de lidar e de
conviver (matema) nos diferentes contextos naturais e socioeconômicos
da realidade (etno) (D’Ambrosio, 2002, p. 35).
As primeiras pesquisas sistemáticas sobre concepções e sistemas
numéricos de povos culturalmente distintos ocorreram no final da
década de 1970. A partir dos anos 1980, a antropologia e a sociologia
passaram a ser disciplinas cada vez mais presentes em congressos internacionais de educação matemática, em razão das preocupações de
natureza sociocultural que têm permeado as discussões sobre o tema.
Assim, inaugurou-se formalmente uma nova área das etnociências: a
etnomatemática (Ferreira, 2002).
Percebe-se então que, desde o seu surgimento, a etnomatemática,
como campo disciplinar, tem ganhado maior interesse entre os educadores matemáticos que se preocupam com a melhoria do ensino-aprendizagem da matemática. Para alcançar esse objetivo, alguns educadores
passaram a pesquisar os conhecimentos matemáticos de certos grupos
que poderiam ser aplicados no ensino na sala de aula. Sebastiani Ferreira, ao desenvolver o conceito de etnomatemática, faz um histórico
desse campo, com início em 1970, citando os vários pesquisadores
(Zaslawsky, D’Ambrosio, Posner, Caraher, Schliemann, Kane, Gerdes,
Harris, Mellin, Olsen) e as denominações que estes atribuem ao campo,
como: sociomatemática, matemática espontânea, matemática informal,
6
 Disponível em: Acesso em: 29 dez. 2006.Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 159 
matemática oral, matemática oprimida, matemática não-estandardizada,
matemática escondida ou congelada, matemática popular, matemática
antropológica; também o próprio Sebastiani Ferreira atribui a denominação de matemática materna ou codificada.
Na realidade, todos esses autores procuraram identificar as manifestações matemáticas em culturas periféricas sem, no entanto,
deixar de tomar como referência principal a matemática desenvolvida no mundo ocidental. Os vários conceitos de etnomatemática,
formulados pelos seus pesquisadores, insistem que essa, em última
instância, é matemática praticada por grupos culturais, como sociedades tribais, grupos de trabalho ou grupos de moradores. Para
Gerdes (1989), a etnoma temática “é o campo que estuda idéias
matemáticas nos seus contextos histórico-culturais” e que “todos os
povos da humanidade, independentemente de raça, origem social,
são capazes de descobrir, compreender e desenvolver, em seu proveito, a ciência matemática”. Knijnik (1993) inclui na abordagem
etnomatemática a investigação das concepções, tradições e práticas
matemáticas de um grupo social subordinado, com base em um trabalho pedagógico em que constam classificações e conceitos de grupo
social específico. D’Ambrosio (1993) define a etnomatemática como
“a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades
urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças
de certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que
se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos”.
Este trabalho se inspira principalmente em Ubiratan D’Ambrosio,
pesquisador que investiga a divisão de tempo como parte da matemática.
Segundo ele, no Brasil, há duas vertentes de pesquisa em etnomatemática:
A primeira se aproxima da etnografia e focaliza os saberes e fazeres de
várias culturas, como grupos étnicos, religiosos, comunitários e profissionais, e de práticas variadas, tais como aquelas ligadas à elaboração
de saberes, às artes, ao cotidiano, ao exercício político, ao lazer e ao
lúdico. Outra vertente é o Programa Etnomatemática, é um programa
de pesquisa que se apóia em amplos estudos etnográficos do saber e
do fazer matemático de distintas culturas. Recorre a análises comparativas desses fazeres e saberes, e da dinâmica cultural intrínseca a eles,
contemplando aspectos cognitivos, filosóficos, históricos, sociológicos, 160 Estudos indígenas
políticos e, naturalmente, educacionais. O Programa Etno ma te mática
procura entender o ciclo de geração, de organização intelectual e social,
e da difusão do conhecimento. (2002, p. 49)
Este estudo adota a primeira vertente, ou seja, pesquisar os saberes
e fazeres de grupos étnicos. De acordo com Mariana Kawall Ferreira
(1998), os povos indígenas da Amazônia conhecem e sabem lidar com
o seu ambiente, por isso vêm adotando ao longo de séculos sistemas de
produção, estabelecendo sistemas sociais, criando sistemas de medidas
do tempo e do espaço específicos ao seu contexto.
Quando iniciei a análise das medidas de tempo utilizadas pelos Taliáseri, não tinha idéia da dificuldade de conceituar e entender a noção
tempo. No primeiro momento, parece simples, entretanto, quando
buscamos compreender como de fato é realizada, deparamo-nos com
a sua complexidade. É fato que todos nós temos uma noção do tempo.
Essa noção, baseada na experiência do dia-a-dia, nos faz sentir o tempo
como algo que passa, levando a uma sucessão constante e linear de instantes. André Ferrer P. Martins e João Zanetic, ao se referirem a essas
questões relacionadas ao tempo, mostram que existe uma longa história
a respeito, e que está longe de seu final:
Na Antigüidade, o tempo vai ser estudado, entre outros, pelos gregos do
século IV a.C.: Platão, que concebe o tempo contínuo produzido pela
rotação dos corpos celestes, e Aristóteles, que pensa no tempo como
um coadjuvante no estudo do movimento. Na Idade Média, podemos
destacar Santo Agostinho (357-430) e São Tomás de Aquino (1225-
1274), que concebem que o tempo foi criado junto com o universo. Já
no início do século XVII, no alvorecer da física clássica, encontramos
Galileu (1564-1642) que, rompendo com a física aristotélica, incorpora definitivamente o tempo como protagonista no estudo – agora
matematizado – do movimento, abrindo o caminho para o espaço e o
tempo newtonianos. (Disponível em: BBessevelhoestranhoconhecido/b>; acesso em 26 dez. 2006)
 Segundo esses autores, há atualmente duas noções de tempo
no mundo da física: o tempo absoluto e o tempo relativo. O tempo
absoluto seria verdadeiramente matemático, em si mesmo e por sua
própria natureza. Flui perfeitamente sem relação com qualquer coisa
externa, e é também chamado de duração. O tempo relativo, aparente Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 161
e comum, é alguma medida de duração perceptível e externa (seja ela
exata ou não uniforme), obtida por meio do movimento, e normalmente
usada no lugar do tempo verdadeiro, tal como uma hora, um dia, um
mês, um ano. Tendo em vista a dificuldade de relacionar esses conceitos
com a noção de tempo dos Taliáseri, adotou-se a noção de tempo cíclico,
pois entre os Taliáseri o tempo sempre esteve associado ao movimento
dos astros e aos ciclos da natureza: as estações sazonais, aparecimento
das constelações, da lua, os dias sucedendo as noites, amadurecimento
de certas frutas e assim por diante. O meu objetivo foi identificar as
unidades que marcam a passagem do tempo.
A expressão medida de tempo diz respeito a alguns eventos naturais
utilizados pelos Taliáseri, para marcar a ciclicidade do tempo. Exemplo
da medida de tempo são os calendários, que surgiram da necessidade
humana de contar o tempo, com base na repetição dos ciclos naturais
e alternância entre o dia e a noite.
OS NÚMEROS ENTRE OS TALIÁSERI
Há dois registros de grafia de quantificadores da língua taliáseri: o
de Giacone (1962), que identificou cinco números, um/uma, dois/
duas, três, quatro e cinco; e o de Aikhenvald, que em conjunto com os
indígenas da família Brito (Aikhenvald, Brito, Brito, 2001) conseguiu
grafar até o número vinte. Este estudo se baseia nos trabalhos desses
autores. Com base em Giacone organizamos a seguinte tabela:
Numeral Termo em português Termo em taliáseri
 1 Um páita, páite, paada, paákapi
 Uma paama, pávia, pádapana
 2 Dois yamépa, yamáite
 Duas yamáma, yamadápana
 3 Três madalite, madalidapa, madalidápana, madálima, madalipa
 4 Quatro Kepúnipe, kepunipedapa
 5 Cinco paákapi, peénkapi
 10 Dez yamakapi162 Estudos indígenas
Percebe-se que os termos numéricos na língua taliáseri são diferentes
do sistema numérico ocidental. Por exemplo, o numeral um (1) pode
ser grafado de sete maneiras diferentes. O dois (2) apresenta quatro
grafias diferentes, dependendo do objeto quantificado. Por exemplo: um
homem = páita atsiali; um dente = paada ué; um braço = paákapi
uakapípada; uma canoa = pávia iíta; dois homens = yamépa aantcha;
dois veados = yamáite neerine; duas casas = yamadápana panisi; duas
mulheres = yamána ina.
 Primeiro, me fixei na estrutura básica do sistema numérico da língua
taliáseri e, em seguida, discorri sobre os classificadores numéricos. Os
classificadores são morfemas fixados obrigatoriamente na raiz do termo
numérico, com a finalidade de classificar o elemento (substantivo ou
verbo) ao qual o numeral se refere (Ferreira, 2002, p. 120).
Aikhenvald, com base nos trabalhos de Derbyshire e Payne (1990),
define classificadores numerais como formas léxico-sintáticas distinct
from closed grammatical systems, often obligatory in expressions of
quantity [distintas dos sistemas gramaticais fechados, obrigatoriamente
recorrentes em expressões de quantidade]. Eles podem existir tanto
como afixos como em forma de palavras, isto é, unidade léxico-sintáticas
separadas, como seria o caso clássico das unidades. A seguir, apresento os
termos numéricos na língua taliáseri no dialeto de Santa Rosa, conforme
Aikhenvald, Brito e Brito (2001, p. 309):
 1. pá:-da
 2. ñamá-da, yamá-da
 3. madalí-da
 4. kehpúnipe-da-pe
 5. péma pa:kápi
 6. peme-kápi pá:-na di-énata-na
 10. ñama-kápi thuya-na-pé
 11. ñama-kapí di-yéna pá:na
 13. 14. pakapidape pada mamada (madalida, kehpunipedape)
 15. yama-kapí di-yéna hipáma ou (Thúya) ñama-kapí pa-hipáma
di-sisá ou ñamakapi thuya pahipáma di-sisá
 16. ñama-kapí di-yéna pá:da pa-hipáma
 17. ñamakapí di-sisa pahípama disisa yamáda di-yanata Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 163
 18. madalída di-yanáta
 19. kehpunipedape diyanata
 20. ñama-kapí thúya ñama-hipáma thúya ou ñama-kapí thúya
ñama-hipáma di-sisá ou ñama-kapí di-sisá ñama-ihpáma
di- sisá ou ñama-ka;í thúya ñama-hipama di-sisá
Já os termos numéricos de acordo com o dialeto taliáseri de Periquito, outra comunidade cujos moradores falam a língua taliáseri (p. 311),
são os seguintes:
 1. pa
 2. ñamá
 3. madalí
 4. kehpúnipe
 5. pa-kapi i-sisa
 6. pa-kapi pa-da hi:pa
 7. pa-kapi ñama-da hi:pa
 8. pa-kapi madali-da hi:pa
 9. pa-kapi kehpunipe-da-pe hi:pa
 10. ñamema pa-kapi ou ñama-kapi isisa
 11. ñama-kapi i-sisa pa-hyupama pa-da
 12. ñama-kapi i-sisa pa-hyupama ñama-da
 13. ñama-kapi i-sisa pa-hyupama madali-da
 14. ñama-kapi i-sisa pa-hyupama kehpunipe-da-pe
 15. ñama-kapi i-sisa pa-hyupama di-sisá
 20. ñama-kapi i-sisa ñama-hyupama i-sisa
Após a apresentação das grafias dos quantificadores numéricos
Taliáseri das comunidades de Santa Rosa e Periquito, respectivamente optei por utilizar no presente trabalho os seguintes termos: um
= pa; dois = ñama; três = madalí; quatro = kehpunipe. Na grafia
dos quantificadores numéricos os classificadores são usados basicamente nas expressões que envolvem quantificação e quantidade dos
numerais de um a quatro (Aikhenvald, Brito, Brito, 2001, p. 212).
Por exemplo: um = pá:-da; dois = ñamá-da ou yamá-da; três =
madalí-da; e quatro = kehpúnipe-da-pe. Os termos em negrito são 164 Estudos indígenas
os classificadores. Para maiores de cinco até vinte, os numerais são
locuções nominais, tendo o item lexical “mão” como núcleo.
Ex:
pa-kapi cinu
IMP-mão cachorro / “cinco cachorros”
Lit.: “uma mão” de cachorros
Portanto, somente para os numerais de um a quatro são acrescentados os classificadores ita, ite, da, ma, whya, dapana e outros. Depois
de cinco, os Taliáseri usam as mãos, indicando com os dedos o número
que desejam expressar até dez, que se diz yamákapi = duas mãos. De
dez a vinte apresentam as duas mãos e indicam com os dedos dos pés
o número que desejam, por ex. 14, mostram quatro dedos do pé e as
duas mãos; o número 20 é indicado com as duas mãos e os dois pés,
em geral, sem pronunciar palavra e sim apontando as partes do corpo
respectivamente. De acordo com Green (1997) são raros os termos de
uma só palavra específica para os numerais 6 e 7 nas línguas faladas no
Brasil. Geralmente, nos sistemas indígenas os termos numéricos maiores do que 5 são produzidos pela junção dos numerais abaixo dele. Por
exemplo, o numeral 6 poderia ser “5 mais 1” (Ferreira, 2002; Green,
1997). O sistema numérico Taliáseri não apresenta semelhança com o
sistema numérico decimal ocidental. Em português, quando alguém
afirma que comprou 3 pães, o número 3 indica quantidade e nada mais.
Na língua Taliáseri o número 3, além da quantidade, fornece informações
sobre os pães como objetos inanimados, por exemplo, seu formato. De
acordo com Franchetto (2002), línguas de diversas partes do mundo
apresentam classificadores numéricos, isto é, morfemas fixados na raiz
do termo numérico, que classificam o elemento ao qual o numeral se
refere.
Os numerais da língua taliáseri, além de quantificadores, são classificadores. Classificam seres e objetos, proporcionando informações. Alguns
classificadores indicam que o elemento é animado, inanimado; outros,
que o elemento é humano, vegetal etc. Muitos se referem ao formato do
item classificado: redondo, plano ou fino; ou ainda, à estrutura como oco
ou líquido. Alguns classificadores indicam a habitação; outros tratam de
agrupamentos como conjuntos, cachos ou feixes e de períodos de tempo Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 165
como o dia ou a noite. A língua taliáseri classifica também coisas dobráveis,
lugares fechados e líquidos (Aikhenvald, Brito, Brito, 2001).
O KÉRI (SOL E LUA)
A principal referência de medida do tempo durante o dia é o Sol.
Em primeiro lugar, porém, vamos entender como os Taliáseri chamam
o Sol e a Lua. Os Taliáseri utilizam um único vocábulo para designar o
Sol e a Lua: kéri. Quando querem chamar Sol, expressam-se hekwapíte
kéri (dia sol) e para a Lua dé:pite kéri (noite sol). O Sol e a Lua são os
instrumentos naturais mais utilizados pelos Taliáseri para calcularem o
tempo em períodos curtos. Entende-se por “períodos curtos” o tempo
referente ao espaço de um dia, ou seja, 24 horas. Durante o dia, o Sol é
o principal instrumento de medida, desde o momento em que aparece
na nascente até sumir no poente. A divisão de tempo durante o dia é
calculada a partir do “movimento” do hekwapíte kéri, Sol, do diwáda
yakóleka, nascente, quando o Sol aparece até se pôr, do Kéri no phé-ri
pá:yakóleka, poente.
A seguir, listamos as denominações de momentos aproximados
utilizados pelos Taliáseri para calcularem o tempo durante um dia, ou
seja, o tempo equivalente a 24 horas. Geralmente, a expressão indica
a claridade do dia, a posição do Sol ou algum tipo de atividade executada naquele horário. Por exemplo: haliá dí-nu, halia di-wása = a luz
aparece, seria 5 às 6 horas da manhã.
Em seguida, serão apresentadas as expressões relativas a certos momentos do dia com a correspondência aproximada às marcações das
horas no Ocidente (Aikhenvald, Brito, Brito, 2001).
Halíte ipéya = antes de levantar o sol (3-4 A.M.)
Haliá dí-nu, halia di-wása = a luz aparece (5-6 A.M.)
Haliá dí-ñu dí-nu, haliá dí-sadí-nu = a luz vai para cima
Haliá di-rúku dínu = mais luz (6-6.30 A.M.)
Haliá di-wasa = quase clareou (6-7 A.M.)
Haliá di-sw;a = clareou o dia (7 A.M.)
Wadéna hékwa = perto de quase meio-dia (10-11 A.M.)
Hékwa = quase meio-dia (11 A.M.)166 Estudos indígenas
Hékwa máña = meio-dia (12 P.M.)
Hékwa di-kapú-ka = virou o dia (1-2 P.M.)
Hékwa í-pumi = tarde (1-2 P.M.)
Khépiri pamúnã máña kéri di-éru di-á-ka= o sol está em cima do
barranco (3 P.M.)
Dékina, dáiki =tarde (3 P.M.)
Dáinu di-á = parte clara do dia (6-7 P.M.)
Kéri depitá dhé = pôr-do-sol
Kádawa di-whá di-swá = começa a escurecer (7 P.M.)
Dékina wíka = boca da noite (8-10 P.M.)
Dépitá = boca da noite
Dépi = noite, parte escura
Dépi pamúña = meia-noite
Percebe-se claramente que as expressões acima citadas seguem a
lógica do horário ocidental. As expressões são ainda utilizadas pelos
Taliáseri mais velhos no seu cotidiano, enquanto a maioria dos jovens
utiliza os relógios de pulso introduzidos na região pelos missionários. Na
comunidade de Aracapá, o tempo equivalente a um dia é divido em três
períodos: manhã, meio-dia e tarde. Desses três períodos, o primeiro e
último, manhã e tarde, possuem algumas subdivisões. Quando querem
marcar algumas atividades pela manhã, dizem: bolequearó, muipu meatawakã. Bolequearó é justamente quando amanhece, na faixa de 7 a 8
horas. Meio-dia é dito como vessé dahriteró, hora de voltar da roça para
casa. À tarde, indicam apenas yamikã, ou seja, entre 2 e 5 horas. Ao
período a partir das 5 horas até o sol desaparecer no horizonte chamam:
muipú saniteró. Há também as expressões que indicam os momentos
durante as 24 horas, ou seja, durante um dia, os Taliáseri utilizam as
seguintes expressões, que consideramos temporais:
Ahì ípumi = daqui a pouco;
Apále = de repente;
Daikina/déiki/déikina = tarde;
De:pi pamóyaka = meia-noite;
De:pi/dépi = noite;Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 167
Depiátuki = manhã;
Depíha-tiki = bem cedinho;
Desu = amanhã;
Desu aliá-kada = depois de amanhã;
Di-péyase-nuku = no começo;
Dí-pumi = depois;
Ehkwápi/hekwápi = dia;
Halíte =cedo;
Héku = ontem;
Hekwáka = meio-dia;
Íkasu = hoje;
Ikasu piaka = agora mesmo;
Kásina = agora, ainda; hoje em dia;
Keripi = mês; período equivalente a uma lua completa;
Mhãida piaká = daqui a pouco;
Panasú / kásina = agora;
Pa-pita-karú-wani = madrugada (quando se toma banho);
Pathesedápe, pathésese = anteontem;
Payapése (-se)/Yamina = antes;
Pi:kase = desde hoje (a parte do dia de hoje que já passou);
Te hékwa = até meio-dia;
Upítha, upíthasenuku = antigamente;
Wademé, wademhé = ainda depois (parte de hoje que não passou);
Ya:píku, yuwapíku = muito tempo, algum tempo.
Essas expressões da língua taliáseri são mais faladas pelos moradores
das comunidades Santa Rosa e Periquito, rio Uaupés, acima de Iauaretê. Quanto aos outros Taliáseri, especificamente na comunidade de
Aracapá, expressam essas mesmas frases, mas na língua tukana. Para os
Taliáseri, não há tempo referente a uma semana ocidental. De acordo
com o depoimento do sr. Jovino Brito, de Santa Rosa do rio Uaupés
acima, no passado, ou seja, antes da chegada dos europeus, os Taliáseri
não mediam o tempo em semanas. Veja a declaração:168 Estudos indígenas
 De acordo com meu avô, não havia expressões ou palavras para indicar
a semana que utilizamos hoje. Não existia domingo, porém havia um
dia para descansar. Só depois que alguns Taliáseri foram para baixo,
São Gabriel da Cachoeira ou Santa Isabel, é que começaram a utilizar
o termo semana. Os nomes dos dias da semana eram em nheengatu;
hoje em dia, alguns velhos ainda utilizam os dias da semana em língua
nheengatu. Quem determinava o dia de descanso era o chefe ou tuxaua.
Atualmente, os Taliáseri estão muito ligados aos dias da semana
introduzidos pelos missionários e outros não indígenas que passaram
pela região. No passado, os índios Taliáseri não tinham essa divisão
de tempo em sete dias, incluindo um dia para descansar. Porém, o sr.
Jovino Brito, baseando-se na conversa que teve com seu avô, informou
que havia, sim, dias de descanso na tradição taliáseri. Geralmente, o dia
era para festa comunitária, ou seja, dia de dabucuri. Complementando
a informação do sr. Brito, o sr. Livino Oliveira relata que os antigos não
precisavam marcar dia para descansar. Bastava eles quererem. Lembra
ainda que um tio dele, na década de 1940, não ficava em casa durante
o domingo. Para ele não existia o “dia santo”. O “velho” dizia que ele
precisava comer e na capela ninguém dava comida.
Durante a noite, os Taliáseri utilizam a Lua, além de estrelas e constelações, para calcular o tempo. A partir do mito da origem do mundo
e da humanidade, vamos mostrar como os Taliáseri calculam o tempo
durante a noite escura, nublada. Segundo a mitologia da origem da
humanidade e do mundo na versão do clã Kabana–idakena-yanapere:
O mito conta que o começo do mundo, a origem do homem e tudo
o que existe no planeta começaram no centro do mundo. Segundo o
mito, o centro do mundo é Enudali, Uapuí-Cachoeira, no rio Aiari,
afluente do rio Içana. Naquele tempo não havia gente neste mundo. Só
existiam dois seres: Hipaweri Hekoapi ou Hipaweri Enu e Hipawerua
hekoapi-sadoa. O mito não fala como eles se originaram. Os dois foram
os coordenadores do processo da criação do mundo e da humanidade.
No centro do mundo, naquele tempo, só havia pedra e nunca anoitecia,
ou seja, havia apenas o dia o tempo todo. Através de seus poderes o
Hipaweri hekoapi benzeu um cigarro e pediu a Hipawerua hekoapi-
sadoa para fumaçar em três cuias que continham o cuspe do Hipaweri
Enu. Dessas três cuias surgiu o Iriyumakeri-yanapere. Este homem foi
o primeiro a aparecer na face da terra, ainda em forma de espírito. Ele
também participou do processo da criação do mundo e da humanidade. Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 169
Como não havia noite em Enudali, o Iriyumakeri-yanapere foi atrás do
Hiparu-yapirikuli, o dono da noite. O Iriyumakeri-yanapere viu que o
Hiparu-yapirikuli vivia muito bem por onde ele morava, era melhor que
no centro do mundo. Havia dia e noite; tinha árvores, água, mandioca,
quinhapira etc. Todo dia, ao amanhecer, Hiparu se levantava e ia tomar
mingau e depois ocupava com o seu trabalho. No final da tarde, depois
do trabalho, ia dormir. Vendo essa “vida boa”, o Iriymakeri-yanapere
pediu do Hiparu que conseguisse a noite para ele levar ao centro do
mundo. O Hiparu negou justificando que a noite não era coisa boa.
Durante a noite ele ficava dormindo, e dormir, segundo Hiparu, era sinal
de morte. Mesmo com a negação do pedido pelo Hiparu, o Iriymakeri-
yanapere não desanimou pediu pela segundo vez. Diante da insistência
do homem o Hiparu, depois de uma longa conversa, concordou em
entregar a “caixa da noite” para Iriymakeri-yanapere. Antes de entregar
a caixa o Hiparu fez algumas recomendações, como não abrir a caixa
do tempo antes de chegar o destino, e orientou como proceder caso
acontecesse algum acidente pelo caminho. Contou alguns benzimentos e entregou uma caixa muito pesada. Dentro da caixa havia uma
camada de areia e, em cima, a bola da noite. No centro da bola havia
um buraco e, de cada lado, duas forquilhas de pedra de quartzo branco
que a seguravam. Uma vara, também de quartzo branco, passava entre
as duas forquilhas, atravessando a bola da noite que girava ao redor
dela. No meio da bola, havia um tipo de risco. Esse risco era o centro da
noite. Quando ele chegava debaixo do sol, estava amanhecendo. Após
receber a caixa da noite o Iriymakeri-yanapere levou para embarcar na
canoa. Como a caixa era muito pesada os remadores ficaram cansados
de tanto remar e dormiram em um local, antes de chegar o destino.
Enquanto os outros estavam dormindo o rapaz que ficou como vigia
da caixa ficou curioso de saber o que aquela caixa tão pesada continha.
Não agüentando a curiosidade o vigia abriu um pouco a caixa e a bola
da noite saiu em forma de vento e se espalhou pelo mundo. Ouviu-se
então um estrondo, igual ao do trovão, e todos os insetos que cantam
de noite se espalharam também no mundo. Uma nuvem de chuva veio
encobrir o sol e o mundo escureceu. Havia três irmãos que ajudavam
o Iriymakeri-yanapere a transportar a caixa da noite. Os três tiraram
três tipos de caniço para bater a caixa da noite e fazer regressar o dia.
O primeiro irmão pegou um caniço, benzeu-o e bateu na mala da noite.
Quando o mais velho acabou de bater ouviu-se um som: –Tililili tililili.
Era o som de um inseto que costuma aparecer à meia-noite. Vendo que
ainda continuava noite, o segundo dos irmãos benzeu o feixe de cani-170 Estudos indígenas
ços e bateu na mala da noite. Ouviu-se então o som: Tititi titi. Este é
outro som de um inseto que canta pela madrugada. Ainda continuava
noite. Vendo que seus irmãos mais velhos não conseguiam foi a vez do
caçula. Ele benzeu o feixe de caniços e bateu na mala da noite. Pouco
depois, ouviu-se o som: –Tititi sulasula tititi sulasula. E pouco depois
começava de clarear. Enquanto ouvia o som Tititi sulasula tititi sulasula
uma estrela vinha subindo, era aliakada. Logo depois o sol, pouco a
pouco, vinha aparecendo no nascente. Segundo o mito, desde aquele
tempo há o dia e a noite. (Barbosa, Garcia, 2000, p. 43)
Esse mito, além de explicar a origem da noite como unidade de
medida para a passagem do tempo, transmite alguns conhecimentos
que fazem parte da cultura Taliáseri. Primeiro, aparece uma estrela e,
depois, os três sons diferentes de insetos da noite e, por fim, o sol. É
por meio do aparecimento dessa estrela e dos cantos dos insetos que os
Taliáseri calculam o tempo durante a noite. O canto do inseto também
indica o tempo desde a meia-noite até o amanhecer. No mito, ficou claro
que o primeiro som, tililili tililili, indica a meia-noite, yami dehkó. E o
segundo, tititi titi, indica aproximadamentre 3 horas da madrugada. O
terceiro, tititi sulasula tititi sulasula indica que já está amanhecendo,
ou seja, a partir de 5 horas. Na região do Alto rio Negro, o dia começa
a clarear entre de 6 horas e 6h30.
Além de descrever a maneira de calcular o tempo, no mito há outra
idéia muito presente entre os Taliáseri, como também entre outros povos
daquela região. Assim que a “bola” da noite saiu da “caixa”, começou
a escurecer. Quem benzeu para voltar o dia foram os três irmãos, ajudantes do Iriymakeri-yanapere. Vê-se claramente que foi o último dos
três irmãos, o caçula, que conseguiu fazer o dia voltar. Hoje em dia, os
Taliáseri acreditam que o último filho tem mais facilidade e interesse
de acumular maior número de conhecimentos tradicionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa possibilitou explorar os saberes matemáticos dos Taliáseri
e evidenciou que eles possuem suas próprias maneiras de mensurar o
tempo para organizar suas atividades cotidianas, com destaque para a
agricultura, preparo, plantio e coleta nas roças e para a pesca. Como Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 171
outros povos do planeta, desenvolveram suas próprias unidades para
medir ou calcular o tempo. O cálculo é feito em razão dos fenômenos
cíclicos da natureza, ditos como reguladores temporais. Esses medidores
naturais configuram-se em geral por meio das ciclicidades observadas
no céu, dos movimentos dos astros e da percepção de mudanças que
ocorrem no meio ambiente, nas plantas e animais e nos fenômenos
atmosféricos. Esses fenômenos cíclicos são utilizados para organizar
as atividades diversas ligadas aos hábitos cotidianos, especialmente as
ligadas à agricultura e à pesca.
As principais unidades de medida utilizadas pelos Taliáseri dividem-se
em celestes e terrestres. As celestes são: o Sol, a Lua, as estrelas, as constelações, e as terrestres, a época de vazante e enchente de rios, a migração de
peixes, o florescimento e o amadurecimento de certas frutas. Há também
as provenientes de animais: o cantar de um inseto ou de um galo.
Existe uma correlação entre as atividades econômicas, agricultura
e pesca, e os fenômenos cíclicos, reguladores temporais. Em outras
palavras, os medidores celestes e terrestres influenciam a execução de
certas atividades cotidianas, como por exemplo a escolha e o preparo
da roça, o período para construção de armadilhas de pesca, o plantio e
a colheita na roça, entre outras.
A maioria dos trabalhos cotidianos obedece ao calendário baseado
no surgimento de constelações, que coincidem com dias de chuva ou
dias de verão. Nessa região chega a chover cerca de 180 dias por ano. O
período equivalente a um ano solar é identificado pelos Taliáseri como
këma, formado por um período de verão e outro de inverno. O período
de verão é o tempo da vazante dos rios, sendo que efetivamente os dias
de sol, em certos anos, chegam a no máximo dez dias corridos. Conforme os Taliáseri, em geral os dias de sol não passam de cinco dias, sete
dias corridos no máximo, o que dificulta a queima de roças de mata
virgem. Os dias de sol são intercalados por algumas precipitações. O
inverno é o período da enchente dos rios, tornando-se difícil a captura
de peixes; por isso o uso das armadilhas (caiá, cacuri). Nesse período, os
Taliáseri cuidam das roças, limpando-as ou executando outros trabalhos
adequados para dias chuvosos.
Durante o período de um ano solar, os Taliáseri identificam comumente 19 constelações que servem como “calendário”. Cada constelação
indica os dias de verão ou de chuva. Os dias de cada constelação variam 172 Estudos indígenas
de 5 a 10, não ultrapassando 15 dias, e os Taliáseri conhecem as atividades agrícolas apropriadas para aquele período, ou seja, se é adequado
para pesca, caça ou colheita.
A representação do tempo dos Taliáseri é cíclica, como a dos antigos
maias. Isso ocorre porque eles seguem os marcadores celestes e terrestres, que acontecem de maneira repetitiva. Conforme alguns especialistas, essa forma de representação toma como base o movimento dos
corpos celestes, por exemplo, a repetição do dia e da noite, as fases da
lua, o movimento do sol, das estrelas.
O estudo do sistema de numeração utilizado pelos Taliáseri não foi
fácil, dado o meu desconhecimento da língua taliáseri. Outro complicador
foi a falta de domínio na área de lingüística, o que dificultou o registro dos
termos numéricos. A despeito das dificuldades, acredito que este estudo
poderá servir como referência para as escolas indígenas, que estão em
processo de implantação de ensino voltado para a valorização de elementos
culturais locais. Por fim, este trabalho não pode ser considerado acabado,
na medida em que expressa a vivência, o aprendizado, a interpretação e
o sentimento da cultura de um grupo. Por se tratar de um universo bastante rico, restam ainda muitas questões a serem investigadas no que diz
respeito aos conhecimentos matemáticos da cultura dos Taliáseri. Além
disso, o trabalho, por ser pioneiro, poderá incentivar outras pesquisas que,
certamente, irão contribuir para aperfeiçoar ou refutar as conclusões a
que conseguimos chegar. Medidas de tempo e sistema numérico entre os Taliáseri do rio Negro 173
Pertence à etnia Tariana e é natural de Iauaretê, estado do Amazonas. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM e mestre em
Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE. A sua dissertação, Etnomatemática dos Taliáseri:
medidas de tempo e sistema numérico, teve a orientação do professor doutor Renato
Athias, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
de Pernambuco. Faz parte do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade e
é docente da Escola Estadual Indígena São Miguel, onde, juntamente com outros
professores indígenas, é responsável pela reelaboração do Projeto Político Pedagógico dessa escola. É assessor da Coordenadoria das Organizações Indígenas do
Distrito de Iauaretê – COIDI e participa ativamente do movimento indígena
regional. Ex-bolsista IFP, turma 2005. E-mail: tuirimakam@yahoo.com.br
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Janeiro, 2004.Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances
Paulo Celso de Oliveira
RESUMO
Este estudo trata da concepção dos povos indígenas sobre seus territórios e sua gestão. A condição de povo implica o reconhecimento de sua
autodeterminação, autonomia e autogoverno, bem como a necessidade
de proteção das suas riquezas naturais. Esses direitos, necessariamente
coletivos, foram historicamente negados pelos Estados, que concebiam
a propriedade privada como absoluta, mantendo os direitos coletivos
fora da proteção de seus ordenamentos jurídicos. A partir da década
de 1980, ainda que as constituições dos Estados latino-americanos reconheçam a organização social e os direitos territoriais indígenas, elas
não lhe definem a forma de gestão, constituindo, assim, o tema em uma
nova discussão para o Direito.
PALAVRAS-CHAVE
TERRITÓRIOS INDÍGENAS – GESTÃO TERRITORIAL – AUTODETERMINAÇÃO – AUTONOMIA176 Estudos indígenas
INTRODUÇÃO
A gestão dos territórios indígenas diz respeito à administração dos
espaços geográficos ocupados tradicionalmente pelos indígenas, questão
que coloca em dois pólos distintos, quando não contrários, os povos
indígenas e os Estados. Surge então a necessidade de se definir quem
é a autoridade competente, os pressupostos normativos e a finalidade
da gestão. A questão não é apenas de reconhecimento dos direitos
territoriais, mas sim se os índios têm direito de administrar esses territórios. Um dos aspectos dessa administração, a gestão territorial, é o
objeto desta pesquisa. O contexto que isso envolve exige a discussão
de conceitos como população e povo indígena, terra e territórios, autodeterminação, autogoverno e autonomia. Trata-se de uma questão de
natureza jurídica, considerando que as constituições latino-americanas
passaram a reconhecer expressamente os direitos territoriais dos povos
indígenas bem como seus usos, costumes e organizações sociais a partir
da década de 1980, rompendo assim com a legislação colonialista.
Neste estudo, apresentaremos as concepções dos indígenas sobre seus
territórios, com vistas a demonstrar a sua natureza diferenciada e coletiva.
Abordaremos também o conflito de jurisdição entre o Estado e os povos
indígenas, demonstrando como o Estado criou um modelo jurídico para
proteger os interesses voltados à exploração econômica dos territórios
indígenas. Abordaremos as novas tendências da legislação indigenista
sobre a proteção dos territórios indígenas e da gestão territorial tanto no
Brasil como em nível internacional, focalizando especificamente algumas
nações latino-americanas como a Colômbia e o Panamá.
Na parte final, serão abordados os temas de autodeterminação,
autogoverno e autonomia, que integram o Projeto de Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovado recentemente pela
Organização das Nações Unidas – ONU – e o Projeto de Declaração
Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, em andamento na Organização dos Estados Americanos – OEA. Tais projetos representam
um novo passo para garantir a gestão dos territórios indígenas pelos
próprios índios. Portanto, o estudo aponta instrumentos que podem
ser utilizados pelos povos indígenas para a gestão de seus territórios e
riquezas naturais. A literatura jurídica e antropológica serviu de base
para os aspectos teóricos da pesquisa. Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 177
Para entender a concepção dos indígenas sobre o seu território, é
necessário que se desprenda dos conceitos da sociedade ocidental sobre
a terra, especialmente da propriedade privada, e se trabalhe com outros
pressupostos. Uma concepção que tenha a propriedade privada como
parâmetro distorce o significado dos territórios indígenas que são, por
excelência, coletivos.
Nesse sentido, Dantas esclarece os conceitos de terra e território
enquanto categorias jurídicas antagônicas.
A primeira questão que surge quando se fala dos povos indígenas e seus
direitos é saber o que são e em que consistem os espaços de domínio
indígenas. A resposta é complexa e envolve as noções de “território” e
de “terra”, cuja conceituação remete a categorias jurídicas antagônicas.
(2003, p. 91)
O território é o espaço de vida e liberdade de um grupo humano. “É
no território e em seus fenômenos naturais que se assentam as crenças, a
religiosidade, a alimentação, a farmacopéia e arte de cada povo” (Souza
Filho, 1999, p. 120).
Outra questão totalmente diferente é o conceito jurídico de território
como elemento formador do Estado e sua pretensa vinculação com o
exercí cio da soberania. De acordo com essa concepção desenvolvida nos
séculos XIX e XX, “As leis não admitem o nome território para indicar
o espaço vital dos povos indígenas chamando-se simplesmente de terras,
como se tratasse de terras particulares dentro do território nacional”
(idem, ibidem).
O termo terra se refere à propriedade individual, seu conceito é tipicamente civilista. Ao reconhecer as terras indígenas, os Estados não foram
claros se reconheciam os direitos coletivos dos povos indígenas ou os
direitos individuais dos indígenas. (idem, p. 122)
Portanto, há que se considerar os diversos significados de território
e terra e compreendê-los a partir da concepção dos povos indígenas.
Os povos indígenas têm um modo próprio de explicar a origem
do universo e da humanidade que é transmitido de geração a geração
por meio de suas narrativas, mitologia, ritos e crenças. Tais elementos
culturais fazem parte da cosmovisão e estão presentes na organização
social e na relação com o mundo físico. Desse modo, é relevante considerar também que cada povo tem uma cosmovisão e uma concepção
territorial diferenciada. 178 Estudos indígenas
JURISDIÇÃO INDÍGENA
A controvérsia sobre a jurisdição dos territórios indígenas existe desde
o início da colonização das Américas pelos espanhóis e portugueses. Os
colonizadores alegavam o direito de conquista que lhes permitia decidir
sobre a vida dos habitantes daqueles continentes e sobre a apropriação das
suas terras. O direito de conquista foi contestado por setores da igreja.
Frei Bartolomé de Las Casas, por exemplo, alegava que os mandamentos
de Deus não permitiam a escravização e defendia os direitos originários
dos povos indígenas sobre as terras que ocupavam, ou seja, direitos que
já existiam antes da chegada dos espanhóis e portugueses.
No entanto, essa instituição, de modo geral, curvou-se à pressão dos
colonizadores e, como resultado, consolidou-se a doutrina da guerra justa. Um dos seus defensores, Ginés de Sepúlveda, cronista do imperador
espanhol, argumentava que os povos indígenas da América deveriam
ser submetidos ao reino da Espanha (Souza Filho, 1992). Também
preconizava a evangelização para os que não apresentassem resistência
e a escravidão para os que fossem capturados em guerra. Não havia,
portanto, muitas opções para os índios, uma vez que a evangelização
significava a submissão e a entrega de seus territórios.
Souza Filho classifica os conflitos entre os portugueses e os indígenas
como conflito de jurisdição. Essa definição é fundamental para qualificar
as relações entre os povos indígenas e os Estados nos séculos seguintes.
Assim, a terra indígena se traduzia em território ou controle de um povo
sobre um espaço determinado. A disputa entre portugueses e índios não
se deu, nem poderia ter-se dado, em questões formais de direito de propriedade, mas em jurisdição sobre um espaço territorial. A questão era
muito mais de Poder do que de Direito. O Brasil era, portanto, um espaço
ocupado. Cada povo entendia seu território segundo sua cosmovisão e
cultura e embora houvesse enfrentamentos e disputas, as populações
viviam em razoável harmonia e paz. (2003, p. 50)
Cunha, ao discorrer sobre a doutrina e legislação referentes à terra
indígena, afirma que no período colonial os direitos territoriais e a soberania indígena foram reconhecidos. Todavia, tal reconhecimento, de
acordo com a autora mencionada, não significava proteção aos indígenas.
Nas leis portuguesas para o Brasil, a soberania indígena e o direito dos índios aos territórios que ocupam é freqüentemente reconhecida: trata-se, Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 179
como se sabe, de um reconhecimento de jure que mil estratagemas
tentam contornar na prática; mas tal reconhecimento legal mostra pelo
menos a consciência e a má consciência da Coroa acerca dos direitos
indígenas. (1987, p. 56)
Anaya afirma que os colonizadores adotaram posturas ambíguas e
contraditórias em relação ao reconhecimento dos direitos territoriais
indígenas. Segundo esse autor, embora os colonizadores tenham reconhecido a soberania indígena, na prática, tal reconhecimento só serviu
como pretexto para declarar as chamadas guerras justas contra os povos
indígenas.
O Estado moderno teve início com o Tratado de Westfalia em 1648,
que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, ocorrida na Europa entre 1618
e 1648, e que estabeleceu o princípio da igualdade jurídica entre os
Estados, instaurando o direito internacional positivo. Nessa época,
iniciou-se também a ciência do direito internacional positivo (Silva,
Accioly, 2002). Com a instauração do Estado moderno, ocorreu uma
notável mudança no pensamento jusnaturalista.
A instauração do Estado moderno ocorreu paralelamente a uma notável
evolução do pensamento jusnaturalista. Os pensadores europeus transformaram o conceito de direito natural, inicialmente concebido como
um código moral universal para a humanidade, em um regime bicéfalo
que compreendia os direitos naturais dos indivíduos e os direitos naturais
dos Estados. (Anaya, 2004, p. 48, tradução nossa)
Em 1651, Thomas Hobbes (1588-1679), na obra Leviatã, sustentava
que os indivíduos viviam em um estado da natureza antes de formarem a
sociedade civil. De acordo com Hobbes, a vida na sociedade da natureza
era solitária, pobre, tosca, embrutecida e breve. Para ele a sociedade
civil surge quando os indivíduos conferem todo o poder e força a um
homem ou a uma assembléia de homens para substituir a pluralidade
de vontades por uma única vontade, que passa a representar a todos,
o Estado. Segundo Hobbes, do mesmo modo que existiam os direitos
do indivíduo, existiam também os direitos do Estado. Essa foi a base
da divisão entre os direitos individuais e a soberania dos Estados (ver
Hobbes, 1977).
Para John Locke (1994), ao contrário, a sociedade da natureza era uma
sociedade de paz e harmonia. A origem do Estado teria ocorrido como
forma de substituir os indivíduos na resolução dos conflitos e na proteção 180 Estudos indígenas
da propriedade. O Estado moderno consolidou a proteção da propriedade
privada com base na filosofia de Locke. Na mesma direção, foi acolhida a
teoria da dicotomia Estado/indivíduo formulada por Hobbes.
Anaya (2004) ressalta que os teóricos Samuel Puffendorf1
 (1632-
1754) e Christian Wolf2
 (1679-1754) assumiram a visão de Hobbes
sobre a humanidade como uma dicotomia entre Estados e indivíduos, e
começaram a desenvolver um ordenamento jurídico focalizado exclusivamente nos direitos dos Estados – denominado como “direito das gentes”.
O diplomata suíço Emmer de Vattel (1714-1769), discípulo de
Wolf, aprofundou o desenvolvimento do conceito do “direito das gentes”, voltado aos Estados europeus, e segundo o qual cada um reclama
sua própria autonomia. Na visão de Vattel, o “direito das gentes” nada
mais é que o direito natural, ao qual se aplicam princípios universais,
ressalvando que há diferenças entre os direitos do Estado e os direitos
do indivíduo, e por isso deve haver uma aplicação acomodada “a cada
objeto” (Anaya, 2004).
Desse modo, foram assentadas as bases doutrinárias da soberania
estatal e seus corolários de jurisdição exclusiva, como a integridade
territorial e a não-ingerência nos assuntos internos. Ressalte-se que essa
teoria tem como pressuposto um Estado formado por uma sociedade
civil de indivíduos iguais que se unem para defender sua própria segurança e autopreservação.
O modelo de Estado moderno fundado na dicotomia Estado/indivíduo não contempla os povos indígenas porque o conceito de nação
é voltado aos Estados europeus, definidos pelo domínio de uma base
territorial e pela autoridade hierárquica e centralizada. Já os povos
indígenas se organizam por vínculos tribais, de parentescos, contam
com estruturas políticas descentralizadas e vivem em territórios sobrepostos ou compartilhados com outros povos. Por sua vez, a ênfase nos
direitos indígenas na esfera individual seria contraditória em relação a
sua natureza coletiva.
Os preceitos do Renascimento, do Iluminismo, da Revolução Francesa
e dos Estados constitucionais que se consubstanciavam no direito de
igualdade e de liberdade, propugnando uma sociedade livre e fraterna,
1
 Jurista alemão, que considerava o Estado a representação da reunião da vontade geral dos indivíduos.
2
 Nasceu na Silésia, hoje Polônia. Era filósofo e seguia as teorias do Iluminismo. Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 181
embora tenham provocado mudanças nos valores, nas formas de governar, nas ciências e na religião européias, não foram convertidos em
benefícios para as populações indígenas das Américas. De igual maneira,
a independência dos Estados das Américas não contemplou os povos
indígenas. Ao contrário, serviu para fortalecer o poder das oligarquias que
se estabeleceram no novo continente. Assim, a ruptura do colonialismo
não implicou o fim da exploração dos povos indígenas.
Conforme Souza Filho, os Estados nacionais criados na América
Latina foram construídos à imagem e semelhança dos colonizadores.
Estado único e Direito único, na boa proposta de acabar com privilégios
e gerar sociedades de iguais, mesmo que para isso tivesse que reprimir
de forma violenta ou sutil as diferenças culturais, étnicas, raciais, de
gênero, estado e condição. [...] A nova sociedade tirou dos indígenas
tudo o que eles tinham especialmente a sua identidade, para lhes oferecer uma integração que nem mesmo os brancos pobres embebidos
pela cultura burguesa, logram conseguir. Os colonizadores roubavam o
ouro, a madeira, a vida dos indígenas, dizendo que queriam purificar
sua alma; os Estados burgueses exigiram sua alma, não para entregar a
um deus, mas para igualá-las à de todos os pobres e, então, despojados
de vontade, desapropriar-se de seus bens. (1999, p. 63)
Até 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, a legislação
brasileira determinava a integração do índio na sociedade, ou seja, a sua
transformação em não-índio. A política integracionista gerou conflitos
permanentes com a cultura e os sistemas tradicionais de saúde, educação e
sustentação econômica dos povos indígenas. Com a Constituição de 1988,
iniciou-se um processo de mudanças significativas para o direito dos povos
indígenas, dado que há um capítulo inteiro dedicado à temática. O art.
231 reconheceu expressamente a organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, bem como os direitos originários dos indígenas sobre
as terras que tradicionalmente ocupam (Araújo, 2006).
Ao proteger a organização social, os usos e costumes, a Constituição
derrogou a legislação infraconstitucional, especialmente o Estatuto do
Índio (Lei 6.001/1973) no que se refere à integração do índio na sociedade nacional e garantiu a continuidade dos modos de vida e culturas
dos diferentes povos indígenas.
No que diz respeito às terras indígenas, o § 1°. art. 231, da Constituição de 1988 preceitua:182 Estudos indígenas
[...] são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições.
Ressalte-se que o art. 232 da Constituição Federal reconheceu a
legitimidade dos índios, suas comunidades e organizações para ingressarem em juízo em defesa dos seus direitos e interesses, competindo
ao Ministério Público intervir em todos os atos do processo. Trata-se,
portanto, de um avanço para a autonomia dos povos indígenas.
No que se refere à gestão territorial indígena, a Lei n. 6.001/1973
estabelece que o órgão indigenista é responsável pela adminitração do
patrimônio indígena. Em outra linha, tramita no Congresso Nacional o
Projeto de Lei n. 2.05719/1991, instituindo o Estatuto das Sociedades
Indígenas, o qual prevê que a gestão do patrimônio indígena será de
competência dos próprios indígenas. Pela nova lei, quando aprovada,
o órgão indigenista será responsável pela qualificação dos indígenas
para exercerem a gestão territorial e o poder de polícia para proteger
as terras indígenas.
De acordo com o § 2°., art. 231, da Constituição Federal, as terras
indígenas destinam-se à posse permanente dos índios, cabendo-lhes
o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes. Também estabelece que a exploração dos recursos minerais
situados em terras indígenas dependerá de autorização do Congresso
Nacional, ouvidas as comunidades indígenas e assegurando a elas a participação nos resultados da lavra.
A Constituição da Colômbia de 1991, por sua vez, inovou significativamente ao tratar dos direitos indígenas (Rojas, 2001). O art. 7 afirma
o caráter multicultural do país, reconhecendo e determinando proteção
à diversidade étnica e cultural.
Segundo o art. 286, “são entidades territoriais os departamentos, os
distritos, os municípios e os territórios indígenas”. Desse modo, as terras
indígenas receberam expressamente o status jurídico de entidade territorial.
Nos termos do art. 287, as entidades territoriais gozam de autonomia para a gestão de seus interesses dentro dos limites da lei e da
Constituição. Essa autonomia lhe concede o direito de serem governados por autoridades próprias, que exercerão as competências que lhes Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 183
correspondem, como a administração dos recursos, estabelecimento de
tributos necessários para o cumprimento de suas funções e participação
nas rendas nacionais.
De acordo com o art. 329, a conformação das entidades territoriais
indígenas será definida em lei orgânica de ordenamento territorial, e
sua delimitação far-se-á pelo governo nacional, com a participação dos
representantes das comunidades indígenas. O art. 330 estabelece que
os territórios indígenas serão governados por conselhos conformados e
regulamentados conforme os usos e costumes das comunidades.
A Carta Política da Colômbia avança mais em relação ao reconhecimento da autonomia dos indígenas para gerirem o seu território em
comparação com a legislação brasileira, em que a herança da tutela tem
propiciado interpretações ambíguas, permitindo ao órgão indigenista
decidir sobre a gestão do patrimônio territorial indígena.
Antes da separação do Panamá da Colômbia em 1903, as autoridades
da Colômbia subscreveram um convênio com os chefes Dules (Kuna),
reconhecendo as terras desse povo, denominando-as comarcas (1870-
1871). A Constituição de 1941 do Panamá reconheceu expressamente as
comarcas indígenas como unidades administrativas. A comarca é criada
por lei e é administrada por um congresso formado por autoridades tradicionais indígenas, tendo autonomia administrativa. É expressamente
definido que as autoridades da comarca não têm competência na área
penal.
A Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, promulgada pela Organização Internacional do Trabalho –
OIT – em 1989, é um dos mais completos instrumentos internacionais
de proteção dos direitos indígenas. Sua aprovação ocorreu em substituição à Convenção 107 deste organismo, que estabelecia a assimilação
dos indígenas. Merece ressaltar o emprego do termo “povo” adotado
pela convenção. Os Estados aceitaram sua inclusão, fazendo a ressalva
de que a sua utilização não implicará quaisquer direitos que possam
ser conferidos a esse termo no direito internacional.
A Convenção 169, da OIT, foi escrita com essa ressalva para mediar
o confronto entre os Estados e os representantes indígenas. Se, por
um lado, o pragmatismo viabilizou a promulgação da Convenção, que
indubitavelmente traz avanços significativos, também é verdade que as
lideranças indígenas nunca se conformaram com tal ressalva. De acordo 184 Estudos indígenas
com a Convenção 169, os povos indígenas têm direito de participar da
elaboração e execução de programas e de atividades econômicas que
afetem os seus interesses. Os Estados deverão adotar medidas para efetivar o desenvolvimento econômico, social e cultural dos povos indígenas
de acordo com suas aspirações e modo próprio de vida. Essa convenção
estabelece expressamente que compete aos Estados adotarem medidas
especiais que se configurem como necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos
interessados. Os Estados também devem promover o desenvolvimento
econômico, social e cultural dos povos indígenas; realizar consultas cada
vez que sejam propostas medidas legislativas ou administrativas que
possam afetá-los; garantir sua participação na formulação, aplicação e
avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional
suscetíveis de lhes causar impactos.
Reitere-se que a Convenção 169 da OIT determina que os povos indígenas sejam consultados quando da elaboração e execução de projetos
e programas de desenvolvimento econômico que lhes afetem. Trata-se,
portanto, do direito de os povos indígenas participarem do desenvolvimento do país e de estabelecerem salvaguardas para seus interesses.
As disputas atuais dos territórios indígenas dizem respeito às suas riquezas (Anaya, 2004). Nesse sentido, os Estados nacionais incluíram como
bens de seu patrimônio as riquezas do subsolo e estabelecem a possibilidade
de intervenção nas terras indígenas sob o pretexto de atender o interesse
nacional, como é o caso da Constituição Brasileira. Trata-se, portanto, de
uma proteção ambígua dos territórios indígenas e de suas riquezas.
Dantas (2003), ao comentar a exploração das riquezas naturais e a
invasão das terras indígenas, enfatiza que nas últimas décadas do século
passado essas terras foram invadidas por garimpeiros, empresas mineradoras, madeireiras, rodovias, hidrelétricas e tantos outros projetos
econômicos que desconsideraram os direitos territoriais das sociedades
indígenas. De acordo com o referido autor, um novo colonialismo vem
acontecendo na atualidade com a exploração da biodiversidade e dos
conhecimentos tradicionais indígenas.
Os povos indígenas opõem-se a esse modelo econômico que depreda
o meio ambiente e aumenta a massa de excluídos. O seu modo de vida
coletivo contempla a geração e a distribuição de renda para a comunidade
e a preservação das riquezas naturais para as presentes e futuras gerações. Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 185
Dessa forma, demonstram que é possível utilizar as riquezas naturais
sem destruir a natureza. As pesquisas científicas baseadas em estudos de
campo e imagens de satélite comprovam que geralmente onde há terras
indígenas constata-se maior proteção ao meio ambiente.
O art. 8 (j) da Convenção da Diversidade Biológica3
 determina a
proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados,
constituindo-se em um importante instrumento de defesa dos povos
indígenas em face do desenvolvimento da biotecnologia e das atividades
das indústrias farmacêuticas, de cosméticos e agroflorestais.
Encontra-se em curso a discussão sobre instrumentos para regularizar o processo de obtenção do consentimento prévio e informado
das comunidades indígenas nos casos de acesso aos recursos genéticos
existentes em terras indígenas e aos conhecimentos tradicionais associados. Todos os segmentos que desenvolvem atividades nesse setor, ou
seja, as instituições de pesquisa científica e as indústrias devem obter
o consentimento prévio e informado das comunidades e repartir os
benefícios de forma justa e eqüitativa.
AUTODETERMINAÇÃO, AUTONOMIA E AUTOGOVERNO
No âmbito internacional, o reconhecimento do direito à autodeterminação e à proteção das riquezas naturais das terras indígenas é o
principal ponto de controvérsia.
Na visão das lideranças indígenas, a autodeterminação é a expressão
máxima do direito pelo qual os povos indígenas desenvolvem sua identidade política, econômica, social e cultural. A autonomia é uma dimensão
da autodeterminação relacionada à descentralização do poder estatal,
possibilidade de tomada de decisão no âmbito local e de governabilidade
indígena. O autogoverno, por sua vez, é constituído pelas autoridades
tradicionais.Tem um caráter administrativo e procedimentos específicos
para subsidiar as decisões coletivas.
3
 A Convenção da Diversidade Biológica – CDB – foi promulgada pela Assembléia Geral da ONU,
realizada no Rio de Janeiro, conhecida como Rio-92. A CDB tem como objetivos a conservação e
o uso sustentável da biodiversidade. Em 1994, o Brasil ratificou a CDB (Dec. Leg. 2) e, em 1998,
deu-se sua promulgação pelo Dec. 2.519. Portanto, desde 1998, a CDB foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro e desde então tem força de lei (Milaré, 2004). 186 Estudos indígenas
O direito costumeiro na concepção indígena é o sistema de normas
desenvolvidas por suas comunidades secularmente e que lhe orientam
as relações internas. Na proposta do movimento indígena internacional,
os conceitos de povos, territórios, autodeterminação, autogoverno e
direito costumeiro se inter-relacionam e se complementam, por isso,
devem ser interpretados de forma conjunta. Os povos indígenas em
geral reivindicam que os bens culturais que foram retirados de suas
comunidades sejam repatriados. Essa seria uma forma de reverter o
processo de colonização que prejudicou a identidade, o patrimônio
cultural e gerou o seu empobrecimento.
Os povos indígenas também defendem que as riquezas naturais
existentes em suas terras, incluindo as riquezas do subsolo, a biodiversidade, as florestas, os animais e as águas, sejam protegidas para
garantir a sadia qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável de
suas comunidades.
Os Estados resistem ou mesmo se recusam a reconhecer os direitos
coletivos indígenas. Os setores mais conservadores alegam que os
direitos indígenas são de natureza individual e já estão protegidos
pelos princípios universais dos direitos humanos. Nessa linha, os
Estados propõem a substituição das expressões “povos e territórios”
pelas expressões, “populações indígenas e terras”. Não admitem incluir entre os direitos indígenas a autodeterminação, a autonomia, o
autogoverno e o direito consuetudinário, afirmando que todos esses
termos são próprios aos Estados e que, se fossem aplicados aos povos
indígenas, acarretariam prejuízos à soberania estatal, possibilitando
a secessão e a criação de novos Estados pelos povos indígenas. Essa
postura conservadora reflete a concepção monista que pretende
que o Estado seja o único sistema jurídico, tal como defendiam os
positivistas no início do século XIX.
Os povos indígenas, por sua vez, argumentam que não pretendem
criar novos Estados e que uma declaração dos organismos internacionais
não se presta a tal fim. O reconhecimento da autodeterminação dos
povos indígenas implica a reforma do Estado e não em sua divisão. Ademais, as alegações dos Estados são de natureza política e demonstram
a falta de interesse em acolher as reivindicações dos povos indígenas
sobre seus direitos coletivos. Além disso, nem sempre as discussões nos
fóruns internacionais são fundamentadas tecnicamente.Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 187
As lideranças do movimento indígena internacional também mostram
que, de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos4
e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,5
todos os povos têm direito à autodeterminação, incluindo a autodeterminação dos povos indígenas. Ocorre que os Estados alegam que
os dispositivos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e
do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
referem-se apenas à autodeterminação dos Estados e que aos índios
aplicam-se apenas os demais dispositivos extensivos a todos os cidadãos.
A esse respeito, as lições de Anaya (2004) são esclarecedoras. Ele
argumenta que a autodeterminação fundamenta os direitos dos povos indígenas dentro da dimensão dos direitos humanos. Da autodeterminação
decorre o reconhecimento da autonomia, do autogoverno e do direito
costumeiro. Ainda de acordo com o autor, ela também fundamenta o
dever de os Estados protegerem os indígenas contra a discriminação,
protegerem suas culturas, territórios e riquezas naturais, bem como reconhecerem o direito ao desenvolvimento de acordo com o seu próprio
modo de vida. Para Anaya, não se trata de criar novos Estados e, sim,
promover a aplicação do direito para os diversos povos indígenas que
historicamente ficaram excluídos da proteção jurídica.
Souza Filho (1999) sustenta que o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e o Pacto Iternacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais estabelecem a autodeterminação como um direito dos povos,
embora os Estados e os organismos internacionais interpretem que se
trata de um direito estatal. De acordo com esse autor, os povos indí-
genas exercem a autodeterminação em suas relações sociais, inclusive
quando decidem por não criar um novo Estado, e seguirem o Estado
já constituído. Com base nesse ensinamento pode-se concluir que a
autodeterminação é um direito dos povos e não dos Estados.
Os esforços para superar esse impasse que se estabeleceu a respeito
do reconhecimento da livre determinação dos povos indígenas e seus
4
 Tratado aprovado pela ONU em 1966, que se refere à igualdade e à liberdade dentre outros direitos
civis e políticos. O documento teve como base a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
de 1948.
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 Tratado aprovado pela ONU em 1996, que se refere à educação e à saúde dentre outros direitos
econômicos, sociais e culturais. Também teve como base a Declaração dos Direitos do Homem,
de 1948.188 Estudos indígenas
corolários, e buscar uma solução negociada entre Estados e povos indí-
genas, culminaram com a aprovação, no dia 13 de setembro de 2007,
da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas pela ONU. Votaram
favoravelmente 143 países, entre eles o Brasil. Votaram contra, os EUA,
Canadá, Austrália e Nova Zelândia e se abstiveram o Azerbaijão, Bangladesh, Bhutão, Burundi, Colômbia, Georgia, Kenya, Nigéria, Federação
Russa, Samoa e Ucrânia.
O texto aprovado reconhece os direitos individuais e coletivos dos
povos indígenas, estabelece as bases mínimas para o seu desenvolvimento
econômico, social e cultural e reconhece o direito à livre determinação.
De acordo com a Declaração da ONU, os povos indígenas têm direito a
livre determinação no contexto interno dos Estados e nada poderá ser
interpretado contra o princípio da integridade territorial dos Estados.
Embora não atenda integralmente às reivindicações do movimento
indígena, a aprovação da Declaração é considerada um passo importante. O movimento indígena já vem se mobilizando para garantir a sua
implementação.
CONCLUSÕES
No período da colonização, Portugal e Espanha adotaram uma legislação que reconheceu os direitos territoriais e a jurisdição indígena.
O reconhecimento desses direitos, entretanto, em vez de servir para a
proteção dos indígenas, foi adotado como base para declarar as guerras
justas e a implantação da colônia. A filosofia do jusnaturalista John
Locke fundamentou a propriedade. Outro jusnaturalista, Thomas
Hobbes, afirmou que existem direitos dos indivíduos e direitos dos
Estados. Essa dicotomia Estado/indivíduo transformou-se no alicerce
do Estado moderno.
Os povos indígenas foram excluídos pelo Estado moderno, que não
reconhecia nada além daquilo que se enquadrasse como Estado/indivíduo ou público/privado, como é o caso dos direitos indígenas, que
são coletivos. A independência dos Estados latino-americanos também
não favoreceu a liberdade dos povos indígenas, dado que não ocorreu o
reconhecimento da diversidade cultural. Mais recentemente, as constituições latino-americanas passaram a reconhecer os direitos territoriais, Gestão territorial indígena: perspectivas e alcances 189
a organização social e os costumes indígenas, inclusive a autonomia indígena. Esse reconhecimento, entretanto, não significa uma autonomia
absoluta porque é limitado ao que está disposto nas constituições. Além
disso, as constituições dependem de regulamentação.
O ideal é que a gestão seja regulamentada conforme os usos e costumes indígenas. A gestão, além de manter e garantir os próprios usos
e costumes deve assegurar a qualidade de vida e da cultura, preservando o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ocorre que muitos
povos indígenas têm alterado os usos e costumes e constituído núcleos
urbanos, ou algo similar a estes em suas terras; por isso, nem sempre a
forma tradicional pode resolver todos os problemas. Uma vez que se
referem a distintas realidades, as soluções não podem ser generalizadas,
mas devem ser baseadas em casos concretos.
Acrescente-se que há uma permanente tensão entre o direito estatal
e o direito de cada povo, principalmente no que se refere à questão
ambiental, organização do município, áreas de fronteira, democracia
interna e direitos humanos. Portanto, a gestão não pode dispensar uma
solução para esses problemas. O direito de ser consultado sempre que
houver medidas relacionadas aos direitos, aos interesses indígenas, às
normas que determinam a proteção do meio ambiente, das terras indígenas e da cultura, e, ainda, medidas relacionadas aos princípios que
propugnam que as decisões devem ser tomadas no âmbito mais local
possível, fundamentam a autonomia indígena.
A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas
apresenta as bases mínimas para a relação entre os Estados e os povos
indíge nas, especialmente por reconhecer seus direitos individuais e
coletivos, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais e a livre
determina ção. Desse modo fortalece o direito dos povos indígenas para
decidirem sobre a gestão de territórios. 190 Estudos indígenas
Pankararu, natural de Tacaratu – PE, bacharel em Direito pela Universidade
Católica de Goiás – UCG, especialista em Povos Indígenas, Direitos Humanos
e Cooperação Internacional pela Universidade Carlos III de Madri e mestre em
Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná –
PUC-PR. A sua dissertação Gestão Territorial Indígena foi orientada pelo professor
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, doutor em Direito Público, professor
titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-PR, ex-presidente da
Fundação Nacional do Índio – FUNAI e atual presidente do Banco Regional de
Desenvolvimento do Extremo Sul. É consultor da coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB no processo de reconhecimento de
sua instituição educacional, o Centro Amazônico de Formação Indígena – CAFI,
e de seu curso de Técnico em Gestão Etnoambiental junto aos órgãos públicos
de educação. Ex-bolsista IFP, turma 2004. E-mail: ppankararu@yahoo.com.br
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